quinta-feira, abril 29, 2004

Espaço (falta de)

Enquanto impeço os olhos de amolecerem e se fecharem em casulo, penso em como o espaço é preciso. Aumento mais um ponto na minha lista de coartadores da criatividade - preocupações. Ocupam demasiado espaço. De quando em vez, faço descobertas daquilo que já sei. Constato hipotéticas deduções entre um pestanejar dormente e outro um pouco mais prolongado.
Quase durmo... crio fendas no imaginário que me dão o tempo que talvez não tenha. Embarco para o outro lado, pensando ainda que até o ar ocupa espaço.
Palavras...

... do Sr. Ministro, depois de "Alegre se Fez Triste" (Manuel Alegre):

"...Enquanto, desesperada e brava
Desafiava a dor imensa
Do momento que não agrada
Do sonho que a tornou tensa.
Mas ao acordar de um torpor,
No romper de um novo dia,
Aquecida pelo calor
Com as esperanças tornadas mil,
Tristeza esquecida na noite fria,
No sol de uma manhã de Abril."

terça-feira, abril 27, 2004

Momentos Semeados

Não quis terminar o dia sem um último adeus,
Não quis deixá-lo ir sem me despedir.
Ainda tento num breve sorriso fazê-lo ficar.
Agora mais um pouco, só um pouco mais.
Mas é escorregadio e foge,
Desliza por entre os dedos,
Como areia de ampulheta.
E é no momento final, que me escondo
Me refugio no último segundo do último minuto.
Distraio o tempo, brinco com ele,
E às escondidas recolho na minha bolsa de veludo
Um pedaço de momento, sereno como a eternidade
Só assim a poderei semear
e fazer nascer momentos tão belos quanto este.



"Ampulheta", João Ricardo Spagnollo

domingo, abril 25, 2004

(E outra vez...) Partilhar...

E alegre se fez triste - Manuel Alegre




"Aquela clara madrugada que

Viu lágrimas correrem do teu rosto

E alegre se fez triste como se

Chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos

Meu nome no teu nome. E demorados

Viu nossos olhos juntos nos segredos

Que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.

Só ela viu teu rosto olhando a estrada

Por onde um automóvel se afastava.

E viu que a Pátria estava toda em ti.

E ouviu dizer-me adeus: essa palavra

Que fez tão triste a clara madrugada. "



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... o conto que teve a sua estreia na "Sexta Sexy", para a qual muito simpaticamente fui convidada pela Deméter:

