domingo, junho 27, 2004

Efeitos do Vento

O vento sopra demais, ouve-se demais por entre as frinchas das janelas. Vê-se nas folhas das árvores e nos cabelos das raparigas. Passeia-se hoje com mais força, com mais velocidade. As folhas da árvore em frente acenam, em quase sorriso verde, algumas despedem-se mesmo e acompanham o ar em movimento em viagem sem destino.
Ninguém percebe, mas o vento gira, rodopia e transforma. Paciente, disfruta de todo o tempo do mundo, que respira. Diz-se sempre que o vento muda o que não se pode ver com os olhos, que leva muito mais do que se diz. Sempre muito mais do que devia.



"The Gust of Wind", Jean-François Millet

quinta-feira, junho 24, 2004

Inocência

Era linda a menina loura, de olhos azuis. Candura e inocência não poderiam ter melhor lugar para morar. Bem comportada e prendada, sempre pronta a ajudar.

Estranho passatempo tinha a menina de faces rosadas. Horas e horas passadas no quintal, sentada e debruçada nas escadas cor de tijolo. Perdida nos seus pensamentos, pensavam os que a rodeavam.
Mas a menina loura de olhos azuis passava tardes a fio observando os carreiros de formigas que se formavam em redor da azarada abelha morta. Era assim, uma após a outra. Começando numa tarde a observar o fenómeno que se dera espontaneamente, já era ela que o provocava. Ía até a cascata e tentava por todos os meios afogar mais uma abelha. Tentava que ficasse semi-morta para que, uma vez trazida com uns pauzinhos para a escada, onde o exército das formigas se reunia, transportando o aparente cadáver, a abelha recuperasse e lutasse pela vida, ainda que invadida e quase condenada.
Os seus olhos azuis brilhavam um pouco mais em face da violenta batalha.
Outras tantas vezes, após o longo e tortuoso caminho percorrido pelas formigas transportando a sua presa, a menina pegava na abelha e colocava-a no ponto inicial. E as formigas voltavam atrás, para voltar a percorrer o caminho novamente.

Certo dia, deu por si a pensar quem estaria a observá-la e que tipo de formiga seria ela. Seria a abelha ou seria a formiga? Não sabia. No entanto, nada disto lhe trazia menor candura.



"Alice Liddell", L. Carrol

terça-feira, junho 22, 2004

A Janela Baixa

A janela baixa é o bilhete para o mundo
Viajando para dentro, viajando para fora, viajando em redor.
Sempre gostei de janelas baixas. Onde projecto e regresso, aqui e ali, e desenho no ar lugares por inventar.
Sensação de ter de acordar, vontade de perpetuar.
Cavalgo no vento, no tempo que fica, enlaço o segundo, liberto o minuto que deixa... que parte.
Não sei porque se misturam o azul turquesa com o raio de sol, a água fresca com os risos dos miúdos. Não sei de onde vêm, não sei onde ficam, riem, pulam, dançam, jogam com os sentidos, dispertos, feridos.
É na janela baixa que me perco, me encontro, me mostro, me escondo, me deixo ficar.
Louca, me atiro, e caio, resvalo.
E da janela baixa, no tempo me lanço, logo enfim descanso, me desfaço no vento.



Magritte

domingo, junho 20, 2004

Incessante

A música surge debaixo da terra
como o coração laborioso
perene, persistente
mesmo quando não se quer
Como ele, que dança,
mesmo sem alegria,
mesmo sem a alma como par.
Como o sussurro da brisa
segredante, viajante no vento.
Como a memória que não esquece
moradora na pele e no sonho.
Como o sol que espreita
por entre a penumbra
sombria das nuvens lacrimosas.
A música cheira a terra molhada,
como nas tardes de Verão,
videntes da amarelada lua cheia.
Elevação do vapor quente
que se entranha e não se estranha,
Como a locomotiva esbatida,
ritmada e ofegante,
Como a tua respiração dormente,
lenta, contudo incessante,
incessante,
incessante.



"Rain, Steam and Speed", W. Turner

sábado, junho 19, 2004

Na Sala Branca

Durante algum tempo nadei num ventre que um dia foi pequeno demais para mim. Desses tempos já mal me recordo, mas a verdade é que cada vez que oiço músicas de embalar sou capaz de recordar sensações agradáveis que não chego a compreender. O doce embalar que organiza e constrói.

Um dia deixei o estado líquido e quando cheguei, entrando de rompante no que seria o meu mundo por algum tempo, observei com cuidado, vagarosamente, sem pressa, tudo o que se passava em meu redor.

