segunda-feira, maio 31, 2004

Prolongamentos

Sobre a pedra rugosa descansavam, como suspensas, duas tábuas que se cruzavam formando quatro ângulos rectos. Nas extremidades de cada uma das tábuas estavam pousados vários objectos, terra, frutos, um recipiente com água, já estagnada pelo tempo.

Permaneciam em precário equilíbrio, semibalançando ao sabor do vento. Contudo, este equilíbrio só se tornava possível pela presença de uma pequena flor, estranha mas bela, que caía com suavidade no ponto certo do cruzamento entre as tábuas, permitindo-lhes não desabar e, portanto, não estragar o belo quadro de natureza formado e construído ao longo dos anos.

Ao início, a doce flor caíu docemente, naturalmente sobre as tábuas, mas com o passar do tempo, começou a sentir que gostaria de florescer noutras direcções. No entanto, se o fizesse, logo todo o quadro seria arruinado e todos os elementos nele presentes pereceriam. A pequena flor parecia consciente do papel que desempenhava nesta dinâmica e durante muito tempo permaneceu imóvel e botão sem flor.
Sem ter desabrochado, um dia a vida da bela flor chegou ao fim, e caíu plácida e lentamente no chão, desfazendo-se em pétalas coloridas.

Foi então que, quando se esperava a tão temida catástrofe, nada aconteceu... de facto, no momento da queda, quando as pétalas começaram a voar, uma por uma, um pequeno ramo tivera já crescido e encontrado novo ponto de equilíbrio, no momento em que os elementos se encontravam, também eles próprios, livres para se equilibrar.

Contrariamente ao esperado, nada aconteceu, a importância da pequena flor como fonte de todo o equilíbrio não era mais do que uma ilusão. Nada aconteceu, a não ser a despedida da pequena flor, que morrera sem sequer ter florescido.



"The Scales of the Human Soul", Drora

sábado, maio 29, 2004

A Ferida e o Punhal (e vice-versa)

O punhal era de fina prata, afiado e dilacerante.
A ferida, aberta, recém rasgada, em carne viva.
Ambos se odiavam, se detestavam. A ferida e o punhal.
No entanto, não podiam viver um sem o outro: o punhal precisava de provocar a ferida aberta e a ferida aberta perderia toda a sua razão de existir se não existisse o punhal. Assim como o filho que não conhece os pais e se perde na busca de si próprio.
A ferida e o punhal. O punhal e a ferida.



"Doubting Thomas", Caravaggio

quarta-feira, maio 26, 2004

Desassossego

Angústia poucas vezes sentida
ardente começo,doloroso fim
em novo ciclo, conhecido e velho
que afaga e dói.
Que como se a música voltasse
e despertasse
tudo o que de vil e ardente
luto para manter quedo.
Impertinente silêncio forçado
que ecoa e destrói,
que rasga o som
que me fere dentro.
E a música volta
e deixa o tumulto,
o rasto da inquietude
me arranca o brado selvagem
de quem se divide,
de quem parte, de quem se perde.
E a música é punhal.
e a música é loucura,
o vento em desassossego,
a Alma que transborda,
que vive e porque vive sangra.
Bebo o sangue vivo,
e deixo-me embriagar
no desalinho do cabelo solto,
ritmado pelo vento,
dançante, rodopiante, inquietante.
Como a espuma das ondas do mar,
a música vai
e vem...
Vem
e vai...



"Unquiet Slumber", Gina Gambidilla





terça-feira, maio 25, 2004

Straight Story

Era uma vez uma menina que sonhava ser princesa. Sonhava com as festas, os vestidos e, claro, com o príncipe encantado.
Cresceu e, contra todas as expectativas, tornou-se mesmo princesa. Vestiu os lindos fatos, participou em festas sem conta. Tornou-se princesa, casou com um príncipe não tão encantado assim, encheu-se de regras, encheu-se de artifícios, passou a dizer sim quando queria dizer não. Assim estava segura. E a menina viveu infeliz para sempre.



Lewis Carroll

segunda-feira, maio 24, 2004

Tinta Fresca

Naquele dia senti a caneta de modo diferente. Escorregava pela mão e só deixava escrever com algum esforço. Eu insistia naquela actividade lúdico-sofrida de escrever o que não sabia. Escrevia o mundo e a incapacidade de o ser, ao senti-lo todo de uma só investida, de uma só golfada. Escrevia e doía escrever. Mas era uma dor doce. Como se fosse suave o deixar-se afogar no próprio esforço de quem quer dizer, mas não tem boca.

