quinta-feira, outubro 28, 2004

...


Permaneço na eternidade do presente.

Aguardo-me, a mim, que persisto lá atrás

Antecipo-me aos meus passos, corridos lá à frente...


A primeira volta no ciclo do tempo que aprendemos a dividir...


Obrigada a todos os que me têm ajudado a construir este lugar.



domingo, outubro 24, 2004

No Fundo do Poço

No fundo do poço Mariana olha longinquamente o azul do céu. O cheiro a relva que vem de cima, a luz com que não deixa de sonhar. Que não deixa de desejar.
Mariana permanece com o olhar voltado na direcção do sol que, gira sobre a escassa entrada do poço hoje, mais uma vez. Uma vez após outra. O pescoço levantado, a posição imutável. Mariana deseja tudo o que se passa alguns metros acima da sua cabeça.
Pena que assim não vá ter tempo de ver os reflexos azul violeta da pedra da parede do poço, lugar onde se abre para uma onírica entrada numa gruta mais sonho que o próprio sonho. Um outro mundo, talvez mais belo que o real. Ainda assim, invisível aos olhos. Pena.


"Paradise Ice Cave", R. Atkeson

segunda-feira, outubro 18, 2004

Por Debaixo do Plátano
Hoje não quero escrever uma história. Começar com "Era uma vez..." e terminar com um ponto final. Não quero começar sequer. Não pretendo um início, um meio e um fim.
Quero escrever a última frase sem que seja a última e transformar três pontos finais em expectantes reticências.
Hoje só queria sentir. Deixar uma sensação. Aquela que mantenho desde a tarde amena, apesar de nublada.
Sentada no banco de madeira, por debaixo do plátano de folhas amarelo esverdeadas, fechava os olhos num misto de melancolia e doçura, e sentia o cheiro da relva. O cheiro da terra antes de ser molhada. Sim, porque a terra também cheira antes de se humedecer. A Natureza avisa-nos do que vai acontecer, é tudo uma questão de atenção. A atenção às sensações e à escuta do mundo.
As folhas do plátano balouçavam, periclitantes, num equilíbrio precário, provocando um restolhar que me embalava como melodia doce. Naquele campo semeado de gente, sentia as doces presenças na paz do tempo estagnado, dos ponteiros cristalizados. Algumas folhas tombam, dançando ritmadamente à medida que se aproximam do chão alcatifado de verde. Fazem-me pensar nos estalidos que se fazem ouvir quando corro por entre elas. Também eu me embalo e me torno folha. Sinto a queda suave, a dança doce e com cheiro a Outono.
Subitamente adivinhavam-se os primeiros pingos de chuva. Uma gota no rosto, outra na terra...
"Mulher Asas de Folha", Angela Crespo

quinta-feira, outubro 14, 2004

O Beijo...

... esperado, desesperado, ansiado

O beijo ... saudoso, fogoso, vistoso

O beijo ... roubado, falhado, molhado

O beijo ... sentido, dorido, assumido

O beijo de sempre, o beijo para sempre

O beijo quebrado, o beijo partido

O beijo lavado, mas comprometido.

Ainda que partido, ainda que quebrado,

Para sempre beijo, sentido e sonhado...



"The Kiss", Rassouli

domingo, outubro 10, 2004

A Corda Estica...
A espera é longa. E os dias, curtos demais.
A corda estica, direita, erecta, curvando-se na extremidade pelo volume do peso que transporta. Curvada, mas decidida, ainda que aparentemente trémula.
Soa no ar a melodia agressiva da discórdia, do grito mudo e abafado pela almofada da inquietação.
A corda estica, aparentemente segura, aparentemente forte, resistente e estável. O porto seguro. Aparentemente.
Contudo, as fibras do seu interior cedem a cada corpo que faz aumentar o volume e o peso arrastado. A firmeza exterior não deixa antever ou adivinhar o colapso iminente. Não obstante ele seja evidente. Inevitável mesmo.
A corda estica hoje mais uma vez. Neste dia outra vez curto. Só mais uma vez. Mas mais uma vez poderá fazer toda a diferença. E a ruptura acontecerá ao carregar, mais uma vez, o peso imenso de uma lágrima desaguada.
"The End of My Rope", D. Jaques

quarta-feira, outubro 06, 2004

Amanhã

Adio o adormecer. E penso que se não dormir talvez o amanhã não chegue. Ou mesmo que inevitavelmente se faça anunciar, mesmo quando não lhe dei licença que entrasse, talvez não se chame amanhã. Talvez seja apenas um prolongamento do hoje. Um eterno rodopiar do planeta, girando em torno do astro rei, que me entontece, e me deixa sem saber quem vem primeiro - a noite ou o dia...
Tento ainda prolongar o brilho das estrelas num reiterar lúdico do ritual de despedida de mais um dia, deitada numa última gargalhada de quem brinca com o escuro que teima em tornar-se luz. Hoje a lua é grande . E amarela. Pensa que me escapa, mas ainda consigo tomar um pedaço de raio de luar que guardo sempre dentro de mim e que transborda no brilho dos meus olhos, mesmo quando durmo. Agarro no manto aveludado e negro da noite e fujo, saltitando por entre as estrelas cintilantes. Envolta nesta manta pintada a pequenos pontos prateados corro escondendo-me do dia. Brinco e gozo com a sua irritação por não conseguir nascer porque não deixo... Enfim, finjo ceder e ofereço-me ao deus do Sol. Deposito o manto a meus pés e avanço sem medo, tocada pelo primeiro raio do dia.
"Vain Dawn", Geoffry Nelson

domingo, outubro 03, 2004

Lugares Vazios

Era uma vez um menino tão pequeno, tão pequeno, que assim que nasceu caíu por um grande buraco negro. Aí permaneceu durante muitos anos. Ora tentando escalar as paredes de tão tenebroso buraco, ora resignando-se face ao seu triste fado. Pensou e teve esperança. Acreditou que um dia, quando crescesse, o seu tamanho seria suficiente para conseguir sair sem esforço daquele lugar.
Contudo, os anos passaram... e, apesar da idade, o menino já tornado homem não mostrava sinais de grande crescimento. Assim mantido. Assim se mantendo.
Um dia percebeu, enfim, que não era crescendo por fora que poderia sair de tão hediondo lugar. Onde não via nem era visto. O crescimento tinha de ser outro.
Mas a decisão derradeira da ferida que era necessário abrir, de se permitir, enfim, crescer, deu-se naquela tarde em que entendeu que, há muito tempo atrás, caíra no maldito buraco não porque ele próprio fosse demasiado pequeno, mas porque o vazio em que caíra e que lhe fora deixado era, ele sim, grande demais.
"Branches: Well", Jeff Mihalyo