Ensaio De Um Sonho

Quando já não esperava (mas esperava, ela sabia), apareceu defronte dela e, fixando o seu olhar perscrutador no dela, meigo e fugidio, disse-lhe numa voz quente e estranhamente calma, mais calma ainda. "Já só falta uma hora..." Olhou-a de modo diferente... docemente... violentamente, puramente... profundamente... olhou-a muito... e encheu-a com o olhar. Foi por ele, por esse olhar que inundou o dela, e pela sua mão, que se encontrou frente à praia... Subita mas docemente, a puxara para a frente da areia... o céu confundia-se com o mar por debaixo da lua... o silêncio da noite era quebrado pelo som de vozes ao fundo e pelo restolhar das ondas que brincavam com a areia: como numa espécie de jogo, o mar ía e vinha... ora atiçando, ora fugindo do imenso areal que se estendia em nosso redor. Levou-a até à praia... encontrou-se por lá... a aparência calma, serena e sossegada, a praia era ela e ela era a praia... Numa simbiose perfeita, eram uma só. Mas quando o olhava, mansamente, de soslaio, percebia que serenidade nela era não mais que aparência...
Então, descalçando-se, e subindo a longa saia, correu pelo areal, chamando-o...desafiando-o... Correu atrás dela, até a fazer tropeçar e cair na areia fria... O vento começou a uivar por entre as rochas, levantando o oceano salgado, querendo levá-lo consigo... luta cada vez mais violenta e exacerbada... Num turbilhão, o mar lutava consigo mesmo, lançando-se contra as pedras, estanques e imóveis, devorando a areia em cada investida... Sentimentos, primeiro suaves, depois fortes e avassaladores a invadiam a cada minuto que passava..., tornando-se absolutamente impotente numa luta contra chama e fogo que o vento alastra
... O olhar...
O vento soprava sem cessar, erguia os seus cabelos, enfeitados com uma coroa feitas de flor de laranjeira, ondulando na direcção do céu, misturando rostos com a espuma salgada que insistia em avançar sobre o areal que... apesar de tudo... resistia... O cheiro a mar e a laranja. Ela resistia... Gostava de adiar o prazer, se pudesse permaneceria para sempre no limiar, no quase, no prestes, no momento em que sentia ser o início da renovação. E assim procurava fazer permanecer o seu amado, aquele que gostava sempre de deixar na dúvida
... Dez minutos... a boca... como um gomo de laranja doce e perfumado¿
As nuvens choraram... e mais uma vez ela se viu ao espelho naquele mar tão violento, tão invadido pelas emoções... naquela praia envolta num turbilhão, em que os elementos se misturavam, se confundiam... e permaneciam num estranho e contínuo movimento inquietante, mas sereno, rítmico... e resistente, simultaneamente. Ela era a praia... a praia era ela. Ela investindo contra si própria... resistindo face às suas próprias investidas...
... Cinco minutos... a respiração quente... doce deixar de resistir...
... Corpos em doce balanço, ao ritmo da cadencia do mar. (És meu... és meu... sou tua... sou tua...) a brisa tornou-se tempestade... a explosão da meia-noite aconteceu. O champanhe brotou, jorrou, vivo, ardente, inundando os corpos em forma de taça. (És meu... és meu... sou tua... sou tua...)
... O olhar, a boca, a respiração quente...
Ele ficou olhando a praia, mesmo sem saber (ou talvez sabendo...) que era para ela que olhava... tão discreta e serena como a areia, tão inquieta e tumultuosa como o mar... olhava para ela e (não) sabia... para ela e para a praia, que afinal eram uma e a mesma...
Num estremecimento súbito, acordo... a praia está fria e calma...
... O Silêncio...

Naquele momento tudo pareceu mais claro. Depois do fim de tarde ameno, agarrou nos restos da flor de laranjeira que estranhamente encontrou junto de si, com as mãos em concha, tocando no chão quente que a fazia sentir-se raiz. Agora, no contraste com o frio da noite, o que permanecia era o eterno cheiro a flor de laranjeira. Fechou os olhos e aspirou sofregamente o odor que se lhe entranhava no corpo de mulher.
Pode observar duas árvores que, paradoxalmente se erguiam no meio do areal, como que dois corpos se amando, eternamente fundidos um no outro. Observou longamente aquele casal de madeira, aquele tronco-homem, aquela superfície sólida que era natureza e era seiva. Aquela eterna cópula de tronco, que balançava ao sabor do vento, da qual jamais se poderia soltar, nem que fosse nos seus sonhos.
Sentiu-se lenta e morna com a tarde e, transformada em desejo, deixou que dos seus pés crescessem raízes, e dos seus braços ramos infindáveis. Da sua boca brotou, voluptuosa, uma flor gigante. Branca. Com o cheiro doce das laranjas.



"Earth", Cláudia B. Croslo

sexta-feira, abril 23, 2004

"Fazer tempo"

Aquela manhã foi uma realidade cinzenta. Pelo menos, não colorida a tons pastel, os dos lençóis quentes da manhã. Sem o conforto da preparação para um dia em pleno.
Faço tempo num qualquer centro comercial... "faço tempo" - não posso deixar de achar curiosa esta expressão. Estaria eu realmente a "fazer tempo"?...
A fonte, em funcionamento há pouco tempo, em banda sonora da minha manhã, lança no ar um ambiente dormente. O garoto claro que pedi não é claro. É escuro. O que faz com que me tenha que acautelar com os efeitos da cafeína, que diria quase drásticos em mim.
Sempre fui muito sensível à cafeína. Mas naquele dia estava mais sensível ao cinzento da manhã que se esfuma na espera do nada . Ai, os poderes do cinzento... O poder de fazer recordar a espera do que não vai ser, a espera pelo dia que já acabou, embora ainda mal no seu início.
O número de "anónimos" aumenta gradualmente com a hora, com a semi-claridade. Em breve, terei de deixar de escrever. Tal como a cafeína, não posso ter muita gente à volta enquanto escrevo.
Espero... um minuto, depois do outro. Continuo a fazer tempo - ideia essa, agradável, a minha capacidade de produzir esse bem essencial que é o tempo. Melhor que a outra - "matar tempo". Mas sem querer, se calhar é isso que faço.

