sexta-feira, dezembro 31, 2004

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... mais um novo "Recomeçar"


Mais um ano que termina, 2004 foi um ano que literariamente devo e tenho de agradecer a todos os "viajantes kafkianos" e a todos os que vou lendo por aqui.
Contudo, este seu final foi inesperadamente marcado por um infeliz sucedido inesperado que não quis deixar de partilhar convosco. Não só porque me entristeceu e desiludiu, mas também para que todos estejamos atentos.
A partir do "Minha Alma" e, tal como a Marta, encontrei no mesmo site (http://groups.msn.com/ALDEIAGLOBAL/poesia.msnw?action=get_threads) os meus textos associados a uma outra pessoa. Apesar da gravidade e da infelicidade de tal sucedido, não pretendo, pelo menos nos próximos tempos e por este motivo, abandonar este lugar que tantos momentos felizes me tem possibilitado. Pretendo desvalorizar este sucedido, mas não tanto que deixasse de o salientar e de o partilhar convosco.
Assim, apesar de mais atenta do que dantes, deixo-vos uma mensagem positiva neste novo final de ciclo temporal:
"Se houver luz na alma,
Haverá beleza na pessoa.
Se houver beleza na pessoa,
Haverá harmonia no lar.
Se houver harmonia no lar,
Haverá ordem na nação.
Se houver ordem na nação
Haverá paz no mundo."
Antigo Provérbio Chinês
Feliz 2005!
"Candle Light Earth", Harald Haack

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Egocentrismo

Narcisa era conhecida por ser uma mulher muito activa e dinâmica. "Uma mulher moderna!" - costumavam dizer. Com os olhos brilhantes, as intensas correrias de todos os dias, sorria ao ouvir os comentários. Gostava de se sentir viva. Vivia em constante frenesim. Absolutamente convencida de que a sua acção determinava tudo o resto. Até ao dia em que finalmente saíu de si e descobriu que a importância da sua acção era relativa. Descobriu que afinal era uma parede e o movimento não era senão resultado da velocidade extrema com que tudo se movia face à sua absoluta imobilidade.
"Narciso", Bibliotecas Virtuales

domingo, dezembro 26, 2004

És
Ele virou-se devagar, um lento e leve gesto inclinado para a frente, de modo a poder contemplar-lhe o rosto. Um pequeno movimento que lhe deixava entrever o olhar transbordante. O castanho dourado, cor de mel, o brilho que o fazia sempre pensar que estar vivo deveria fazer um qualquer sentido que lhe escapava. O olhar dela sorriu por um instante ao perceber o dele, indiscreto, desnudando-a, desvendando-lhe os mistérios. Ele percebeu o sorriso e deixou a música trasformar-se em lágrima que escorreu por dentro. "És especial" - sussurrou-lhe devagar, quase inaudivelmente. Costumava dizer-lho muitas vezes. Também em pensamento que ela, contudo, ouvia. Palavras sem som que lhe chegavam directamente do peito aberto. Contudo, ela não sabia porque era especial. E perguntava-lhe. Devagar. Silenciosamente. De todas as maneiras que sabia. E ele falava-lhe dela, das ondas do seu cabelo, do brilho invisível dos olhos, da alegria, do céu azulado que se transformava em vermelho ao entardecer. Falava-lhe das suas asas. Falava-lhe das suas cores, da melodia que os seus gestos cantavam, de tudo o que, calada, dizia. A sua existência tornava-a cada vez mais especial, mais brilhante, mais dançante, mais cadente. Ele não sabia que era ele que a tornava especial. Ela não sabia que era especial... e que o era por não se achar tão especial assim.
Rozica

sexta-feira, dezembro 24, 2004

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"Um Dia

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala. "


Sophia de Mello Breyner Andersen


... desejando um Feliz Natal a todos que por aqui vão passeando.



"Christmas Light", L. Bourdin

sábado, dezembro 18, 2004

A Mulher-Janela

Os dias seguiam-se... corriam um após outro. Em fila, sem pausa para descanso. Em cada simples dia, as mãos cravavam-se no vidro da janela, onde permanecia estática. Olhando o horizonte, ou quem sabe, fazendo parte de um outro crepúsculo de outrora. O vidro deixava-se embaciar. Pela respiração e pelas secreções habituais da pele agredida pela humidade. Entre ela e o vidro, um pequeno microcosmos, quente e húmido, fazendo lembrar uma floresta chuvosa, ou talvez relembrar alguma memória mais regressiva. Os olhos vagueiam, entre o útero - não o dela - e a morte. O fim é uma ameaça constante que já não tem importância... O preto é já cinzento. O vidro é fusão com a carne. Dela sai uma janela onde o seu próprio corpo se debruça. Naquele dia, debruçou-se um pouco mais... apenas um pouco mais. E num segundo, o equilíbrio entre forças e corpos alterou-se para sempre. Debruçada sobre si própria, foi possível vê-la flutuar no espaço, perdida dentro de si própria.


"Window Girl", Stacee L. Combs

domingo, dezembro 12, 2004

Relaxe...
Ele avança devagar pelo corredor escuro, contornando-o silenciosamente. O bater do coração junto à boca.
"Relaxe... o seu corpo está calmo e relaxado..."
Empurra a porta de madeira, com peso de chumbo. A faca pontiaguda nas mãos. Não sabe bem porquê. Como se fosse comandado por uma força que não a sua. Abre a porta, um resto de claridade deixa ver o vulto junto à janela. Ela, a moradora da janela, faz já algum tempo. Ele observa-a com cuidado antes de avançar. Ela está de costas. Não o vê... não o ouve. O coração bate.
"Descontraia... o seu coração bate forte e lentamente... sinta como o seu corpo está calmo e tranquilo..."
A imobilidade. A respiração presa nos entrelaçados da memória. Um breve longo momento parado no tempo. Ele obeserva-a. Ela olha o horizonte. Um pé na morte, outro no lado de cá. Um óbvio desequilíbrio no sentido da figura da foice... Ela quase pede este desequilíbrio. Agradece, oferecendo-se.
Ele não pode esperar mais. Esperou a vida inteira. E a vida inteira é demais. Um passo e mais outro. A lâmina afiada encostada à nuca dos cabelos desalinhados. Um movimento em falso e tudo muda. Ele sente a lâmina enterrar-se devagar no crânio dela. Devagar... até ao fundo. Ele gostaria de ter tido mais luta. Ela não resiste, sequer. Deixa-se cair no chão de madeira, a faca enterrada na cabeça.
"A calma vem a si de forma perfeitamente natural."
Tomado de uma vontade de luta, ele arranca a faca e apunhala-a até mais não poder. Nunca se achou capaz de tal acto, nem em pensamentos...
Contorcida e irreconhecível no chão, respira o seu próprio sangue, agradecendo a despedida, como que numa vénia vermelha.
"Sente-se cheio de energia... muito rejuvenescido... preparado e bem disposto para o que planeou a seguir a este momento de descontracção."
Ele está levantado e expectante. Como se houvesse algo mais por que esperar. De modo súbito, é assaltado por uma dúvida assustadora, mas emergente na mente de modo perfeitamente quotidiano. Pensa o que fazer com o que resta dela. Não sabe... mas com a frieza da loucura, sente-se prático... sente alguma fome e recorda que não tinha preparado nada para o jantar.
"Apophisis", J. R. Skemp

terça-feira, dezembro 07, 2004

Impulso

A parede transparente abre-se para a minha fusão com o mundo. As raízes crescem a partir dos dedos dos pés. Minhas pernas troncos firmes, bases sólidas e estáveis. Os meus braços, ramos aflitos, reticentes, coroados de lágrimas e de pensamentos gastos e perdidos. Os ramos estendem-se na direcção do espaço aberto, prolongam o peito que se se abre em grito de dor magnificamente entoado. Os braços do meu corpo estendem-se querendo abraçar o ar em que me desvaneci, em que me sonho desfazer e transformar. Puxam as raízes inabaláveis. Agora apodrecidas. Meu corpo, árvore pendente.



"Windtree", Cory Ench

segunda-feira, dezembro 06, 2004

O Sol ao Por do Sol

Interrogo o Sol ao por do Sol.
Interrogo-o no derradeiro momento.
Pergunto-lhe onde gosta mais de morrer.
Nas rochas ou no arranha-céus.
Nas ondas ou no alcatrão.
Na areia ou no empedrado da calçada.
Na palmeira ou na árvore sozinha e cinzenta.
No mar ou no automóvel.
Ele responde-me que gosta de morrer em todo o lado.
Responde-me que gosta de se esbater e misturar em todas as coisas.
Um segundo antes de exalar o último suspiro...
"Morro aqui, mas nasço além".



"Sunset", Napton

domingo, novembro 28, 2004

Quando Eu Morrer...

