quarta-feira, agosto 18, 2004

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... depois de "Momento":


"Hoje a noite está esteticamente agradável com a chuva a escorrer num fundo negro pela janela aberta. A cortina dança pelo quarto até ser sugada pela noite e a porta vai rangendo demoradamente pela casa vazia. Uma lâmpada de um amarelo murcho de papel velho baloiça, esboça sombras no tecto, pinta monstros nas paredes, e um pequeno insecto esvoaça em viciosos círculos em sua volta. E a torneira pinga na longínqua cozinha, a tv da sala discursa para um pai já noutro mundo, uns lábios suspiram sonhos no quarto ao lado. Tudo dorme nesta minha doce insónia."

Tudo dorme com a serenidade dos justos. Contudo, apenas aparentemente. Tudo se move, os movimentos opostos degladiam-se no confronto de culpas inconscientes que perduram, que persistem, que doem por dentro. Mais visíveis, ainda, apesar da noite escura que faz da janela um quadro negro, hediondo mas confortável. Os monstros dançam em redor, paridos e moldados à nossa imagem. Como nós, o insecto esgota as suas asas em torno da luz. Quando seria tão mais simples pousar e abraçar a escuridão. Deixar envolver-se por ela. Fazer parte do brilho das estrelas. Mas as asas finas lutam em esforço pelo clarão hipnotizante, pelo relâmpago inalcançável.
O tumulto assalta, assedia, inquieta. Mas por detrás da luz, fica a imensidão do sono embalado pela chuva agradável. No escuro, “tudo dorme nesta minha doce insónia”.
"Raindrops", D. Dagley
Mais uma vez aqui vos deixo um Até Breve.


terça-feira, agosto 17, 2004

Momento
O som que vem de fora é precisamente o do som do tempo. O tempo criado e espartilhado na máquina dos ponteiros. O outro, mais de fundo, é o som da chuva de Verão que cai com pingos leves e desenha pequenos riscos nas vidraças das janelas. A neblina que se vê é o calor que nasce do corpo da Terra feita mulher. O cheiro é o da terra húmida e molhada, fértil e criadora.
Foco-me na música longínqua acompanhada da chuvada que se tornou vigorosa e ritmada pelo sussurro dos segundos do relógio.
Bebo do céu a chuva e rodopio dançando como que querendo alegrar quem chora. Cubro-me da lama e chapinho com os pés descalços. Louca e aflita quero seguir com o tempo, quero subir no vento. Embriagada do cheiro da terra, crio raízes e cresço em ramos que abraçam o céu. Sugo as nuvens e floresço. Aqui me tens.
"Dance1", L. Pingas

domingo, agosto 15, 2004

Introspecção

A rapariga observa os olhos do mundo...

Pensa para si própria que não poderia olhar mais para fora de si própria do que olhar as estrelas.

Eis que lança segredos no abismo do céu,
os planos, os sonhos feitos luz.

Deitada na varanda, deixa-se embalar pelo negro veludo da noite.

Sabe-se segura agora que percebeu que olhar as estrelas é enfeitá-las de si própria...

Agora que percebeu que olhar para fora, no limite do mundo, é olhar para dentro.



"Seven Stars", S. Aslani

quinta-feira, agosto 05, 2004

Descansar

Pouso enfim as armas e levanto as bagagens...
O "Kafkiano" abranda o passo durante este mês... mas apenas aqui - a escrita, essa, estará sempre presente.
Prometendo voltar com os olhos cheios de sonhos e de realidades kafkianas para contar.
Enquanto parto, lembro o poema lido e relido, mas sempre com um novo prazer:

"Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca..."

F. Pessoa



Até breve.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Mea Culpa

Helena tinha olhos cor de Verão. Cortando o ar quente e parado, passeava em passo lento, aqui e ali sobressaltado, como que voltando de vez em quando à realidade, atenta e vigilante da sua segurança. Olhava o mar, reflexo de si própria, como que se encerrando num segredo indizível, num momento que só a ela lhe pertencia. A ela e à praia, ao areal que se estendia do seu lado, ao longo da longa avenida calcetada que desaparecia por debaixo dos pés nus.
Nunca havia reparado muito nela, a não ser naquele dia remoto em que me pareceu perceber algo que a rapariga trazia preso por um fio ao seu tornozelo. Guiado pela curiosidade, acabei por indagá-la acerca do estranho objecto. Com um olhar triste respondeu-me que era o brinquedo que não emprestara ao irmão mais novo.
A partir desse dia, passei a reparar mais em Helena. De dia para dia, trazia um novo objecto preso já não apenas ao tornozelo, mas às duas pernas e até aos braços, o que limitava em muito os seus movimentos. Helena passava por mim, baixava os olhos afogados de mar e murmurava, dizia baixinho que trazia hoje o abraço que recusara a sua mãe, a obediência que não dera ao seu pai enquanto fora vivo, a companhia que não fizera à sua eterna avó, o beijo que recusara ao vizinho do lado... as alegrias que teve ao longo da vida, os prazeres, os pecados...
O tempo passou e Helena deixara de falar - a boca selada para sempre por correntes que lhe roubavam palavras e acção em quase todos os sentidos. Contudo, continuava a arrastar-se pelo passeio largo, ao longo da praia. Apesar do peso que trazia já fazia anos, atrás de si. De facto, para além dos imensos objectos que carregava, trazia acorrentados a si todos aqueles a quem o seu amor nunca satisfizera. Uma multidão de corpos desalmados eram arrastados atrás de Helena. Incapaz de os repelir, novos e novos corpos se juntavam a esta amálgama de carne e sangue no rasto do peso do mundo.
Devagar, passei de mansinho e deixei uma tesoura junto de Helena, quis ajudá-la a cortar as amarras. Nesta tentativa, gritou em desespero e percebi que as amarras eram já prolongamentos do seu próprio corpo. Cortar as amarras poderia ser ainda mais doloroso do que continuar a carregar todo o peso que insistia em arrastar.
Afastei-me devagar e vi-a avançar para a praia. Mal conseguiu arrastar-se até à areia. Nesse momento, deixei de a ver. Apenas o mundo por cima. Helena por baixo. Helena dos olhos cor de Verão, sepultada pela própria culpa.
"The Beginning", L. Pingas