Sem querer e sem esperar, o dia clareou bastante. Para já, quero um dia em tons pastel, se faz favor.



"Water-Lilies", C. Monet
As Vossas Palavras...

... depois de "Efemeridades(?)"

"... e ao olhar para a cor sépia da fotografia, exposta a quem também lamenta a partida dos seus, me recordei do tempo em que vivias, do tempo que foi ontem e em que me davas a alegria que sinto em saber-te capaz de fazer-me florescer hoje, tal como a flor branca daquelas lembranças que nunca se apagarão."

Sr. Ministro

quarta-feira, abril 21, 2004

Efemeridades(?)

No dia de hoje, vivendo,
me fui apercebendo
que os dias são iguais e diferentes.
Hoje que senti a relva verde
debaixo dos meus pés receosos.
Macia e tenra.
Na terra húmida e fértil
uma pequena flor branca
brotou por cima de ti.
Ali fiquei, escutando o teu silêncio,
olhando as flores com que te enfeitei,
lendo o teu poema preferido na memória,
aquele que ainda sei de cor.
E sentei-me sobre ti,
neste lugar sem tempo,
mas cheio de memória.
Verde da relva, branco do mármore.
Fechei os olhos,
ouvi a relva crescer
e soube que eras tu,
por debaixo deste chão,
que a fazias tão macia.



(sem título), Michèle Gagnepain

segunda-feira, abril 19, 2004

Tocar-Me

Diana não era ouvida. Ainda menina, mas já bastante depois da fase da aquisição da linguagem, a criança não era ouvida. Não era ouvida, embora falasse. Até ao dia, em que deixou de ser ouvida pois deixou de falar. O dia em que, aflita, gritou por socorro, por alguém que ajudasse a salvar a irmã ferida, em vão. No dia em que a irmã morreu por não a terem ouvido pedir ajuda foi o dia em que percebeu que falar era inútil.

De tal maneira prolongou este silêncio que quando, muito mais tarde, adolescente já, quis balbuciar uma palavra, ela não foi expressa. A não ser no pensamento.
No pensamento, as palavras corriam livres e, lentamente começaram a ser traduzidas pelo som do piano de Diana. Palavras expressas em música, sentimentos traduzidos para fora sem passar pelo acorrentamento só aparentemente necessário das palavras...
Era como se o piano fosse um prolongamento do seu corpo. Houve mesmo quem contasse por aí que vira lágrimas brotarem das suas teclas e gargalhadas aumentadas pelos seus pedais.

Contudo, esta era uma forma de expressão que dificilmente era compreendida pelos que a rodeavam e por aqueles que amava. Incapaz de exprimir o seu amor a quem mais amava, cedo começou a deixar de tocar e a voltar a recolher-se na invisibilidade do silêncio.

Muitos diziam que era uma caprichosa, uma fingidora. Só não falava porque não queria. Provavelmente não tinha nada para dizer. Coisas sem interesse. Assuntos amarelos. Folhas de rascunho. Melhor esquecer, ou deitar fora.
E assim foi, amarelecida e esquecida pelos anos, Diana era inexpressão, olhos de vidro sem emoção, face sem vida, corpo dormente.
Apenas pensava e aí sim, na sua mente as palavras continuavam a correr livres. Simplesmente ela própria já acreditava que não teria nada para dizer.

Mas tinha, ela sentiu-o no dia em que viu pela primeira vez aquele que a roubaria ao silêncio. Ele viu-a, demorou-se nela com os olhos. Quis falar, mas também ele teve de guardar silêncio, pela incapacidade de comunicar tudo o que sentia. Viu os pensamentos de Diana e desejou que corressem tão livres cá fora quanto o faziam dentro dela.
Tocou-a... tocou-a mais forta ainda. Tocou pianissimo, depois stacatto... tocou-a como a um piano.
Finalmente Diana falara. Mas não disse palavras. Num só melodioso som, cantou de uma só vez todos os acordes possíveis do piano. Desapareceu no suspiro da última nota, a primeira e a última, pois ela era o princípio e o fim da Música, o ponto onde o ciclo se fechava, onde os opostos se tocavam.
Naquele momento transformou-se em som. Afinal toda ela era coisas para dizer.