Ferida, magoada, faço o último rabisco, a minha marca. O meu nome, que não é mais do que um símbolo, a conjunção de letras onde tento guardar uma identidade, um sentir. É nesse momento que dói mais. Fecho os olhos por momentos... Breves momentos em que fico só dentro de mim.

A janela abre-se para fora, olho de novo a folha. Era por isso que doía: a tinta está fresca, observo o que sentira - a alvura branca escrita a sangue do meu.

Verto para fora o resto de mim.

domingo, maio 23, 2004

As Vossas Palavras...

... depois de "Gostaria...":

"Fazer listas: muitas vezes intenções inumeradas acabadas em contricções.
Bom é saber contornar o tempo, agarrar cada momento e ser fiel à vontade e sentimento. As acções são os riscos a apagar cada linha da lista."

Ardente-Mente


"Entre o querer e o ser dúvidas se afogam
P'la onda que atropela as próprias lágrimas;
Irrita o sol secante dos que logram
Fingir nessa verdade as suas lástimas.
Entre o querer e o ser as diferenças moram
E a assunção nos aproxima das máquinas,
'inda longe porquanto saciáveis
Lentos nesse mundo de apaixonáveis."

Velasquez


"O fazer nunca deveria estar somente relacionando ao construir, ao destruir também, algumas vezes a inercia é uma construção "singular"..."

Victor Tales


As Vossas Palavras...

... depois de "Perguntas Sem Resposta (VIII)":


"Quando me sinto por entre as máscaras usadas, encontro o Eu que a todas elas pertence, fiel ao instinto que brota independente."

CCC



"Undiscovered Self" - Jerry Uelsmann

quinta-feira, maio 20, 2004

Gostaria...

Pensou que gostaria de ter tido mais tempo livre, passeado mais, viajado mais, conhecido mais lugares... ter estudado mais, conversado mais, convivido mais, dançado mais. Gostaria de ter ajudado mais, de ter tido mais tempo para si, de ter amado mais e de se ter amado mais. Gostava de ter lido mais livros, beijado mais namorados, sido menos tímida, menos pessimista, menos agressiva.
Gostava de ter cheirado mais flores, abraçado mais pessoas, ter sido menos bem comportada. Gostava de ter pensado menos, gostava de ter sentido mais.

Fez uma lista de tudo o que gostava de ter feito mais e menos na sua vida. Assim como uma lista de supermercado, diferindo desta pelo facto de não poder comprar um passado diferente.

No entanto, embora ainda não o saiba, não deseja realmente ter feito todas essas coisas... deseja poder desejá-lo agora. O que fez enquanto não fez tudo o que supostamente desejava? Construíu continuamente infindáveis listas como esta...



"Dreamy", Ashley

terça-feira, maio 18, 2004

"Fui um bando de miúdos..."

O dia da sua morte foi confuso... estava calor e o fogo ardia sem parar. Os ossos esperavam para se tornarem cinzas.
Durante esta espera, ouviu as vozes, os murmúrios, os soluços.. pessoas feias derramavam água dos olhos... estavam mais vermelhas do que o costume. Pessoas de cujos rostos já não se lembrava, surgiram na multidão, abraçando-se. Pareciam ter-se visto pela primeira vez, a avaliar pelo modo como transmitiam ternura, se ajudavam e, mais uma vez, se abraçavam. Nunca os tivera visto abraçarem-se, só agora quando pensavam que ele não os estava a ver. Mas estava. Não no caixão, mas algures num plano superior. Superior já que a vista era de cima. Eles não olhavam para ele, mas sim para o caixão de madeira ao centro... ah, inegável limitação humana!
No momento já inesperado, eis que ouve algo de familiar: as suas próprias palavras. Retiradas da sua pena e proferidas por outrém. Os soluços intensificaram-se. Soube-lhe bem ouvir o som da sua alma, agora muda. "Fui um bando de miúdos", ouviu-se.
Ficou, assim, mais feliz por partir agora. Empurrou o seu corpo para dentro da fogueira.



"A Soul Brought to Heaven", 1878
Perguntas Sem Resposta (VIII)

Em quantas partes de mim sou eu mesma...? E em quantas me sou infiel?

sábado, maio 15, 2004

Passeando...

Deslizo na superfície macia. A seda provoca-me. Agarro-me a ela, saltito, faço-me criança. Entrego-me neste mar de afagos, que me acariciam, gozando a planície que se fez curva no papel.
Que bom é passear por entre as tuas madeixas castanhas.