Entrei numa grande sala branca. Não havia muito para ver... Tão branca, que se tornava aborrecida e monótona. Nesses primeiros tempos não era difícil adormecer perante tal cenário. Mas ao longo do tempo, começaram a surgir aspectos e perspectivas que se tornavam decifráveis e compreensíveis no lugar onde antes houvera o nada. Apercebia-me agora de uma multidão de outras pessoas, de outros seres que, tal como eu, viviam e partilhavam a alva sala. Olhei-os com atenção. Tentei entrar nas suas almas e vê-los mais de perto. Estranhamente todos se comportavam como se assistissem, na mesma sala de cinema, a filmes diferentes. Alguns sorriam timidamente, outros riam às gargalhadas. A sala era da cor do arco-íris, diziam. Outros ainda, mostravam grande desalento, enquanto outros choravam copiosamente, afirmando ter visto monstros cinzentos projectados nas paredes.
Aos poucos fui notando que alguns grupos se formavam e que onde antes se podiam ver lágrimas era possível ver alegria, mas também onde anteriormente se rasgavam sorrisos, surgia o desespero. As pessoas partilhavam pontos de vista que faziam com que as reacções na sala permanecessem em permanente mutação e metamorfose.

Também eu figurava neste quadro e, absorta na observação dos outros esquecera de decidir de que cor pintar a minha sala. Sabia que nunca iria saber como era de facto a sala branca. Talvez nem sequer fosse branca. Talvez fosse de todas as cores. E como queria rir e chorar, e ser mais do que uma, ser muitas, deixei fluir o tempo através de mim e esperar as projecções, uma após a outra. Pois afinal tudo o que colocaria na sala branca não estava senão dentro de mim.



"Magritte's Window", David Johnson
Poema de Retalhos

Porta entreaberta, dança com o vento que te envolve, sensibilidades protegidas, o caos da respiração. Fecho-me neste círculo intenso de fresta de luz, no tempo que olho o espaço fundido num só olhar... deito-me nessa nuvem e adormeço, adormeço por ti...

Portas ou janelas, espelhos ou labirintos, cavalos alados, ou unicornios. Histórias do sentir, refúgio de solidão, navegante sem rumo.
Dor? certamente. sentir? provavelmente.
poema? cor?
simplesmente, viver...


Porta entreaberta. Alethéia. Verdade que se desnuda e que se refugia. Lugar utópico? Não creio. Onírico? Talvez, mas ainda assim um lugar.E Pegasus nos leva a qualquer lugar.


(Obrigada a todos!)

quarta-feira, junho 16, 2004

Porta Entreaberta

Porta aberta, criação nascida
Renascida no intervalo dos dias
Vivida, sentida e deslumbrante,
Fascinante realidade despida.
Pudera lá ficar, viver a eternidade
Tempo sem tempo, espaço sem lugar.
Mas o tempo vai e vem
No espaço que sonho, não permaneço.
Deixo a porta entreaberta
Espreito, no intervalo da noite,
O meu cavalo com asas,
Lá, nesse eterno lugar,
onde afinal vou... e me deixo ficar.




"Bamboo Lady", Cynthia Tom

domingo, junho 13, 2004

Caminhos (Des)Construídos

Voltada para uma parede desde que nascera, já não sabia o que era uma porta, uma janela que deixasse ver para além de cinco metros defronte de si, já não sabia recordar o que era "lá fora". Apenas o que era "cá dentro" e esse era escuro, medonho, húmido e assustador.

Muitos anos foram passados caminhando contra a parede rugosa, caindo sempre que com ela embatia. Uma vez após outra. Muitas vezes depois de muitas. Mas por mais que andasse ao longo deste obstáculo, impossível de transpor, nunca foi capaz de encontrar uma folga, uma porta, uma janela, um intervalo de parede por onde lhe fosse possível passar.

Todos à sua volta tinham pena dela, ajudando-a como podiam, dando-lhe esperança. Embora ela, sempre insatisfeita, insistisse em afirmar que os outros nunca lhe eram suficientes.
Passados muitos anos, já aleijada de tanto embater na sólida parede, já não se podia mexer, contando com uma série de pessoas que eram agora os seus braços e as suas pernas, os seus olhos, o seu nariz, a sua boca. Embora continuasse as suas eternas queixas, era possível ver que, desistindo de voltar a enfrentar a parede, se tinha acomodado num canto onde lhe era agora mais confortável ficar, sendo servida por toda aquela gente que nutria por ela uma frequente pena, que não era senão a pena de si próprio.

Contudo, certo dia, apercebeu-se de que as pessoas começavam, devagar e gradualmente,a deixar de vir ter com ela, olhando-a de soslaio, como se algo de bizarro se passasse.
Por momentos, numa fracção de segundo, quando olhou em frente, constatou que à sua frente já não se erguiam as temerosas paredes. Na verdade, foi possível por momentos ver uma longa sequência de janelas abertas que deixava ver uma bela composição de azuis. O caminho tornara-se potencialmente macio.