O lugar envolvia-nos com fumo e paredes velhas. Paredes velhas forradas a pano, onde se penduravam e talvez enforcavam telas pintadas da cor dos sonhos. O olhar perdia-se nas cores e nas formas... nos desenhos, nos livros... e nas caras desconhecidas. Contudo, aquele lugar sabia a casa. Não a minha, não a de agora. Mas a de algures ou de outrora. Deixava-me embalar pela voz brasileira que cantava, adornada do som da viola morna - "Quando eu morrer/ Não quero choro nem vela / Quero uma fita amarela..."
Quando eu morrer, não sei bem o que quero. Perco-me no lúdico da situação... Quero... uma rosa branca. Um beijo soprado, um sorriso, um sol radioso. Uma dança sobra a minha campa. Um sorriso, uma lágrima, porque não...? Uma folha de plátano. Verde e amarela. O cheiro das tangerinas, da terra molhada. A evocação da planície, o som da música. Uma gota de chuva, um pincel, um desenho na terra. O descanso, o rodopio. O restolhar das folhas das árvores, que se mistura com o do som das ondas do mar. "Quando eu morrer..." - a melodia repete-se. Volto ao fumo e à viola.


"Guitar with sunset on river", PlanetMind Internetworks

sexta-feira, novembro 19, 2004

Dança Nua

A poeira dança por entre o olhar
embaciando a imagem amarelecida.
Pequenas partículas irrequietas
tornadas visíveis pelos feixes de luz
Intrusos e entrecortantes.
A tua dança nua encontra-se comigo,
a minha um pouco mais vestida,
apenas um pouco mais envergonhada.
Mas sempre dança, sempre movimento.
Fusão de música e irrequietude,
aumentando o ritmo da cópula de pó e de luz.
Quedas-te no silêncio,
Danças o silêncio na nota mais alta que sentes...
A música que sentes, o movimento que ouves.
Rodopias até não saberes quem dança...
se tu ou se a sala,
embaciada, amarelecida...
Sem saberes, moldas o teu movimento no meu corpo.
Sem saberes, gravas-te na minha memória.



"Dance of the Naked Self", Brian W. Jones

sexta-feira, novembro 12, 2004

Toc, Toc, Toc

O espectro do dia passeava-se na rua, rodopiando na dança do vento e abraçando para sempre folhas secas e restos do lixo deitado à estrada. Os cães passeavam os seus donos, mesmo debaixo dos primeiros pingos de chuva que se faziam sentir no cabelo e na pele. A tempestade não tardava... e João apressou o passo, procurando esconder-se da escuridão. Escapado do turbilhão da esquina, do furacão à escala das casinhas de bonecas que sempre acontecia naquele lugar antes das tempestades, João vivia ele próprio o turbilhão de quem tem dezasseis anos. Escapado da tempestade para entrar numa outra.
Chegado a casa, eis que o pequeno canídeo saltitante o saúda. É o único. E João não sabe bem como pode ser possível manter a boa disposição e poder mostrar o que se sente, mesmo debaixo de uma tempestade escura e difusa.
Foi nesse dia que quando chegou e atravessou o corredor, verificou que as portas estavam todas fechadas. E ficou no corredor durante cerca de vinte minutos... apesar deste não ser sequer perto de comprido. João ficou imobilizado, sem perceber o tempo passar. Esperou que uma das portas se abrisse. Esperou que várias portas se abrissem. Pensou se deveria bater a alguma porta. Assim o fez... uma, duas e ainda uma terceira vez. Sem resposta. Pensou se deveria abrir alguma porta, mas cedo percebeu que estas portas não lhe pertenciam. Não lhe cabia abri-las ou fechá-las. A sua era a única em que ainda poderia fazê-lo. Embora - pensou - nunca se tivera dado ao privilégio de o fazer. A sua porta esteve sempre aberta... de facto, o seu espaço nunca fora seu verdadeiramente.
Mas agora o corredor estava escuro e assustador, os trovões ribombavam por dentro, a chuva invisível arrefecia o ar parado no tempo. E João esboçou o primeiro passo na direcção do seu quarto. Ultrapassando o limite da porta, olhou mais uma vez o corredor e fechou-a devagar. Para nunca mais a voltar a abrir.
Quando as outras portas se abriram, a dele estava fechada. Estranhamente a porta do João. Justo a dele, que sempre estivera aberta.
Mais tarde houve quem dissesse - e ouvia-se pelo corredor - que os miúdos destas idades são assim, não nos querem ouvir e fecham todas as portas.
"Knocking on Heaven's Door", Tommie Olofsson

segunda-feira, novembro 08, 2004

A Rapariga Que Tinha Açúcar Demais
Madalena nascera com muito açúcar dentro dela. Tanto que quase transbordava, enquanto miúda. A sua doçura era tanta que não havia a quem não provocasse um sorriso quando passava com os seus caracoizitos castanhos saltitantes e lhes acenava com a pequena mãozinha. Os olhos brilhantes e risonhos. Um olhar de mel, na cor e no sabor.
A menina tornou-se mulher, mas os olhos continuaram os mesmos. O mesmo líquido doce e lânguido no olhar, a mesma serenidade transmitida. Madalena não só continha dentro de si mesma uma eterna quantidade de açúcar, como também o ía largando à sua passagem, como um rasto que deixava e que oferecia mesmo aos que com ela se cruzavam.
No entanto, não obstante o seu carácter marcado e decidido, a simpatia calorosa com que recebia os outros, cedo estes começaram a sentir-se ofuscados por tanto açúcar. Primeiro era aquele rasto que ela deixava pelo caminho que os importunava e que procuravam evitar... mas com o tempo deixaram de suportar o açúcar dentro dela, o cheiro a doce, o olhar de mel... Era como se a amargura, a falta de açúcar dentro destas pessoas se tornasse, de repente, mais evidente, mais real, face a tanta doçura. Mais iconveniente, mais insuportável conseguir olhar-se ao espelho.
Madalena não entendia a hostilidade que começava a sentir por parte das pessoas e, procurando compreendê-las, produzia ainda mais açúcar dentro de si, partilhando com os outros, em redor. Madalena caminhava já com uma aura branca em redor, o açúcar como sua coroa.
O desprezo era cada vez maior, pois quanto mais afável se tornava, mais os outros a repeliam. Sem saber que na verdade se repeliam a eles próprios... Então, carregados pelo peso da inveja e da cegueira de si próprios, começaram, dia após dia, a roubar o açúcar que Madalena guardava e distribuía. Contudo, em vez de o guardarem para si próprios, deitavam-no fora, pois recusavam-se a ver nele qualquer utilidade.
Apercebendo-se da situação, Madalena tentou resistir, mas quando deu por si, encontrou a amargura num dia em que enfim se provou a si própria. Era inútil, a fábrica do açúcar deixara de produzir. Ela, a rapariga que tinha açúcar demais...
Mais tarde, engravidou e teve uma filha, tão doce como ela fora. Com ela cresceu também a doçura. Madalena começava a não suportar ver-se ao espelho no seu vazio de açúcar.
"Sweetness of Freedom", Joseph Cach

quarta-feira, novembro 03, 2004

É hoje que espero

É hoje que espero
pela cor e pelo cheiro da noite.

É hoje que espero que se torne minha,
que espero dormir nas suas curvas,
provar o desejo das estrelas,
a palidez plácida da lua.
Torno-me espelho,
reflexo branco da alma da noite,
perdida nos inquietos
horizontes invisíveis.

É hoje que espero...
pelo toque e pelo gosto
do fim do dia,
pelo chover da escuridão
Espero na serenidade
de quem não perde tempo,
o tempo gostado, o tempo colhido.

É hoje que espero
este meu renascer
neste tão tranquilo morrer do dia.



"Espera", Mireya Juárez

quinta-feira, outubro 28, 2004

...


Permaneço na eternidade do presente.

Aguardo-me, a mim, que persisto lá atrás

Antecipo-me aos meus passos, corridos lá à frente...


A primeira volta no ciclo do tempo que aprendemos a dividir...


Obrigada a todos os que me têm ajudado a construir este lugar.



domingo, outubro 24, 2004

No Fundo do Poço

No fundo do poço Mariana olha longinquamente o azul do céu. O cheiro a relva que vem de cima, a luz com que não deixa de sonhar. Que não deixa de desejar.
Mariana permanece com o olhar voltado na direcção do sol que, gira sobre a escassa entrada do poço hoje, mais uma vez. Uma vez após outra. O pescoço levantado, a posição imutável. Mariana deseja tudo o que se passa alguns metros acima da sua cabeça.
Pena que assim não vá ter tempo de ver os reflexos azul violeta da pedra da parede do poço, lugar onde se abre para uma onírica entrada numa gruta mais sonho que o próprio sonho. Um outro mundo, talvez mais belo que o real. Ainda assim, invisível aos olhos. Pena.


