domingo, novembro 28, 2004

Quando Eu Morrer...

O lugar envolvia-nos com fumo e paredes velhas. Paredes velhas forradas a pano, onde se penduravam e talvez enforcavam telas pintadas da cor dos sonhos. O olhar perdia-se nas cores e nas formas... nos desenhos, nos livros... e nas caras desconhecidas. Contudo, aquele lugar sabia a casa. Não a minha, não a de agora. Mas a de algures ou de outrora. Deixava-me embalar pela voz brasileira que cantava, adornada do som da viola morna - "Quando eu morrer/ Não quero choro nem vela / Quero uma fita amarela..."
Quando eu morrer, não sei bem o que quero. Perco-me no lúdico da situação... Quero... uma rosa branca. Um beijo soprado, um sorriso, um sol radioso. Uma dança sobra a minha campa. Um sorriso, uma lágrima, porque não...? Uma folha de plátano. Verde e amarela. O cheiro das tangerinas, da terra molhada. A evocação da planície, o som da música. Uma gota de chuva, um pincel, um desenho na terra. O descanso, o rodopio. O restolhar das folhas das árvores, que se mistura com o do som das ondas do mar. "Quando eu morrer..." - a melodia repete-se. Volto ao fumo e à viola.


"Guitar with sunset on river", PlanetMind Internetworks

sexta-feira, novembro 19, 2004

Dança Nua

A poeira dança por entre o olhar
embaciando a imagem amarelecida.
Pequenas partículas irrequietas
tornadas visíveis pelos feixes de luz
Intrusos e entrecortantes.
A tua dança nua encontra-se comigo,
a minha um pouco mais vestida,
apenas um pouco mais envergonhada.
Mas sempre dança, sempre movimento.
Fusão de música e irrequietude,
aumentando o ritmo da cópula de pó e de luz.
Quedas-te no silêncio,
Danças o silêncio na nota mais alta que sentes...
A música que sentes, o movimento que ouves.
Rodopias até não saberes quem dança...
se tu ou se a sala,
embaciada, amarelecida...
Sem saberes, moldas o teu movimento no meu corpo.
Sem saberes, gravas-te na minha memória.



"Dance of the Naked Self", Brian W. Jones

sexta-feira, novembro 12, 2004

Toc, Toc, Toc

O espectro do dia passeava-se na rua, rodopiando na dança do vento e abraçando para sempre folhas secas e restos do lixo deitado à estrada. Os cães passeavam os seus donos, mesmo debaixo dos primeiros pingos de chuva que se faziam sentir no cabelo e na pele. A tempestade não tardava... e João apressou o passo, procurando esconder-se da escuridão. Escapado do turbilhão da esquina, do furacão à escala das casinhas de bonecas que sempre acontecia naquele lugar antes das tempestades, João vivia ele próprio o turbilhão de quem tem dezasseis anos. Escapado da tempestade para entrar numa outra.
Chegado a casa, eis que o pequeno canídeo saltitante o saúda. É o único. E João não sabe bem como pode ser possível manter a boa disposição e poder mostrar o que se sente, mesmo debaixo de uma tempestade escura e difusa.
Foi nesse dia que quando chegou e atravessou o corredor, verificou que as portas estavam todas fechadas. E ficou no corredor durante cerca de vinte minutos... apesar deste não ser sequer perto de comprido. João ficou imobilizado, sem perceber o tempo passar. Esperou que uma das portas se abrisse. Esperou que várias portas se abrissem. Pensou se deveria bater a alguma porta. Assim o fez... uma, duas e ainda uma terceira vez. Sem resposta. Pensou se deveria abrir alguma porta, mas cedo percebeu que estas portas não lhe pertenciam. Não lhe cabia abri-las ou fechá-las. A sua era a única em que ainda poderia fazê-lo. Embora - pensou - nunca se tivera dado ao privilégio de o fazer. A sua porta esteve sempre aberta... de facto, o seu espaço nunca fora seu verdadeiramente.
Mas agora o corredor estava escuro e assustador, os trovões ribombavam por dentro, a chuva invisível arrefecia o ar parado no tempo. E João esboçou o primeiro passo na direcção do seu quarto. Ultrapassando o limite da porta, olhou mais uma vez o corredor e fechou-a devagar. Para nunca mais a voltar a abrir.
Quando as outras portas se abriram, a dele estava fechada. Estranhamente a porta do João. Justo a dele, que sempre estivera aberta.
Mais tarde houve quem dissesse - e ouvia-se pelo corredor - que os miúdos destas idades são assim, não nos querem ouvir e fecham todas as portas.
"Knocking on Heaven's Door", Tommie Olofsson