"Piano", Nicole Folkes

domingo, abril 18, 2004

Formas de Expressão

Naquele dia, quis dizer qualquer coisa. Ou melhor, transmitir qualquer coisa. Uma palavra, um gemido, um movimento, um olhar. Amarrada sobre si mesma, contorcia o corpo criando uma dança obrigatoriamente contida, a dança macabra do alma aprisionada no corpo.

Não sabia se havia de escrever. Não sabia se havia de pintar. E porque não cantar?...

Deu uma volta em círculo e ofereceu-se a si mesma um ciclo fechado. Resolveu chorar. Não seria esta também uma artística forma de expressão?...



"Creation in a Tear Drop", Maxine

sábado, abril 17, 2004

Olhar-Me

Olha o único lugar que conhece donde pode vislumbrar o horizonte. Observa a vasta superfície alentejana. Percorre-a devagar, também, sem pressa. Amarela, dengosa, quente. Ele olha-a como se olhasse para a vida. Onde vê o início, mas também pode antever o fim. Os prazeres de agora, as memórias que no futuro recordará como memórias do pecado. E que bem que esse pecado sabe.

A superfície como o seu unico espelho na origem.

Deixa-se ficar sem pressas. Deixa-se ficar entre o céu e a terra, entre a nuvem e a raíz, na indecisão de não saber a qual deles pertence.

Aspirando o ar e sentindo o sabor do infinito. Semi-cerra os olhos e sabe que é precisamente o mesmo...

Interioridade.



(autor desconhecido)

sexta-feira, abril 16, 2004

Partilhar... (XIII)

Uns quantos dias afastada do mundo e das "novas tecnologias", afastada do correr sem destino e da azáfama, fazem-me pensar que partir pode tornar bem mais doce o regressar.

Fez-me lembrar de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, chamado "Liberdade":

"Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade."

segunda-feira, abril 12, 2004

Férias da Páscoa

Era uma vez um menino, tão pequenino quanto os seus escassos sete anos poderiam fazer adivinhar, mas cuja vida necessitava mesmo de um corpo maior. Tímido, introvertido, apresentava uma docilidade com que nem sempre conseguia esconder o choro de todas as noites e a violência com que, por vezes, precisava de estragar os seus escassos brinquedos.

Vivia com a mãe e o irmão mais velho na sua casa que, degradada, era apenas composta por uma sala onde todos comiam, dormiam e até faziam as suas necessidades num pequeno canto, dada a falta de água canalizada. Numa mesma sala, a cama, a mesa e a sanita. Numa mesma sala, tantos sonhos, mas tão mais pesadelos...

O irmão era uma espécie de um herói para ele, desempenhando como podia o papel de pai que o menino nunca conhecera e do qual nunca se falava apesar das suas frequentes indagações à mãe, que se ficava por respostas vagas. Era com o irmão que passava a maior parte do tempo. Contudo, não raras vezes o encontrava com comportamentos diferentes do habitual e rodeado de objectos que o menino não queria saber para o que serviam.
Apesar das dificuldades financeiras, com muito sacrifício a sua mãe mantinha-o na escola, ao contrário do irmão que deixara de estudar depois de finalizar a escolaridade obrigatória, e que trazia algum dinheiro para casa, a partir de um trabalho que não sabia muito bem explicar qual era...

A sua mãe era uma mulher bonita e muito arranjada, mas denunciada pelas olheiras fundas que procurava diariamente esconder. Tantas vezes, o menino ficava até altas horas da noite nas escadas da entrada, esperando as muitas visitas que estavam com a mãe em trabalho, saírem da sua salinha. Era trabalho, dizia a mãe e o menino acreditava pois via sempre o dinheiro em cima da mesa de cabeceira. E deviam trabalhar muito, se assim não fosse a mãe não estaria sempre tão exausta quando o último senhor saía.

Na escola não falava com ninguém, não aprendia e a maior parte das vezes adormecia durante as aulas, com a cabeça entre os braços, em cima da sua carteira. Afinal, eram o seus braços, para além dos do irmão de vez em quando, os únicos que o abraçavam.