"Paradise Ice Cave", R. Atkeson

segunda-feira, outubro 18, 2004

Por Debaixo do Plátano
Hoje não quero escrever uma história. Começar com "Era uma vez..." e terminar com um ponto final. Não quero começar sequer. Não pretendo um início, um meio e um fim.
Quero escrever a última frase sem que seja a última e transformar três pontos finais em expectantes reticências.
Hoje só queria sentir. Deixar uma sensação. Aquela que mantenho desde a tarde amena, apesar de nublada.
Sentada no banco de madeira, por debaixo do plátano de folhas amarelo esverdeadas, fechava os olhos num misto de melancolia e doçura, e sentia o cheiro da relva. O cheiro da terra antes de ser molhada. Sim, porque a terra também cheira antes de se humedecer. A Natureza avisa-nos do que vai acontecer, é tudo uma questão de atenção. A atenção às sensações e à escuta do mundo.
As folhas do plátano balouçavam, periclitantes, num equilíbrio precário, provocando um restolhar que me embalava como melodia doce. Naquele campo semeado de gente, sentia as doces presenças na paz do tempo estagnado, dos ponteiros cristalizados. Algumas folhas tombam, dançando ritmadamente à medida que se aproximam do chão alcatifado de verde. Fazem-me pensar nos estalidos que se fazem ouvir quando corro por entre elas. Também eu me embalo e me torno folha. Sinto a queda suave, a dança doce e com cheiro a Outono.
Subitamente adivinhavam-se os primeiros pingos de chuva. Uma gota no rosto, outra na terra...
"Mulher Asas de Folha", Angela Crespo

quinta-feira, outubro 14, 2004

O Beijo...

... esperado, desesperado, ansiado

O beijo ... saudoso, fogoso, vistoso

O beijo ... roubado, falhado, molhado

O beijo ... sentido, dorido, assumido

O beijo de sempre, o beijo para sempre

O beijo quebrado, o beijo partido

O beijo lavado, mas comprometido.

Ainda que partido, ainda que quebrado,

Para sempre beijo, sentido e sonhado...



"The Kiss", Rassouli

domingo, outubro 10, 2004

A Corda Estica...
A espera é longa. E os dias, curtos demais.
A corda estica, direita, erecta, curvando-se na extremidade pelo volume do peso que transporta. Curvada, mas decidida, ainda que aparentemente trémula.
Soa no ar a melodia agressiva da discórdia, do grito mudo e abafado pela almofada da inquietação.
A corda estica, aparentemente segura, aparentemente forte, resistente e estável. O porto seguro. Aparentemente.
Contudo, as fibras do seu interior cedem a cada corpo que faz aumentar o volume e o peso arrastado. A firmeza exterior não deixa antever ou adivinhar o colapso iminente. Não obstante ele seja evidente. Inevitável mesmo.
A corda estica hoje mais uma vez. Neste dia outra vez curto. Só mais uma vez. Mas mais uma vez poderá fazer toda a diferença. E a ruptura acontecerá ao carregar, mais uma vez, o peso imenso de uma lágrima desaguada.
"The End of My Rope", D. Jaques

quarta-feira, outubro 06, 2004

Amanhã

Adio o adormecer. E penso que se não dormir talvez o amanhã não chegue. Ou mesmo que inevitavelmente se faça anunciar, mesmo quando não lhe dei licença que entrasse, talvez não se chame amanhã. Talvez seja apenas um prolongamento do hoje. Um eterno rodopiar do planeta, girando em torno do astro rei, que me entontece, e me deixa sem saber quem vem primeiro - a noite ou o dia...
Tento ainda prolongar o brilho das estrelas num reiterar lúdico do ritual de despedida de mais um dia, deitada numa última gargalhada de quem brinca com o escuro que teima em tornar-se luz. Hoje a lua é grande . E amarela. Pensa que me escapa, mas ainda consigo tomar um pedaço de raio de luar que guardo sempre dentro de mim e que transborda no brilho dos meus olhos, mesmo quando durmo. Agarro no manto aveludado e negro da noite e fujo, saltitando por entre as estrelas cintilantes. Envolta nesta manta pintada a pequenos pontos prateados corro escondendo-me do dia. Brinco e gozo com a sua irritação por não conseguir nascer porque não deixo... Enfim, finjo ceder e ofereço-me ao deus do Sol. Deposito o manto a meus pés e avanço sem medo, tocada pelo primeiro raio do dia.
"Vain Dawn", Geoffry Nelson

domingo, outubro 03, 2004

Lugares Vazios

Era uma vez um menino tão pequeno, tão pequeno, que assim que nasceu caíu por um grande buraco negro. Aí permaneceu durante muitos anos. Ora tentando escalar as paredes de tão tenebroso buraco, ora resignando-se face ao seu triste fado. Pensou e teve esperança. Acreditou que um dia, quando crescesse, o seu tamanho seria suficiente para conseguir sair sem esforço daquele lugar.
Contudo, os anos passaram... e, apesar da idade, o menino já tornado homem não mostrava sinais de grande crescimento. Assim mantido. Assim se mantendo.
Um dia percebeu, enfim, que não era crescendo por fora que poderia sair de tão hediondo lugar. Onde não via nem era visto. O crescimento tinha de ser outro.
Mas a decisão derradeira da ferida que era necessário abrir, de se permitir, enfim, crescer, deu-se naquela tarde em que entendeu que, há muito tempo atrás, caíra no maldito buraco não porque ele próprio fosse demasiado pequeno, mas porque o vazio em que caíra e que lhe fora deixado era, ele sim, grande demais.
"Branches: Well", Jeff Mihalyo

domingo, setembro 26, 2004

O Rapaz Origami

Ainda dentro do ventre aveludado de sua mãe, o menino ouve a marcha fúnebre. Foi ao som da morte que nasceu. Nesse momento morreu o bebé em fusão com a mãe. Sempre se disse que um fim é sempre um princípio. E ao contrário também. Morreu um para nascer o outro.
E assim foi, sempre, desde esse primeiro momento. A marcha fúnebre era nos seus olhos de menino, sempre associada à criação. Ao renascer. Ainda que entrando pé ante pé na sua estranha vida, ninguém poderia dizer se esta mais facilmente se associaria à criação ou à destruição. Durante a infância ouviu sempre músicas melancólicas e baladas. Ainda assim sorria. Ao mesmo tempo que as lágrimas dos outros escorriam. O sorriso era parado, o menino mal se movia de onde o deixavam, e ainda assim a sua mãe o prendeu desde cedo numa pequena jaula, onde o pudesse controlar, onde o pudesse observar sempre que quisesse.
Perdia-se em pensamentos acerca da beleza da mãe, observando-a com cuidado nos muitos dias em que ela se quedava prolongadamente em frente à sua gaiola. Quem observava quem, era a questão. Quem consumia quem, a derradeira e aquela que ficava por assumir.
A expressão rasgada era o que mais o fascinava, fruto dos seus traços orientais. Apesar de tudo, não conseguia deixar de ficar fascinado com a sua beleza. O sofrimento que era suposto sentir transformava-se em contemplação e no prazer da estética. A mãe, o seu único e infinito objecto de amor.
Ironicamente, esta mulher de traços marcadamente orientais passava este longo tempo em que se deixava semi-ajoelhada junto à gaiola do filho dedicando-se à sua segunda actividade preferida – fazer pássaros de papel. A arte Origami era algo que levava muito a sério, aperfeiçoada quase até ao limite. E assim passava a sua vida este rapaz, sonhando com as asas de papel em que a mãe o fazia acreditar em vão…
Ele próprio, sem perceber, era um pedaço de papel dobrado, que a mãe começara a dobrar no ventre e agora vincava com mais força do que nunca. Pena que estas asas de papel ainda mais o prendessem ao chão em vez de o fazerem levantar voo. Nunca tivera nome. Origami poderia ser mesmo o que melhor se lhe adequava. Um pássaro sem asas, uma contradição viva, em que nada batia certo. Nem a música.
Quando se sentia triste, em pano de fundo era possível ouvir uma sonoridade extremamente alegre. Nos momentos de alegria, músicas entristecidas pelo tempo. Assim era a vida ambivalente do rapaz Origami que crescia a olhos vistos. O rapaz que já homem, apanhava bofetadas quando sorria e era beijado e presenteado quando chorava. Mas o mais confuso de tudo era mesmo a música. Aquela música que mais ninguém parecia ouvir, a música que não o deixava sorrir. A música que não o deixava chorar, Como se o som fosse para ele a tentativa máxima de impedir as emoções. Vivendo nesta insistência de fazer da sua vida uma imensa banda sonora.
Quando estava para morrer, já velha, a mãe olhou-o através do olho rasgado, aquele que não ficara encoberto pela madeixa lisa e já branca, outrora negra, que tombava sobre o seu rosto triangular. Nesse momento mostrou-lhe o pai, de feições latinas. O pai, emergente do fogo. Antes de exalar o último suspiro, abriu a gaiola onde o filho se encontrava sentado fazia anos. Ao tentar sair da gaiola, à simples tentativa de mudança de posição, partiu as pernas, e caiu numa queda fatal, ao som de uma música infantil…
Já dentro do caixão, longinquamente, ouviu a marcha nupcial. O rapaz casava-se agora com a terra. Contudo, ainda mais ao longe ouvia quase simultaneamente a marcha fúnebre de novo. O rapaz Origami viveu uma vida imperceptível. Ele próprio sem perceber que a sua vida foi um filme sem banda sonora apropriada.
"Origami", Schumacher

sexta-feira, setembro 24, 2004

Sabes...