"Painting Hair", Hillary Sadur

sexta-feira, maio 14, 2004

Cantando as Lágrimas

Acordo no sobressalto da manhã silenciosa. O que fora outrora silêncio era agora um gemido prolongado e distante. Misturada ainda no sonho, tento aos poucos perceber de onde chega o som, se de dentro, se de fora de mim...
Sonolenta, oiço o piano dos vizinhos de cima. Recém-adquirido, faz as delícias de miúdos e graúdos. O instrumento canta ao longo do dia, em diversos tons, é certo.
Contudo, há algo mais que se ouve ao longe, por entre a alegria do piano de cima. Os intervalos entre as músicas deixam escapar lágrimas e saudade.
Intrigada, obrigo o corpo mole a, passo a passo, aproximar-se da origem de tal chamamento.
Com um aperto no peito, vejo, pela primeira vez, de que são feitas as lágrimas da música:
Era o meu piano que chorava as mágoas de me ter perdido.



"Lilypad Piano", Timothy Martin

quinta-feira, maio 13, 2004

Os P's...

... do Sr. Ministro :
(depois de "P de Para Sempre")

"...Parece-te pouco?
por pareceres perdida
posso eu procurar os passos,
perigosos para poucos mas
privados por principio,
particulares por prazer,
por onde passaste
perturbada e em pânico
pensando parar,
pensando pagar
preços que para poucos
podiam permanecer pálidos
pela procura de paraísos
pintados de purpura
postos de parte
por parecerem perdidos
para por fim, em paz
perceberes que possues
parte do que pensavas
permanecer para além de ti própria."

(Obrigada, mais uma vez!)

quarta-feira, maio 12, 2004

Fico, Espero, Canto

Oiço-me em memória,
oiço-me em presente
perco-me na história
de mim sempre ausente...

Fico, espero, canto
a música que chora,
desmaio no pranto
de quem morre agora.

E então me deixo,
suave me abandono
liberto-me do fecho
do áureo adorno.

Lençol que abraça,
nudez que envolve,
pureza com graça
que o branco devolve.

Fico queda e nua,
negra noite ardente
Um dia fui tua,
em sonho premente.

E agora, rendida,
me entrego, me beijo,
saro a minha ferida
em cru vil desejo.

Fico, espero, canto
a música sussurrante
Sussurrante canto,
no sono dançante.

Fico, espero, canto
Fico, espero, canto...






segunda-feira, maio 10, 2004

(Pulsações)

Na aldeia todos o olhavam com estranheza, e os miúdos que brincavam em grupo na rua, perseguiam-no à socapa com a curiosidade infantil (ou nem tanto) de perceber se as histórias que se contavam eram, de facto, verdadeiras.

O rapaz sempre fora calado, mas mais calado se tornara mercê das insistências familiares e vizinhas que achavam que um futuro chefe de família deveria ter certas qualidades que não eram em si visíveis de todo. Deveria demonstrar certas habilidades sociais, galantear as moças da terra, no fundo comprovar a sua masculinidade e a sua viril qualidade de homem que é homem. Contudo, desde menino que para os mais atentos, o que não era o caso da maioria naquela aldeia, que se revelara emocionalmente astuto - consciente da incapacidade para agradar a pessoas demasiado exigentes ou demasiado cegas pelos condicionalismos sociais, cedo se escondeu por detrás de uma fachada fria, dura e impenetrável.
Não tinha amigos, namoradas não lhe eram conhecidas, desde muito novo que deixara de falar a amigos e conhecidos, apresentando-se sempre completamente desprovido de qualquer expressão que revelasse a mais pequena e ínfima emoção. Contavam-se histórias de que um dos seus passatempos favoritos era ir para o campo, onde matava pequenos pardais cruelmente, arrancando-lhes asas, patas, bico e até os olhos... Corria o boato de que o seu coração era de gelo, alguns afirmavam mesmo que não tinha coração.

Mas ele sabia bem que o tinha. A aparência dura e fria era a carapaça que escondia a sua fragilidade. Soube bem que tinha coração quando este saltou súbita e inesperadamente, aquando da chegada de uma camioneta de excursão que parara por alguns instantes na aldeia, e donde viu descer aquela rapariga de cabelos castanhos anelados. A mesma expressão endurecida e fria, contudo desvanecida ao encontrar outros olhos fixos nos seus. Os laivos de reflexos vermelhos no brilho acastanhado dos anéis do cabelo da rapariga fizeram correr o sangue nas veias do rapaz. O peito doeu para sempre e um dia, corroído por essas súbitas e lancinantes dores, sem mais aguentar e conduzido por um impulso instintivo mais forte que ele, largou a terra e partiu em busca da menina dos cabelos anelados.