No último dia das férias da Páscoa, quando regressava mais uma vez ao lugar a que chamava casa, encontrou o irmão caído nas escadas, os olhos abertos e fixos, a espuma que saía da boca roxa e entreaberta, a seringa largada junto dos braços maltratados. Em pânico correu para dentro de casa onde a mãe, sem se aperceber da entrada do filho, era brutalmente agredida, pelo menos segundo a perspectiva do menino, por um homem enorme que investia ritmadamente e com força contra ela, em cima dela, fazendo a cama embater consecutivamente na parede. Ouviam-se sons e gemidos do homem e o menino pode ver as silenciosas lágrimas surdas no rosto da mãe.

Incapaz de se mover, ficou por algum tempo a observar o movimento repetido da colcha de cetim rosada, já gasta que não cobria o que o menino não queria ver ou sequer compreender.

Devagar, dirigiu-se à porta e dormiu nas escadas, abraçado ao irmão morto, até de manhã. Quando o sol já lançava a sua luz em redor, beijou o irmão uma última vez. Num movimento mecânico e anestesiado, foi buscar a mochila de pano e dirigiu-se para para a escola onde, desta vez, não adormeceu.

Nesse dia, o trabalho de casa foi escrever uma composição sobre as férias da Páscoa. Sabia que não podia fazer aquele trabalho de casa. Sabia que não podia sequer viver a sua vida de tempos desencontrados. Lembra-se de pensar que não queria mais pensar. O tempo parado, o tempo corrido.
Vindo do sítio a que chamara casa durante sete anos, chegara à escola. Na escola disse que ía para casa. Contudo,o menino não mais foi visto. Nem em casa, nem na escola.



(autor desconhecido)

domingo, abril 11, 2004

Um Ovo da Páscoa ...

... muito colorido e especial para cada um dos que por cá passam.
(junto com um obrigada a todos!)



(autor desconhecido)

Bom fim de semana e Feliz Páscoa!

sexta-feira, abril 09, 2004

Quase Ser Eu

Deixa-se ficar na alvura dos dias
Prolonga-se na linha que divide o céu e a terra
Curva-se num ponto de interrogação
E respira a cor do ar.
Estende-se e divide-se em areia.
Não sabe porque se sente linha do horizonte
Gota de chuva,
Ou tão pouco, raio de sol.

Na verdade, não se importa de quase ser
Palavra não proferida
Pensamento não revelado
Ar não respirado
Céu não voado
Terra jamais habitada.
Não se importa de ser quase
Ser quase já é ser alguma coisa.



"Land Sea Sky", Larry Wall
As Vossas Palavras...

... depois de "Amarelo":

"Quando abriu os olhos sentia-se outro, diferente e com uma percepção das cores como nunca tinha tido nem no seu imaginário de criança, quando a colorida bola de praia era do tamanho do seu mundo. Sentiu que podia ser alguém, que podia ser quem quisesse, que o mundo tinha tomado a dimensão que deveria ter. Só então se lembrou de que estava morto e sem o futuro que a sua acção tinha apagado. Mas... não era suposto haver aqui um Paraíso?

Eu sei que à 2ª feira os Paraísos estão fechados."

Sr. Ministro

quarta-feira, abril 07, 2004

Sem Palavras

Mariana corre desvairada pelo vale, quase tropeçando no caminho que se transformava em obstáculo. Segue, correndo. Persegue. Persegue as palavras que largou e não regressaram. Havia-as gritado já há alguns segundos e desta vez apanhavam-na desprevenida. O que tinha de mais seguro e garantido para si mesma, desaparecia sem nunca ter esperado. Correu pelo vale em busca das palavras que tinha criado e que a tinham deixado. Viu atrás dos arbustos, passou para além da montanha, e nada das palavras.
Nada do eco. Fazia já algum tempo que Mariana se refugiava no vale e gritava palavras ao vento para ouvir o eco em retorno. Este nunca poderia abandoná-la. Pelo menos, fora a ilusão que criara. Traída por si própria, abandonada pelo próprio eco.