... tal como eu, neste momento, sei que não ficarás aqui para sempre.

Não ficarás envolta nas minhas palavras, tal como não escreverei para ti... para sempre.

Sei que o modo como me lês não será eterno,

e os suspiros que deixas entrelaçados na letras são efémeros...

Como eu... como tu...

como o brilho das estrelas que fingimos acreditar que ainda existem.

Não ficarei para sempre...

mas enquanto me perco na tua fugacidade,

deixa-me acreditar que sim, que é esta imagem que quero guardar e conservar.

Sei que assim é... mas tu... sabes?...

A imagem no espelho permanece muda e cúmplice face à minha dúvida.




"Mirror", Magritte
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... depois de "Renasço em R":



"Rainha, sou... no meu desespero dentro da tua força. A minha face ensaguentada no rio de lágrimas que caminham na minha vida... grito à força do vento, à mão da tempestade, ecos nos múrmurios das conversas longínquas vagueiam nas crateras do meu pensamento, cavalos alados, fadas, minotauros que não existem, fantasias evaporadas na minha loucura... rainha, eu sou, na minha última lágrima... rainha, sou ... no meu desespero dentro da tua força, nas tuas palavras..."

Sorscha


... depois de "Espera. Só.":


"Espero...
Não espero...
Espero...
Não espero...
Espero...
Não espero...E
spero...Não espero......
e assim se passaram os dias e já vão anos de
espera, perdidos, ou talvez não.
A espera tornou-se um hábito maldito e o medo a
sombra. É preciso saber esperar.
- Não sei. É preciso coragem para levantar os olhos, olhar, olhar
bem e partir."

Salsolakali


... depois de "Sonho Meu":

"é um sonho ,
teu,
que te abraça em desejo.
é um sonho que te toca,
que te afaga,
que te beija.
voas, branca, no branco de um lençol, na nuvem de
um sonho, que te pinta o afecto, que te esboça a
fantasia numa mistura de cores que se confunde com
amores..."


Almaro

segunda-feira, setembro 20, 2004

Sonho Meu

Conto para dentro o meu dia em segundos.
Num pestanejar tímido o sonho aproxima-se...
Ao longe, de mansinho, toma forma, ganha contornos.
Vislumbro as cores, sinto os aromas,
Florescem os frutos, desabrocham os sonhos.

O braço estica-se para além da janela,
A perna alonga-se ultrapassando o horizonte.
O corpo estende-se em preguiça incontida,
Na maciez da pele quente, no movimento dengoso
Que se queda no turco alvo algodão.

A textura morna e embriagante do leito
Traz o movimento prazeiroso, quase auto-desejante,
Brinca na indiferenciação do que é corpo e do que é cama
Faz o rosto mergulhar na almofada
E cede, enfim, ao abraço lânguido do sonho.



"GFXArtist"

quarta-feira, setembro 15, 2004

Espera. Só.
Sofia espera o tempo passar sentada no vão da escada. Que melhor lugar senão um vão para esperar por um tempo vão...? Ignora o relógio inexistente na parede que já não vê. O mundo de fora torna-se mundo de dentro. Demasiado dentro para perceber sequer que são diferentes. O tempo só passa lá fora. Contudo, o olhar escuro e longínquo atinge horizontes jamais explicáveis. Jamais alcançáveis. Contudo, sente a angústia da areia que escorre na ampulheta. A inevitabilidade, em contraste com as lágrimas que evita.
O vão das escadas é agora sombrio. Um degrau após o outro, deixaram de ter qualquer utilidade relacionada com o acto de subir ou descer. O vão das escadas serve para dar lugar a um tempo morto. A um tempo decomposto. Pó do pó.
Sofia espera. Só. Sabendo que um dia não haverá mais tempo para esperar. Não quer sequer saber o que espera, perde-se e desvanece-se no simples acto de esperar. Como a folha de árvore caduca que não resiste ao culminar do tempo estival e não luta contra a força da gravidade. E pensa como a sua vida é como esta folha, de algum modo, bela, de algum modo gasta, de algum modo, uma espera.
Muitos são os que a tentam fazer sair daquele estado um tanto apático, de rapariga que dorme e sonha com os olhos despertos. Como se a quisessem roubar à loucura. Mas a persistência é a rainha de todos os feitos... e de todas as esperas.
Um dia, soltará as mãos das grades do corrimão, levantar-se-á da escadaria sombria e triste. Deixará o local de dentro para também ser ela própria um pouco de fora. Um dia. Quando quiser, quando pensar que o deve fazer. Por enquanto Sofia espera. Só. Mesmo que um dia não haja mais dias por que esperar.
"Girl On Stairs", Elder Groebe

domingo, setembro 12, 2004

Renasço em R

Ruindade que me rasga
De rompante rebento
Resvalo na ravina
Rude e rugosa
Rendo-me e sou ruína.

Restolhar ruidoso
Ribombar, relâmpago rasgante
Rapto o meu reflexo ao rio
Rabisco um risco ridículo
Reconstruo o meu reino roubado.

Recolho os restos do meu riso rancoroso
Roubo-me ao real
Recupero, resoluta,
Meu resplandecente rosto de rainha.
Renasço em R de Raiva.



"The Storm Caller", Stephen Nispel

sexta-feira, setembro 10, 2004

A Rapariga das Ondas
Chamavam-lhe a "Rapariga das Ondas". Alguns pensariam que tal nome se ficava a dever aos contornos ondulados das suas madeixas cor de mogno, moldura do rosto pálido, quase marmóreo. Mas os que viviam perto dela sabiam que assim era chamada pelas temporadas que passava sentada na grande extensão de areia fina e branca da praia. Imóvel ficava perante o sempre intenso restolhar das ondas em eternas investidas contra o areal que nunca se rendia. Não era raro vê-la soltar uma ou outra pequena lágrima, como se chorasse a perda conformada e longínqua de alguém que jamais voltaria.
Os mitos na terra cresceram com ela – dizia-se que esperava pela onda perfeita. A mais azul, a mais imponente, mas simultaneamente a mais subtil. A mais transparente, mas também a mais irada de espuma branca fervilhante e metamorfoseante...
Mas a onda não chegava, ela sabia-o. Talvez por isso chorasse. Chorasse pela perda da onda que nunca viria. Havia uma sempre mais azul, mais transparente, mais sinuosa, mais perto do sonho.
Certo dia, levantou-se da duna que fora o seu posto de vigília ao longo de anos e avançou para o mar numa última tentativa. Deixou de observar o mar e entrou nele. Entrou na onda. A “Rapariga das Ondas” dançou por alguns minutos, conjugando-se com o mar em ondulações perfeitas. A vida deixou de lhe passar ao lado, passando realmente a vivê-la. À imperfeição do mar, faltava a imperfeição da rapariga para poderem tornar-se perfeitos, o mar e ela, ela e mar, afinal um só.
Foi assim que a "Rapariga das Ondas" foi vista pela última vez naquele lugar. Dançando com a praia e ela própria tornando-se água salgada. Aprendendo, enfim, a viver e a amar a imperfeição de cada onda.
"A girl and waves", V. Ovchinnikov
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... depois de "Reflectes-me, Logo Existo"...