segunda-feira, novembro 08, 2004

A Rapariga Que Tinha Açúcar Demais
Madalena nascera com muito açúcar dentro dela. Tanto que quase transbordava, enquanto miúda. A sua doçura era tanta que não havia a quem não provocasse um sorriso quando passava com os seus caracoizitos castanhos saltitantes e lhes acenava com a pequena mãozinha. Os olhos brilhantes e risonhos. Um olhar de mel, na cor e no sabor.
A menina tornou-se mulher, mas os olhos continuaram os mesmos. O mesmo líquido doce e lânguido no olhar, a mesma serenidade transmitida. Madalena não só continha dentro de si mesma uma eterna quantidade de açúcar, como também o ía largando à sua passagem, como um rasto que deixava e que oferecia mesmo aos que com ela se cruzavam.
No entanto, não obstante o seu carácter marcado e decidido, a simpatia calorosa com que recebia os outros, cedo estes começaram a sentir-se ofuscados por tanto açúcar. Primeiro era aquele rasto que ela deixava pelo caminho que os importunava e que procuravam evitar... mas com o tempo deixaram de suportar o açúcar dentro dela, o cheiro a doce, o olhar de mel... Era como se a amargura, a falta de açúcar dentro destas pessoas se tornasse, de repente, mais evidente, mais real, face a tanta doçura. Mais iconveniente, mais insuportável conseguir olhar-se ao espelho.
Madalena não entendia a hostilidade que começava a sentir por parte das pessoas e, procurando compreendê-las, produzia ainda mais açúcar dentro de si, partilhando com os outros, em redor. Madalena caminhava já com uma aura branca em redor, o açúcar como sua coroa.
O desprezo era cada vez maior, pois quanto mais afável se tornava, mais os outros a repeliam. Sem saber que na verdade se repeliam a eles próprios... Então, carregados pelo peso da inveja e da cegueira de si próprios, começaram, dia após dia, a roubar o açúcar que Madalena guardava e distribuía. Contudo, em vez de o guardarem para si próprios, deitavam-no fora, pois recusavam-se a ver nele qualquer utilidade.
Apercebendo-se da situação, Madalena tentou resistir, mas quando deu por si, encontrou a amargura num dia em que enfim se provou a si própria. Era inútil, a fábrica do açúcar deixara de produzir. Ela, a rapariga que tinha açúcar demais...
Mais tarde, engravidou e teve uma filha, tão doce como ela fora. Com ela cresceu também a doçura. Madalena começava a não suportar ver-se ao espelho no seu vazio de açúcar.
"Sweetness of Freedom", Joseph Cach

quarta-feira, novembro 03, 2004

É hoje que espero

É hoje que espero
pela cor e pelo cheiro da noite.

É hoje que espero que se torne minha,
que espero dormir nas suas curvas,
provar o desejo das estrelas,
a palidez plácida da lua.
Torno-me espelho,
reflexo branco da alma da noite,
perdida nos inquietos
horizontes invisíveis.

É hoje que espero...
pelo toque e pelo gosto
do fim do dia,
pelo chover da escuridão
Espero na serenidade
de quem não perde tempo,
o tempo gostado, o tempo colhido.

É hoje que espero
este meu renascer
neste tão tranquilo morrer do dia.



"Espera", Mireya Juárez