Naquele mesmo dia, ao tomar conhecimento do aparatoso acidente na estrada, a população da aldeia, num acesso de curiosidade bizarra e mórbida, correu ao local do sinistro, onde esventrou o corpo do rapaz, já de si mutilado pelas circunstâncias, com a sede insaciável de saber se os boatos se confirmavam. No meio do sangue e das entranhas, os órgãos eram puxados e retirados, rasgados pela fúria e pelo delírio. Tudo estava lá, menos o coração. No seu lugar, um buraco negro, tão grande quanto a culpa e a ânsia daquela gente desfigurada pela indiferença pela morte. Confirmara-se: o rapaz não tinha coração.

Algum tempo mais tarde, ouviu-se na aldeia a estranha notícia de uma rapariga com cabelos cor de fogo que morrera, vítima de um estranho ataque cardíaco, resultante do facto apurado posteriormente de pulsarem no seu peito dois corações.



"Heartpainting", Lacey Graves

domingo, maio 09, 2004

Perguntas Sem Resposta (VII)

Pergunto-me se a recorrente expressão "voltar atrás", caracterizadora dos eternos ciclos na vida, não é mais do que um conforto para quem sabe que o regresso não é possível, e a estrada só tem um sentido...

Respondo-me sem me esclarecer, assumindo em voz alta que "Talvez...", mas acrescentando que quem sabe o "caminho" não existe e o tempo não é uma ilusão criada para poder fugir à clausura do momento e à afinal eternidade do presente...



Igor Sidorov, "Message of Stopped Time"

sexta-feira, maio 07, 2004

P de Para Sempre

Partindo por partes perdidas
peco e perco-me.
permaneço periclitante
perene paraíso.
Perdida por ti.
perdida em mim.
Penso, pondero,
paraliso e petrifico,
mas a paixão pressiona
persegue sem piedade
palpitando na pulsação,
no impulso
sem placidez ou paz.
Puro prazer,
puro pecado.
Pouco te peço:
que me pertenças
em P de Para sempre.



"Eternal", Marc Civitarese

terça-feira, maio 04, 2004

Dias

Levantei o reposteiro da janela, sem saber o que encontraria. Encontrei mais ou menos o mesmo, só que diferente.
As cores cheiravam, e os odores eram coloridos... O vento continua a soprar, mas vejo-o como um tornado ao longe, que se aproxima e afasta, em jogo de dança que ameaça e engana.
Decido aguardar e esperar que as cores se possam ver e os odores se possam cheirar.

domingo, maio 02, 2004

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... um poema sobre Kafka:

"La Moneda de Hierro
En: Traum

Lo sabían los tres.
Ella era la compañera de Kafka.
Kafka la habia soñado.
Lo sabían los tres.
Él era el amigo de Kafka.
Kafka lo habia soñado.
Lo sabian los tres.
La mujer le dijo al amigo:
Quiero que esta noche me quieras.
Lo sabían los tres.
El hombre le contestó: Si pecamos,
Kafka dejará de soñarnos.
Uno lo supo.
No había nadie más en la tierra.
Kafka se dijo:
Ahora que se fueran los dos, he quedado solo.
Dejaré de soñarme."

Jorge Luís Borges

sábado, maio 01, 2004

O Medo

Estou fraca porque me sugas a força. Me transformas em animal que já sou. Mas só o fazes porque tens medo. Pânico.
Tens medo do branco, compras tudo em preto; tens medo das alturas e vives numa cave; tens medo que te roubem, te violem, e pões trancas à porta; tens medo que te persigam e munes-te de uma arma... O medo, o medo,a morte, a morte. Tens medo de não controlar e dispendes as tuas moedas e as tuas energias para assegurar-te de que nada escapa ao teu controle.
Cansativa, essa vida em que procuras o motivo falso, já que a causa última ocultas até ao último fôlego. E no dia que descobrires que nada controlas e, acima de tudo, que não controlas o dia da tua morte, matar-te-ás. Morrerás às tuas próprias mãos.
A arma? Essa não é precisa. Repararás que na tua carne se fundem pedaços de metal mortíferos, o ser que se devora a si próprio, fatalismo antropófago. És arma de auto-destruição. Tudo porque não quiseste reparar que quem te perseguia eras tu...



(autor incógnito)