... Obrigada, Sorscha

"Sento-me na cadeira do pensamento, falando sem palavras para uma plateia de contorno invisível. Sentada e parada, mas parada não significa no nada. É uma plateia atenta que vagueia. Vagueia ao sabor do pensar que receia acordar, pois flutuar provoca um maior bem-estar.Olho para dentro para descansar, onde tudo acontece bem mais devagar. Deixo-me cair por dentro para repousar, pois é um cair suave, lento e muito sentido. Uma leve brisa acaricia as faces que se desintegram no todo que irá existir, integrando-se numa superfície maior, que abrange tudo, que é o nada.Gosto de escutar o silêncio, que tem tanto para ensinar. É como uma tela, que serve de base para pintar. A minha pequenez não me deixa escutar as cores das borboletas e a minha grandeza não permite que a formiga me veja por inteiro. Assim que me sinto perante os teus textos..."


sábado, setembro 04, 2004

Reflectes-me, Logo Existo

A menina ficava longo tempo sentada num pequeno banco em frente ao espelho. Quem a visse assim, demoradas horas, pensaria que a vaidade seria um dos seus defeitos quando crescesse. Contudo, o que não sabiam é que a menina não podia ser vaidosa. Pois se nem sequer existia aos seus próprios olhos...
Deixava-se ficar, esforçava sempre um pouco mais a vista, mas o seu entediante reflexo apenas lhe oferecia uma imagem desfocada e sem cor, uma figura sem forma em que os contornos se confundiam e entrecruzavam numa amálgama indiferenciada que ficava sempre um pouco mais turva quando os seus olhos se lhe embaciavam de lágrimas.
Esfregava impetuosamente os olhos, na esperança de se poder ver, de poder perceber enfim a cor dos seus cabelos, o brilho dos seus olhos. O corpo, dono de si mesmo.
Alturas havia em que o próprio espelho parecia fugir dela, misturar-se com o reflexo. O que a afligia ainda mais - sem espelho não poderia saber que existia.
Um dia, a mãe da menina saíu de por detrás do espelho. Foi com curiosidade que a criança viu a sua mãe dar-lhe a mão e, juntamente com ela, desenhar com um pedaço de carvão, as suas linhas na superfície vítrea. A imagem ía progressivamente tornando-se mais nítida. As lágrimas secaram. A imagem estava focada, mais do que nunca. O seu reflexo era agora bem mais evidente.
E uma linda menina apareceu desenhada pelas duas. Foi quando soube finalmente quem era. Quando abraçou a mãe, reflexo de si própria.
"Maternidade", Almada Negreiros

quarta-feira, setembro 01, 2004

Regresso

Regresso é voltar, regresso é chegar.
Regresso é o cheiro das folhas amarelecidas pelo tempo, que enrugam sempre mais.
Regresso é saltar e voltar ao mesmo sítio.
Regresso é saber que se pertence.
Regresso é nunca ser o mesmo.
Regresso é o cheiro das amoras ou talvez do oceano. É o sabor do vento que teima em soprar.
Regresso é esperar, sonhar... chorar.
Regresso é um olhar, uma lágrima a dançar.
Regresso é voltar onde nunca se partiu. É o tempo que, sem esperar, de repente me fugiu.
Regresso é o teu sorriso agora e sempre premente.
Regresso é ser esperado mesmo sem avisado voltar. É o sono que sabe que haverá sempre um acordar.
Regresso é chorar quando não há mais lágrimas por vir.
É cantar, soltar, dançar, secar o pranto e sorrir.
Regresso é hoje, agora. Ontem foi, amanhã será.
Regresso sempre de onde nunca sei partir.



"Returning", F. Hart


quarta-feira, agosto 18, 2004

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... depois de "Momento":


"Hoje a noite está esteticamente agradável com a chuva a escorrer num fundo negro pela janela aberta. A cortina dança pelo quarto até ser sugada pela noite e a porta vai rangendo demoradamente pela casa vazia. Uma lâmpada de um amarelo murcho de papel velho baloiça, esboça sombras no tecto, pinta monstros nas paredes, e um pequeno insecto esvoaça em viciosos círculos em sua volta. E a torneira pinga na longínqua cozinha, a tv da sala discursa para um pai já noutro mundo, uns lábios suspiram sonhos no quarto ao lado. Tudo dorme nesta minha doce insónia."

Tudo dorme com a serenidade dos justos. Contudo, apenas aparentemente. Tudo se move, os movimentos opostos degladiam-se no confronto de culpas inconscientes que perduram, que persistem, que doem por dentro. Mais visíveis, ainda, apesar da noite escura que faz da janela um quadro negro, hediondo mas confortável. Os monstros dançam em redor, paridos e moldados à nossa imagem. Como nós, o insecto esgota as suas asas em torno da luz. Quando seria tão mais simples pousar e abraçar a escuridão. Deixar envolver-se por ela. Fazer parte do brilho das estrelas. Mas as asas finas lutam em esforço pelo clarão hipnotizante, pelo relâmpago inalcançável.
O tumulto assalta, assedia, inquieta. Mas por detrás da luz, fica a imensidão do sono embalado pela chuva agradável. No escuro, “tudo dorme nesta minha doce insónia”.
"Raindrops", D. Dagley
Mais uma vez aqui vos deixo um Até Breve.


terça-feira, agosto 17, 2004

Momento
O som que vem de fora é precisamente o do som do tempo. O tempo criado e espartilhado na máquina dos ponteiros. O outro, mais de fundo, é o som da chuva de Verão que cai com pingos leves e desenha pequenos riscos nas vidraças das janelas. A neblina que se vê é o calor que nasce do corpo da Terra feita mulher. O cheiro é o da terra húmida e molhada, fértil e criadora.
Foco-me na música longínqua acompanhada da chuvada que se tornou vigorosa e ritmada pelo sussurro dos segundos do relógio.
Bebo do céu a chuva e rodopio dançando como que querendo alegrar quem chora. Cubro-me da lama e chapinho com os pés descalços. Louca e aflita quero seguir com o tempo, quero subir no vento. Embriagada do cheiro da terra, crio raízes e cresço em ramos que abraçam o céu. Sugo as nuvens e floresço. Aqui me tens.
"Dance1", L. Pingas

domingo, agosto 15, 2004

Introspecção

A rapariga observa os olhos do mundo...

Pensa para si própria que não poderia olhar mais para fora de si própria do que olhar as estrelas.

Eis que lança segredos no abismo do céu,
os planos, os sonhos feitos luz.

Deitada na varanda, deixa-se embalar pelo negro veludo da noite.

Sabe-se segura agora que percebeu que olhar as estrelas é enfeitá-las de si própria...

Agora que percebeu que olhar para fora, no limite do mundo, é olhar para dentro.



"Seven Stars", S. Aslani

quinta-feira, agosto 05, 2004

Descansar

Pouso enfim as armas e levanto as bagagens...
O "Kafkiano" abranda o passo durante este mês... mas apenas aqui - a escrita, essa, estará sempre presente.
Prometendo voltar com os olhos cheios de sonhos e de realidades kafkianas para contar.
Enquanto parto, lembro o poema lido e relido, mas sempre com um novo prazer:

"Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca..."

F. Pessoa



Até breve.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Mea Culpa

Helena tinha olhos cor de Verão. Cortando o ar quente e parado, passeava em passo lento, aqui e ali sobressaltado, como que voltando de vez em quando à realidade, atenta e vigilante da sua segurança. Olhava o mar, reflexo de si própria, como que se encerrando num segredo indizível, num momento que só a ela lhe pertencia. A ela e à praia, ao areal que se estendia do seu lado, ao longo da longa avenida calcetada que desaparecia por debaixo dos pés nus.
Nunca havia reparado muito nela, a não ser naquele dia remoto em que me pareceu perceber algo que a rapariga trazia preso por um fio ao seu tornozelo. Guiado pela curiosidade, acabei por indagá-la acerca do estranho objecto. Com um olhar triste respondeu-me que era o brinquedo que não emprestara ao irmão mais novo.
A partir desse dia, passei a reparar mais em Helena. De dia para dia, trazia um novo objecto preso já não apenas ao tornozelo, mas às duas pernas e até aos braços, o que limitava em muito os seus movimentos. Helena passava por mim, baixava os olhos afogados de mar e murmurava, dizia baixinho que trazia hoje o abraço que recusara a sua mãe, a obediência que não dera ao seu pai enquanto fora vivo, a companhia que não fizera à sua eterna avó, o beijo que recusara ao vizinho do lado... as alegrias que teve ao longo da vida, os prazeres, os pecados...
O tempo passou e Helena deixara de falar - a boca selada para sempre por correntes que lhe roubavam palavras e acção em quase todos os sentidos. Contudo, continuava a arrastar-se pelo passeio largo, ao longo da praia. Apesar do peso que trazia já fazia anos, atrás de si. De facto, para além dos imensos objectos que carregava, trazia acorrentados a si todos aqueles a quem o seu amor nunca satisfizera. Uma multidão de corpos desalmados eram arrastados atrás de Helena. Incapaz de os repelir, novos e novos corpos se juntavam a esta amálgama de carne e sangue no rasto do peso do mundo.
Devagar, passei de mansinho e deixei uma tesoura junto de Helena, quis ajudá-la a cortar as amarras. Nesta tentativa, gritou em desespero e percebi que as amarras eram já prolongamentos do seu próprio corpo. Cortar as amarras poderia ser ainda mais doloroso do que continuar a carregar todo o peso que insistia em arrastar.
Afastei-me devagar e vi-a avançar para a praia. Mal conseguiu arrastar-se até à areia. Nesse momento, deixei de a ver. Apenas o mundo por cima. Helena por baixo. Helena dos olhos cor de Verão, sepultada pela própria culpa.
"The Beginning", L. Pingas

quinta-feira, julho 29, 2004

A Tecla N

Noémia considerava-se uma rapariga moderna e despachada. O cabelo, que mantinha sempre curto, conferia uma maior ênfase ao seu pequeno nariz proeminente a  que muitos teimavam em chamar de "arrebitado". Era dinâmica e eficiente em tudo o que fazia. Contudo, ao olharmos para o seu longo dia de quem se levanta ainda a madrugada mal despertou e se deita já muito depois da noite, era fácil perceber que nele não seria possível encontrar mais do que uma vida de contínuo trabalho...
 