Tudo decorreu em fracções de segundo... que fazer agora que já estava aleijada, sentada, dependente dos serviços dos que a rodeavam...? Todo este tempo teria sido em vão. Rapidamente os seus olhos passaram a ver novamente a parede cinzenta, ainda mais sólida, ainda mais intransponível. Tudo isto, apesar de na verdade, existir um caminho apesar de difícil no início, bem mais suave, bem mais macio...

Face a tal contradição, as pessoas à sua volta começaram a tentar mostrar-lhe que existiam saídas. Contudo, estas tentativas colocavam sempre mais em causa o pequeno mundinho que ela construíra para sobreviver. Negando veementemente tal realidade, iniciava-se sempre uma onda de insultos às pessoas que a queriam arrancar daquele torpor e afinal estranho bem-estar.

A pouco e pouco, todos desistiram de ajudar quem não queria ser ajudado. A solidão passou a valer-lhe de companhia e ela pode, uma vez mais, confirmar que ninguém era bom o suficiente para ela, que ela não prestava, e eternizar a sua inabalável fé na ruindade do mundo.



"Labirint", Vinczé Janos

quinta-feira, junho 10, 2004

Por Dentro

Diziam que tivera enlouquecido naquele trágico dia. No dia solarengo e sem nuvens em que aquele que amava a deixara para sempre.

Os seus olhos castanhos já há muito tinham perdido o brilho de outrora. Desde o dia em que ela, com os seus olhos cor de jade, sempre prescrutadores, começara a questioná-lo sem dó nem piedade.

Nos primeiros tempos eram os locais onde se tinha quedado durante o dia, mais tarde as exigências passavam já a ser saber todas as pessoas com quem falara, durante quanto tempo, bem como os assuntos abordados. Não satisfeita, perseguia-o pela cidade, numa ansiedade auto-mutiladora e numa tortura incessante que não o deixavam respirar. Ainda que a perseguição continuasse, ela persistia no jogo das perguntas ao final do dia. E ele respondia, respondia sempre. Por vezes, a resposta era uma simples lágrima que se escapava e escorria silenciosa. Este amor doentio fazia-o sofrer numa estranha tonalidade, brincado com os limites do suportável.

Estranhamente este silêncio ainda mais a enfurecia, que iniciava nessa altura o seu rol de acusações.
"Mentes" - dizia - "Porque não te abres para mim?". Insistia. Persistia. E um dia explicou-lhe que ele tinha pensamentos e sentimentos inconscientes. Ele já o sabia, mas também sabia que haveria partes dele próprio às quais nunca teria acesso. Talvez nem quisesse ter. Mas ela, ignorando qualquer conceito teórico ou prático da palavra "inconsciente" ditara que queria saber o que se passava na sua parte inconsciente. E então ele inventava histórias bizarras, para a satisfazer nessa insatisfação que não parecia ter limites. Mas cedo ela percebeu que eram mentiras e o ciclo de acusações se iniciava mais uma vez.

Sempre cada vez mais forte, sempre cada vez mais torturante. O rapaz dos olhos castanhos sem brilho não sabia quanto mais poderia aguentar. Apenas mais algumas horas.
Nesse mesmo dia, os olhos cor de jade encontraram os olhos castanhos sem brilho, mais baços ainda, escancarados, o crânio esfacelado ao meio pelo machado que descansava sobre o manto de sangue. Um semi-sorriso no rosto sem vida exibia-se a si próprio, junto a um bilhete escrito para a sua amada: "Aqui me tens aberto para ti".

Dizem que enlouqueceu nesse dia. No dia em que a encontraram coberta de sangue, tentando enrolar-se em posição fetal dentro do crânio aberto do rapaz...



"Birdwoman", Nancy Wood

terça-feira, junho 08, 2004

As Vossas Palavras...

"O mar guia e abraça, embala, acorda, é vida, metamorfose, castelo de água, de sal, de sangue, é cor, poesia, laço, abraço, melodia, é azul-verde-água que voa, é marinheiro-gaivota, que ama em sonhos o amor que deixou em terra, é alma que guia…"

Corto-Maltese, depois de "Abraço Azul"


"Não me lembro bem dela - daquela praia.
Não me lembro do frio da água
Nem já sei de que cor era o mar
Gosto de pensar que lá estive e o sol me aqueceu
Gosto de imaginar um mar glorioso de verde e branco
Gosto de me sentir como a ampulheta que, sem pressa, aguarda que toda a areia da praia - daquela praia - passe por ela.
Sinto-me bem e vivo enquanto isto acontecer
E houver, na minha mente, uma imagem imaginada da praia - daquela praia
A praia inicial da minha vida."