"False Mirror", Magritte

segunda-feira, abril 05, 2004

Amarelo

De cabelo revolto e em desalinho, a camisa mal cuidada, o atacador do sapato direito desapertado, caminhava sozinho entre a multidão. Desceu as escadas rolantes em direcção à gare, como se descesse de encontro ao seu destino. Confundiu-se com o cinzento da estação. O cinzento do chão, das paredes, da própria carruagem que teimava sempre em partir quando ele chegava. Só o amarelo destoava no meio de rostos também eles cinzentos, olhares cansados e sem brilho, peles mazeladas e amareladas pela falta de luz subterrânea. Apenas o amarelo da linha proibida.

Sentia-se diferente. Sempre se sentiu diferente, mas hoje um pouco mais. Não porque pertencesse a qualquer credo, religião, etnia ou orientação sexual que o tornassem parte de uma minoria. Não porque não tivesse dois braços, duas pernas como toda a gente. Mas mesmo aquele que é igual se sente especial por alguma oculta (ou não) razão. E talvez fosse precisamente esse anonimato, essa diluição nas massas que fazia com que se sentisse fora da amálgama. Sempre cinzenta.

Mas hoje sentia-se mais diferente. E isso tinha a ver com o amarelo. O amarelo proibido. O amarelo é a cor do desespero. É também a cor do pedido de ajuda que não vai chegar, da carruagem que parte quando se chega...
Naquele dia foi.
Sentia-se mais diferente principalmente porque durante os longos oito minutos ao longo dos quais uma multidão de rostos anónimos se aglomerava aguardando nova carruagem do Metro, ele permaneceu para além da linha amarela traçada no chão, precisamente antes do fosso dos carris. A linha proibida. E ninguém reparou que o seu olhar era fixo, parado. Ninguém reparou que o seu olhar era amarelo e gritava.
No entanto, ninguém ouviu, pois o seu grito perdeu-se no som ensurdecedor do transporte que se aproximava rapidamente da estação. Não houve muito tempo. Os sons misturaram-se.
Também o seu corpo se misturou com os carris e os pedaços de ferro que rasgaram e cortaram a carne, sem piedade. Se pudesse ter tirado uma foto, sem dúvida, que teria saído amarela. Contudo, no passo final, foi possível vislumbrar um clarão de cores a cheirar a paraíso.



"Loneliness", S. Dali

domingo, abril 04, 2004

O Sol...

Entra pela janela... as saudades falaram, gritaram talvez... e ele veio. Não precisa de pedir licença. É só entrar e inundar de luz. A esperança do Verão.

sexta-feira, abril 02, 2004

Saudades do Verão

"O tempo, o tempo" - penso aflita... e não sei onde ficaram aqueles minutos que não vi, não senti. Não dei por passarem por mim. ou terei saltado e ignorado essa porção de voltas dos ponteiros, largada e vencida na rotina e na sensaboria dos dias...?

Penso na nuvem branca, única no céu, rodeada das outras bem mais carregadas e enfadonhas. Deixo-me ser ela e penso só na nuvem branca. Purifica-me os pensamentos. Sou a alvura da nuvem, sou o algodão do céu. Continuo a caminhar e embrenho-me na floresta de cinzas, querendo-me mais uma vez em estado líquido e gostando de ser eu própria uma lágrima derramada.
Não consigo chover.

Volto aqui. Ali. A esse sítio onde só o meu pensamento mora e fica, gosta de ficar. Penso em escrever. Não sei porquê, mas os dias de chuva trazem inspiração. Não sei ela vem nas gotas de água que se suicidam, uma a uma, violentas e decididas, caídas lá do alto. Não sei o que são.
Lágrimas de algum anjo ou apenas saudades do Verão...



"Raindrops", Janet Boyd

quinta-feira, abril 01, 2004

Partilhar... (XII)

... um poema que sempre me encantou:

" Algas

As algas negro-cerrado,
Que eu trouxe da beira-mar,
Guardo-as num missal dourado,
Onde costumo cismar.

Às vezes, triste e cansado,
Quando o vou a folhear,
Dentro do livro encantado,
Eu oiço as algas chorar...

Choram os tempos de quando
Viviam no mar em bando
Com os peixes e as areias.

E eu cismo, ao ver esses trapos,
Que as algas são os farrapos
Dos vestidos das sereias."

António Nobre, in "Poesia Completa"



"Mermaid", Edmund Dulac