Certo dia, quando presa ao seu portátil, escrevia à velocidade da luz, um qualquer objecto oriundo da prateleira superior do móvel ao qual estava sentada, resvalou como seta certeira provocando um forte embate no teclado do seu computador. Pela primeira vez desde há muito tempo, Noémia parou, ficando como que paralisada por um raio que se quis fulminante. Verificou com cuidado os estragos, procurando com curiosidade perceber o que se tinha passado... que estranha ocorrência esta que a vinha incomodar e fazer despertar do seu tão (in)cómodo sono?...
Nõa havia grandes estragos, pareceu-lhe à primeira vista. Mas normalmente a primeira vista é sempre grosseira, e ao tocar o seu teclado, sentiu que uma das teclas estava solta. Nesse momento uma estranha dor atacou o seu peito, uma dor que não soube ou não quis compreender no momento.
 
A tecla N não estava presa. Passando os dedos pela sua superfície, percebeu que estava partida e saíra do seu mundo. Um vazio enorme a consumia... Por ter parado, pôde pensar.
Pensou que não podia mais escrever algumas palavras. Pensou, pensou, pensou. E chorou. Não podia mais escrever "não"... "nunca"... "ninguém"... Mais do que isso, percebeu que, mais do que não as poder escrever, sempre tentara fugir delas, nunca as havia suportado. O N era também uma letra que expulsara dela própria.
 
Noémia parou e olhou de soslaio para o espelho na parede à sua esquerda. Noémia não poderia mais escrever o seu nome.
 

 
"Girl in Mirror", B. Ballard

 

terça-feira, julho 27, 2004

Veludo

A tua voz sabe  a veludo,
derretida na doçura cor de vinho
Toco o teu ar e respiro as tuas mãos
torno-me criação à tua imagem
Giro como o mundo
sabedora do destino
tornado eterno presente.
Visto-me do manto melodioso
solto, quente, indiscreto
denuncias a nudez macia do deserto
no ritmo ofegante do vento quente
que te mantém, que te anima.
Sei que não sou mais que criação,
Pó mágico, vida que se esfuma.
Mas por isso mesmo imaginação
Da tua mão escorre uma duna
Tentas agarrar-me mas em vão
Pensas-me fugida para sempre
Mas eis que retorno, sangue e vida
do veludo sempre presa...


quinta-feira, julho 22, 2004

(Des)Viver

Entrei de soslaio na ruela escura, na rua que estreitava e chorava sombras.
Ao canto, vislumbrei uma delas, uma das sombras vertida timidamente dos olhos do mundo.
A velhota, sentada no degrau, mantinha a cabeça tombada, resguardada pelo lenço escuro, mais escuro ainda do que as suas vestes.

Quando levantou o rosto e o fez sair da penumbra, verifiquei que não tinha rugas. Não tinha sulcos ou vincos na sua pele. Como se o tempo não tivesse passado por ela. Tentei esboçar um sorriso que logo se amareleceu ao olhar neste rosto quase liso, uma ausência de emoção. O seu olhar trespassou-me como se não existisse. Senti medo. Contudo, cedo percebi que me via, quando a sua voz, num tom que jamais ouvira, se me dirigiu. Uma voz que não era grito nem sussurro. Não era doce, nem tão pouco amarga. As palavras não choravam, também não riam. Talvez por isso não tenha percebido qualquer das palavras proferidas.

Apenas no final a consegui compreender. Apenas nesse final. Em que o seu rosto se metamorfoseou num esgar de sofrimento e me disse em voz melancólica: “Vivi demasiada vida, e não a vida demasiado”. 
 


"Old Woman", Sue Crawford

sábado, julho 17, 2004

Repito-me (II)
 
Rebolo-me na manta rasgada dos lugares comuns,
Como o pó dos retalhos que restam,
Transpiro palavras demasiado gastas,
Sustenho sentidos demasiado usados.
Desvaneço-me em salpicos de água
várias vezes chovidos,
várias vezes evaporados
morangos várias vezes colhidos,
aromas demasiadas vezes cheirados.
Lanço sementes de plantas que não nasceram,
ilumino a escuridão vista até mais não,
inundo de vento o espaço indecifrável,
arranco os relógios ao mundo,
forço a inevitabilidade dos ponteiros imparáveis.
Só não te tento parar,
Só não te tento suster
Só não te tento parar,
Só não te tento suster...
  
  
 

quinta-feira, julho 15, 2004

Na Varanda

Daniel crescera e vivera sempre naquela casa de tectos altos numa das zonas antigas da cidade. As paredes daquele a que chamava lar viram-no tornar-se homem. Hoje já algumas rugas lhe carregavam o semblante.

Junto com ele, envelhecera aquela mesma varanda, aquela que fazia já algum tempo ameaçava ruir. Contudo, e apesar das advertências dos vizinhos e da família que com ele compartilhava o mesmo tecto, Daniel persistia na ideia de passar longas tardes na sua varanda, ora lendo, ora observando o casario em frente e em redor. A quietude da rua era de quando em quando, cortada pelo ruído dos motores dos automóveis que passavam.

Todos o avisavam, de dia para dia a varanda parecia cada vez mais prestes a desmoronar-se, mas Daniel zombava da preocupação alheia, ria alto e chegava mesmo a esboçar alguns saltos em cima da dita. Absolutamente crente no destino, afirmava que não tinha medo, apenas o suficiente que lhe servisse de auto-protecção. Para ele a sua hora chegaria quando tivesse de chegar, morreria quando a velha varanda também fenecesse. Quando tivesse de ser.

Muitos diziam que Daniel sofrera um grande desgosto de amor, e que a sua permanência na varanda simbolizava a sua promessa de eterna espera pela sua amada de quem um dia fora separado... Outros verdadeiramente admiravam a coragem daquele homem que depositava toda a sua fé e toda a sua crença nos braços do destino. Era o destino. Assim a ele se referia tantas e tantas vezes...

Foi num dia de sol que tudo aconteceu. Na rua velha da cidade, o cenário compunha-se como que na preparação para o desfecho da tragédia final. Daniel, como todos os dias, sentava-se na varanda que descaía mais um pouco. Neste dia, como em todos os outros.
Os que o viram nesse momentp, descrevem um brilho diferente no olhar de Daniel, descrevem uma lágrima longínqua que rolou e caíu junto com mais uma pedra resvalante da varanda. A varanda, a caixa dos sonhos, a redoma da amargura. Os contadores de história afirmam que Daniel largara nesse dia a varanda, tomado por impulso repentino, descendo com a velocidade que o seu corpo já marcado pelos anos lhe permitia, do segundo andar até à rua. Desprendera-se do destino e utilizava a sua vontade para ir ao encontro da sua amada. Chegou mesmo a correr, com as parcas forças que lhe restavam. E foi no instante em que largou a varanda a atravessou a porta, no momento em que se lançou para a rua, que foi varrido por um camião que passava com um pouco mais de velocidade. A suficiente para não se aperceber que o veículo se aproximava demasiado... Na rua velha da cidade.

Nos escassos segundos que decorreram entre o embate e a queda final, Daniel teve tempo de sorrir pela própria ironia... E antes que a cortina vermelha de sangue descesse e apagasse a luz dos seus olhos, lançou um olhar de soslaio para a sua varanda que se desmoronava também no mesmo instante.



"On the Balcony", Irina Kupyrova

segunda-feira, julho 12, 2004

Memorando

Não esquecer que:

...ter um corpo significa que também nele mora um espírito que com ele se confunde...
... ter um corpo, ao contrário do que se diz, não é limitador. A pele, fronteira entre o eu e o mundo, confere uma brancura alada, faz crescer asas e revela a unidade subjacente.



"Freedom", Kent

sexta-feira, julho 09, 2004

Mais Um Pedaço Do Mundo Que Respira

Queria ter esquecido de chorar, queria ter podido ficar, abrandar o tempo, gritar o silêncio nunca dito. Mas o ciclo inverte-se sem cessar, o corpo torna-se cinza, a memória, essa, pinta-se a tons pastel e assume formas indecifráveis que só os olhos da alma conseguem ver.
Os coloridos que nunca foram vistos, a ausência que não sei o que é, pois nunca experimentada. Estranhos os conceitos que se desconhecem porque não sabidos pelos sentidos.
Agora o mundo tem menos um pedaço... a matéria transforma-se sem cessar e torna-se mais um fragmento dos raios de sol, visitantes persistentes, seguros e constantes, mais um pedaço do mundo que respira. Nunca vi o infinito, mas esse sei o que é, só por te ter visto partir e, mesmo assim, afinal a tua expressão perdurar ao longo do infindável caminho da memória.