Sr. Ministro, depois de "Abraço Azul"


"- Passei por aqui, confesso que não sei já de onde....
- Também eu, meu caro. Pois é no costume que habito e tenho por hábito a tradição.
Sou dependente da rotina que injectam no meu comportamento. Vivo o vício do ciclo infinito da engrenagem de repetição. Tenho porém, momentos lúcidos, que me servem de tormento.
.... São as repetições que me convidam, como sempre, a entrar. E onde me vicio na permanência.
- Bom, obrigado pelo teu canto e por esse teu jeito de comunicar."


Simulador, depois de "Repito-me"


"Num beijo quebra-se o tempo, a cronologia, a angústia do tic-tac ouvido vezes sem conta. abandonamos a solitária observação do ponteiro e diluímo-nos no concreto dos lábios..."

Troblogdita, depois de "Repito-me"


segunda-feira, junho 07, 2004

Repito-me

Repito-me quando falo
Quando penso,
Quando sonho.

Repito-me como o mar,
Nos dias e também nas noites,
No tempo indiferente.

Não raro me perco,
quantas vezes me encontro
E repito o desencontro.

Repito os tempos,
os lugares, as pessoas.
Repito, imagine-se!, o vestido.

Sou sempre igual,
permanente na fugaz metamorfose.
E repito a mudança.

Em tudo me repito, menos em ti,
menos no beijo,
que é mais repetido que a repetição,
que é clonagem até à exaustão.

E ainda que repetido,
sinto como da primeira vez
e repito um sentido
inaudível sussurrado "Outra vez".



"Nude By Sea", N. Rosse

domingo, junho 06, 2004

Demasiado

Quantas vezes teria ele que sentir o mesmo desânimo? Era sempre extremamente desoladora a sensação de vacuidade com que deixava a sala onde minutos antes decorrera a projecção da película. Vidas cheias, sentidos despertos, sensações demasiado cor de rosa ou demasiado negras. Não importava muito a tonalidade. Não, isso não importava. A tonalidade era mero pormenor. O importante era o "demasiado"... Demasiado vibrante, demasiado eufórico, romântico, sorumbático, triste, ou melodramático.

Todo o (des)equilíbrio estava na palavra "demasiado" que dava às duas horas de filme um toque qualitativamente diferente. De igual modo, não seria relevante se acabara de assistir a um épico histórico, um romance, biografia ou drama. Desde que a intensidade lá estivesse. E normalmente estava, em escandaloso contraste com a sensaboria que era a sua vida.

Na verdade, nem sabia bem porque faria esta comparação: o filme e a vida.
Ele queria mais riso e choro, mais grito, terror, sexo e violência na sua vida.

Um dia, depois do costumado desalento após uma solitária sessão de cinema, à mesa do café, sacou do papel e caneta e começou a listar as diferenças entre a sua vida e um filme. A lista ficou vastíssima, mas a importância que lhe saltou à vista foi a duração: de facto a sua vida era de longe bem mais longa do que um singelo filme.

Pegou então na sua vida, esquartejou-a quanto pode, cortou todos os intervalos insonsos e cinzentos, fez uma compilação de todos os momentos "demasiado".
E de repente, rendido aos lugares comuns, a sua vida tornou-se "demasiado filme".

sexta-feira, junho 04, 2004

Abraço Azul

"O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida."



"Mar", Sophia de Mello Breyner Andresen

Deixei-me ficar no abraço azul do céu e da cadência das ondas.
No instante ou no sempre não importa...
Dos problemas faço mudança, e visto-me no azul desse abraço.
Junto com todas as palavras deixadas para trás. As minhas e as vossas.



"Blue Waves", Michael Woskow

quinta-feira, junho 03, 2004

Fragmentos REM

Lancei-me de pára-quedas, de onde não posso recordar. Simplesmente sinto as memórias. As memórias de pairar no espaço, sem ter noção de qualquer realidade anterior. Assim como um nascimento. E que belo o mundo onde nasci...
Lembro e ainda sinto. O imenso azul, lembro a imensidão de azul turquesa,liso e embriagante como os dias de praia, como os sons longínquos do mar misturados com o riso das crianças, quando deitada na areia.
Deu-se então o mergulho azulado e salpicado de pequenas nuvens brancas, aparentando a suavidade do algodão. Em rodopios me solto e no final eis que chego ao meu destino, aquele em que abraço quem comigo está, quem comigo brinca e voa entre as nuvens. Deixo-me ficar neste abraço, dentro do imenso abraço de céu.



"Blue Sky", Chie