"The Soul of Desert", Yang Hua's

terça-feira, julho 06, 2004

Pormenores Fugidios

No horizonte espreita a ingratidão,
sempre verde violácea
tornada ponto de fuga
labirinto previsto fechado.
Adiante adivinham-se os ossos
descarnados e lavados,
o branco que fere e ofusca
presentes irretornados,
Só o pó do pó,
a marmórea verdade,
a pureza impura, sem dó,
o lugar de sangue semeado
onde as lágrimas crescem
e os sorrisos fenecem.
Caminho desfeito,
fragmentos espelhados
loucura premente
pedaços de gente.



"Fragmented", Cheryl Handy

segunda-feira, julho 05, 2004

Parabéns Portugal

(ao meu País, pelas grandes e pelas pequenas coisas)



sábado, julho 03, 2004

"AUSÊNCIA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua."

Sophia de Mello Breyner Andresen



"Sophia de Mello Breyner", Arpad Szenes

quinta-feira, julho 01, 2004

Efeitos do Vento (II)

Naquela manhã, início de tarde, a rapariga acordara com uma já longínqua sensação de leveza arrastada. Na janela, o vento continuava a soprar. Mas desta vez, em vez de levar, trazia. Trazia de volta tudo o que já fora. As folhas das árvores, o pó... a canção de embalar, ritmada e ondulante, o tempo perdido, quem já tinha partido. O tempo deixou de se adivinhar sem tempo. O tempo ficou mais cheio, a luz descobriu mais cores.
A rapariga interrogou-se onde estariam todas estas coisas, toda esta luz que antes não vira... Saíu de si e olhou para dentro. Procurou bem... e percebeu que sempre lá tinham estado. Tão somente agora podiam sair e entregar-se ao mundo exterior, deixar-se levar pela força do vento, sem medo nem ilusão de controlo.
O vento trazia, recuperava, reunia e fazia dançar.



"Wind of Freedom", Ahtello

domingo, junho 27, 2004

Efeitos do Vento

O vento sopra demais, ouve-se demais por entre as frinchas das janelas. Vê-se nas folhas das árvores e nos cabelos das raparigas. Passeia-se hoje com mais força, com mais velocidade. As folhas da árvore em frente acenam, em quase sorriso verde, algumas despedem-se mesmo e acompanham o ar em movimento em viagem sem destino.
Ninguém percebe, mas o vento gira, rodopia e transforma. Paciente, disfruta de todo o tempo do mundo, que respira. Diz-se sempre que o vento muda o que não se pode ver com os olhos, que leva muito mais do que se diz. Sempre muito mais do que devia.



"The Gust of Wind", Jean-François Millet

quinta-feira, junho 24, 2004

Inocência

Era linda a menina loura, de olhos azuis. Candura e inocência não poderiam ter melhor lugar para morar. Bem comportada e prendada, sempre pronta a ajudar.

Estranho passatempo tinha a menina de faces rosadas. Horas e horas passadas no quintal, sentada e debruçada nas escadas cor de tijolo. Perdida nos seus pensamentos, pensavam os que a rodeavam.
Mas a menina loura de olhos azuis passava tardes a fio observando os carreiros de formigas que se formavam em redor da azarada abelha morta. Era assim, uma após a outra. Começando numa tarde a observar o fenómeno que se dera espontaneamente, já era ela que o provocava. Ía até a cascata e tentava por todos os meios afogar mais uma abelha. Tentava que ficasse semi-morta para que, uma vez trazida com uns pauzinhos para a escada, onde o exército das formigas se reunia, transportando o aparente cadáver, a abelha recuperasse e lutasse pela vida, ainda que invadida e quase condenada.
Os seus olhos azuis brilhavam um pouco mais em face da violenta batalha.
Outras tantas vezes, após o longo e tortuoso caminho percorrido pelas formigas transportando a sua presa, a menina pegava na abelha e colocava-a no ponto inicial. E as formigas voltavam atrás, para voltar a percorrer o caminho novamente.

Certo dia, deu por si a pensar quem estaria a observá-la e que tipo de formiga seria ela. Seria a abelha ou seria a formiga? Não sabia. No entanto, nada disto lhe trazia menor candura.



"Alice Liddell", L. Carrol

terça-feira, junho 22, 2004

A Janela Baixa

A janela baixa é o bilhete para o mundo
Viajando para dentro, viajando para fora, viajando em redor.
Sempre gostei de janelas baixas. Onde projecto e regresso, aqui e ali, e desenho no ar lugares por inventar.
Sensação de ter de acordar, vontade de perpetuar.
Cavalgo no vento, no tempo que fica, enlaço o segundo, liberto o minuto que deixa... que parte.
Não sei porque se misturam o azul turquesa com o raio de sol, a água fresca com os risos dos miúdos. Não sei de onde vêm, não sei onde ficam, riem, pulam, dançam, jogam com os sentidos, dispertos, feridos.
É na janela baixa que me perco, me encontro, me mostro, me escondo, me deixo ficar.
Louca, me atiro, e caio, resvalo.
E da janela baixa, no tempo me lanço, logo enfim descanso, me desfaço no vento.



Magritte

domingo, junho 20, 2004

Incessante

A música surge debaixo da terra
como o coração laborioso
perene, persistente
mesmo quando não se quer
Como ele, que dança,
mesmo sem alegria,
mesmo sem a alma como par.
Como o sussurro da brisa
segredante, viajante no vento.
Como a memória que não esquece
moradora na pele e no sonho.
Como o sol que espreita
por entre a penumbra
sombria das nuvens lacrimosas.
A música cheira a terra molhada,
como nas tardes de Verão,
videntes da amarelada lua cheia.
Elevação do vapor quente
que se entranha e não se estranha,
Como a locomotiva esbatida,
ritmada e ofegante,
Como a tua respiração dormente,
lenta, contudo incessante,
incessante,
incessante.



"Rain, Steam and Speed", W. Turner

sábado, junho 19, 2004

Na Sala Branca

Durante algum tempo nadei num ventre que um dia foi pequeno demais para mim. Desses tempos já mal me recordo, mas a verdade é que cada vez que oiço músicas de embalar sou capaz de recordar sensações agradáveis que não chego a compreender. O doce embalar que organiza e constrói.

Um dia deixei o estado líquido e quando cheguei, entrando de rompante no que seria o meu mundo por algum tempo, observei com cuidado, vagarosamente, sem pressa, tudo o que se passava em meu redor.

Entrei numa grande sala branca. Não havia muito para ver... Tão branca, que se tornava aborrecida e monótona. Nesses primeiros tempos não era difícil adormecer perante tal cenário. Mas ao longo do tempo, começaram a surgir aspectos e perspectivas que se tornavam decifráveis e compreensíveis no lugar onde antes houvera o nada. Apercebia-me agora de uma multidão de outras pessoas, de outros seres que, tal como eu, viviam e partilhavam a alva sala. Olhei-os com atenção. Tentei entrar nas suas almas e vê-los mais de perto. Estranhamente todos se comportavam como se assistissem, na mesma sala de cinema, a filmes diferentes. Alguns sorriam timidamente, outros riam às gargalhadas. A sala era da cor do arco-íris, diziam. Outros ainda, mostravam grande desalento, enquanto outros choravam copiosamente, afirmando ter visto monstros cinzentos projectados nas paredes.
Aos poucos fui notando que alguns grupos se formavam e que onde antes se podiam ver lágrimas era possível ver alegria, mas também onde anteriormente se rasgavam sorrisos, surgia o desespero. As pessoas partilhavam pontos de vista que faziam com que as reacções na sala permanecessem em permanente mutação e metamorfose.

Também eu figurava neste quadro e, absorta na observação dos outros esquecera de decidir de que cor pintar a minha sala. Sabia que nunca iria saber como era de facto a sala branca. Talvez nem sequer fosse branca. Talvez fosse de todas as cores. E como queria rir e chorar, e ser mais do que uma, ser muitas, deixei fluir o tempo através de mim e esperar as projecções, uma após a outra. Pois afinal tudo o que colocaria na sala branca não estava senão dentro de mim.



"Magritte's Window", David Johnson
Poema de Retalhos

Porta entreaberta, dança com o vento que te envolve, sensibilidades protegidas, o caos da respiração. Fecho-me neste círculo intenso de fresta de luz, no tempo que olho o espaço fundido num só olhar... deito-me nessa nuvem e adormeço, adormeço por ti...

Portas ou janelas, espelhos ou labirintos, cavalos alados, ou unicornios. Histórias do sentir, refúgio de solidão, navegante sem rumo.
Dor? certamente. sentir? provavelmente.
poema? cor?
simplesmente, viver...


Porta entreaberta. Alethéia. Verdade que se desnuda e que se refugia. Lugar utópico? Não creio. Onírico? Talvez, mas ainda assim um lugar.E Pegasus nos leva a qualquer lugar.


(Obrigada a todos!)

quarta-feira, junho 16, 2004

Porta Entreaberta

Porta aberta, criação nascida
Renascida no intervalo dos dias
Vivida, sentida e deslumbrante,
Fascinante realidade despida.
Pudera lá ficar, viver a eternidade
Tempo sem tempo, espaço sem lugar.
Mas o tempo vai e vem
No espaço que sonho, não permaneço.
Deixo a porta entreaberta
Espreito, no intervalo da noite,
O meu cavalo com asas,
Lá, nesse eterno lugar,
onde afinal vou... e me deixo ficar.




"Bamboo Lady", Cynthia Tom

domingo, junho 13, 2004

Caminhos (Des)Construídos

Voltada para uma parede desde que nascera, já não sabia o que era uma porta, uma janela que deixasse ver para além de cinco metros defronte de si, já não sabia recordar o que era "lá fora". Apenas o que era "cá dentro" e esse era escuro, medonho, húmido e assustador.

Muitos anos foram passados caminhando contra a parede rugosa, caindo sempre que com ela embatia. Uma vez após outra. Muitas vezes depois de muitas. Mas por mais que andasse ao longo deste obstáculo, impossível de transpor, nunca foi capaz de encontrar uma folga, uma porta, uma janela, um intervalo de parede por onde lhe fosse possível passar.

Todos à sua volta tinham pena dela, ajudando-a como podiam, dando-lhe esperança. Embora ela, sempre insatisfeita, insistisse em afirmar que os outros nunca lhe eram suficientes.
Passados muitos anos, já aleijada de tanto embater na sólida parede, já não se podia mexer, contando com uma série de pessoas que eram agora os seus braços e as suas pernas, os seus olhos, o seu nariz, a sua boca. Embora continuasse as suas eternas queixas, era possível ver que, desistindo de voltar a enfrentar a parede, se tinha acomodado num canto onde lhe era agora mais confortável ficar, sendo servida por toda aquela gente que nutria por ela uma frequente pena, que não era senão a pena de si próprio.

Contudo, certo dia, apercebeu-se de que as pessoas começavam, devagar e gradualmente,a deixar de vir ter com ela, olhando-a de soslaio, como se algo de bizarro se passasse.
Por momentos, numa fracção de segundo, quando olhou em frente, constatou que à sua frente já não se erguiam as temerosas paredes. Na verdade, foi possível por momentos ver uma longa sequência de janelas abertas que deixava ver uma bela composição de azuis. O caminho tornara-se potencialmente macio.

Tudo decorreu em fracções de segundo... que fazer agora que já estava aleijada, sentada, dependente dos serviços dos que a rodeavam...? Todo este tempo teria sido em vão. Rapidamente os seus olhos passaram a ver novamente a parede cinzenta, ainda mais sólida, ainda mais intransponível. Tudo isto, apesar de na verdade, existir um caminho apesar de difícil no início, bem mais suave, bem mais macio...

Face a tal contradição, as pessoas à sua volta começaram a tentar mostrar-lhe que existiam saídas. Contudo, estas tentativas colocavam sempre mais em causa o pequeno mundinho que ela construíra para sobreviver. Negando veementemente tal realidade, iniciava-se sempre uma onda de insultos às pessoas que a queriam arrancar daquele torpor e afinal estranho bem-estar.

A pouco e pouco, todos desistiram de ajudar quem não queria ser ajudado. A solidão passou a valer-lhe de companhia e ela pode, uma vez mais, confirmar que ninguém era bom o suficiente para ela, que ela não prestava, e eternizar a sua inabalável fé na ruindade do mundo.



"Labirint", Vinczé Janos

quinta-feira, junho 10, 2004

Por Dentro

Diziam que tivera enlouquecido naquele trágico dia. No dia solarengo e sem nuvens em que aquele que amava a deixara para sempre.

Os seus olhos castanhos já há muito tinham perdido o brilho de outrora. Desde o dia em que ela, com os seus olhos cor de jade, sempre prescrutadores, começara a questioná-lo sem dó nem piedade.

Nos primeiros tempos eram os locais onde se tinha quedado durante o dia, mais tarde as exigências passavam já a ser saber todas as pessoas com quem falara, durante quanto tempo, bem como os assuntos abordados. Não satisfeita, perseguia-o pela cidade, numa ansiedade auto-mutiladora e numa tortura incessante que não o deixavam respirar. Ainda que a perseguição continuasse, ela persistia no jogo das perguntas ao final do dia. E ele respondia, respondia sempre. Por vezes, a resposta era uma simples lágrima que se escapava e escorria silenciosa. Este amor doentio fazia-o sofrer numa estranha tonalidade, brincado com os limites do suportável.

Estranhamente este silêncio ainda mais a enfurecia, que iniciava nessa altura o seu rol de acusações.
"Mentes" - dizia - "Porque não te abres para mim?". Insistia. Persistia. E um dia explicou-lhe que ele tinha pensamentos e sentimentos inconscientes. Ele já o sabia, mas também sabia que haveria partes dele próprio às quais nunca teria acesso. Talvez nem quisesse ter. Mas ela, ignorando qualquer conceito teórico ou prático da palavra "inconsciente" ditara que queria saber o que se passava na sua parte inconsciente. E então ele inventava histórias bizarras, para a satisfazer nessa insatisfação que não parecia ter limites. Mas cedo ela percebeu que eram mentiras e o ciclo de acusações se iniciava mais uma vez.

Sempre cada vez mais forte, sempre cada vez mais torturante. O rapaz dos olhos castanhos sem brilho não sabia quanto mais poderia aguentar. Apenas mais algumas horas.
Nesse mesmo dia, os olhos cor de jade encontraram os olhos castanhos sem brilho, mais baços ainda, escancarados, o crânio esfacelado ao meio pelo machado que descansava sobre o manto de sangue. Um semi-sorriso no rosto sem vida exibia-se a si próprio, junto a um bilhete escrito para a sua amada: "Aqui me tens aberto para ti".

Dizem que enlouqueceu nesse dia. No dia em que a encontraram coberta de sangue, tentando enrolar-se em posição fetal dentro do crânio aberto do rapaz...



"Birdwoman", Nancy Wood

terça-feira, junho 08, 2004

As Vossas Palavras...

"O mar guia e abraça, embala, acorda, é vida, metamorfose, castelo de água, de sal, de sangue, é cor, poesia, laço, abraço, melodia, é azul-verde-água que voa, é marinheiro-gaivota, que ama em sonhos o amor que deixou em terra, é alma que guia…"

Corto-Maltese, depois de "Abraço Azul"


"Não me lembro bem dela - daquela praia.
Não me lembro do frio da água
Nem já sei de que cor era o mar
Gosto de pensar que lá estive e o sol me aqueceu
Gosto de imaginar um mar glorioso de verde e branco
Gosto de me sentir como a ampulheta que, sem pressa, aguarda que toda a areia da praia - daquela praia - passe por ela.
Sinto-me bem e vivo enquanto isto acontecer
E houver, na minha mente, uma imagem imaginada da praia - daquela praia
A praia inicial da minha vida."


Sr. Ministro, depois de "Abraço Azul"


"- Passei por aqui, confesso que não sei já de onde....
- Também eu, meu caro. Pois é no costume que habito e tenho por hábito a tradição.
Sou dependente da rotina que injectam no meu comportamento. Vivo o vício do ciclo infinito da engrenagem de repetição. Tenho porém, momentos lúcidos, que me servem de tormento.
.... São as repetições que me convidam, como sempre, a entrar. E onde me vicio na permanência.
- Bom, obrigado pelo teu canto e por esse teu jeito de comunicar."


Simulador, depois de "Repito-me"


"Num beijo quebra-se o tempo, a cronologia, a angústia do tic-tac ouvido vezes sem conta. abandonamos a solitária observação do ponteiro e diluímo-nos no concreto dos lábios..."

Troblogdita, depois de "Repito-me"


segunda-feira, junho 07, 2004

Repito-me

Repito-me quando falo
Quando penso,
Quando sonho.

Repito-me como o mar,
Nos dias e também nas noites,
No tempo indiferente.

Não raro me perco,
quantas vezes me encontro
E repito o desencontro.

Repito os tempos,
os lugares, as pessoas.
Repito, imagine-se!, o vestido.

Sou sempre igual,
permanente na fugaz metamorfose.
E repito a mudança.

Em tudo me repito, menos em ti,
menos no beijo,
que é mais repetido que a repetição,
que é clonagem até à exaustão.

E ainda que repetido,
sinto como da primeira vez
e repito um sentido
inaudível sussurrado "Outra vez".



"Nude By Sea", N. Rosse