sexta-feira, dezembro 31, 2004

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... mais um novo "Recomeçar"


Mais um ano que termina, 2004 foi um ano que literariamente devo e tenho de agradecer a todos os "viajantes kafkianos" e a todos os que vou lendo por aqui.
Contudo, este seu final foi inesperadamente marcado por um infeliz sucedido inesperado que não quis deixar de partilhar convosco. Não só porque me entristeceu e desiludiu, mas também para que todos estejamos atentos.
A partir do "Minha Alma" e, tal como a Marta, encontrei no mesmo site (http://groups.msn.com/ALDEIAGLOBAL/poesia.msnw?action=get_threads) os meus textos associados a uma outra pessoa. Apesar da gravidade e da infelicidade de tal sucedido, não pretendo, pelo menos nos próximos tempos e por este motivo, abandonar este lugar que tantos momentos felizes me tem possibilitado. Pretendo desvalorizar este sucedido, mas não tanto que deixasse de o salientar e de o partilhar convosco.
Assim, apesar de mais atenta do que dantes, deixo-vos uma mensagem positiva neste novo final de ciclo temporal:
"Se houver luz na alma,
Haverá beleza na pessoa.
Se houver beleza na pessoa,
Haverá harmonia no lar.
Se houver harmonia no lar,
Haverá ordem na nação.
Se houver ordem na nação
Haverá paz no mundo."
Antigo Provérbio Chinês
Feliz 2005!
"Candle Light Earth", Harald Haack

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Egocentrismo

Narcisa era conhecida por ser uma mulher muito activa e dinâmica. "Uma mulher moderna!" - costumavam dizer. Com os olhos brilhantes, as intensas correrias de todos os dias, sorria ao ouvir os comentários. Gostava de se sentir viva. Vivia em constante frenesim. Absolutamente convencida de que a sua acção determinava tudo o resto. Até ao dia em que finalmente saíu de si e descobriu que a importância da sua acção era relativa. Descobriu que afinal era uma parede e o movimento não era senão resultado da velocidade extrema com que tudo se movia face à sua absoluta imobilidade.
"Narciso", Bibliotecas Virtuales

domingo, dezembro 26, 2004

És
Ele virou-se devagar, um lento e leve gesto inclinado para a frente, de modo a poder contemplar-lhe o rosto. Um pequeno movimento que lhe deixava entrever o olhar transbordante. O castanho dourado, cor de mel, o brilho que o fazia sempre pensar que estar vivo deveria fazer um qualquer sentido que lhe escapava. O olhar dela sorriu por um instante ao perceber o dele, indiscreto, desnudando-a, desvendando-lhe os mistérios. Ele percebeu o sorriso e deixou a música trasformar-se em lágrima que escorreu por dentro. "És especial" - sussurrou-lhe devagar, quase inaudivelmente. Costumava dizer-lho muitas vezes. Também em pensamento que ela, contudo, ouvia. Palavras sem som que lhe chegavam directamente do peito aberto. Contudo, ela não sabia porque era especial. E perguntava-lhe. Devagar. Silenciosamente. De todas as maneiras que sabia. E ele falava-lhe dela, das ondas do seu cabelo, do brilho invisível dos olhos, da alegria, do céu azulado que se transformava em vermelho ao entardecer. Falava-lhe das suas asas. Falava-lhe das suas cores, da melodia que os seus gestos cantavam, de tudo o que, calada, dizia. A sua existência tornava-a cada vez mais especial, mais brilhante, mais dançante, mais cadente. Ele não sabia que era ele que a tornava especial. Ela não sabia que era especial... e que o era por não se achar tão especial assim.
Rozica

sexta-feira, dezembro 24, 2004

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"Um Dia

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala. "


Sophia de Mello Breyner Andersen


... desejando um Feliz Natal a todos que por aqui vão passeando.



"Christmas Light", L. Bourdin

sábado, dezembro 18, 2004

A Mulher-Janela

Os dias seguiam-se... corriam um após outro. Em fila, sem pausa para descanso. Em cada simples dia, as mãos cravavam-se no vidro da janela, onde permanecia estática. Olhando o horizonte, ou quem sabe, fazendo parte de um outro crepúsculo de outrora. O vidro deixava-se embaciar. Pela respiração e pelas secreções habituais da pele agredida pela humidade. Entre ela e o vidro, um pequeno microcosmos, quente e húmido, fazendo lembrar uma floresta chuvosa, ou talvez relembrar alguma memória mais regressiva. Os olhos vagueiam, entre o útero - não o dela - e a morte. O fim é uma ameaça constante que já não tem importância... O preto é já cinzento. O vidro é fusão com a carne. Dela sai uma janela onde o seu próprio corpo se debruça. Naquele dia, debruçou-se um pouco mais... apenas um pouco mais. E num segundo, o equilíbrio entre forças e corpos alterou-se para sempre. Debruçada sobre si própria, foi possível vê-la flutuar no espaço, perdida dentro de si própria.


"Window Girl", Stacee L. Combs

domingo, dezembro 12, 2004

Relaxe...
Ele avança devagar pelo corredor escuro, contornando-o silenciosamente. O bater do coração junto à boca.
"Relaxe... o seu corpo está calmo e relaxado..."
Empurra a porta de madeira, com peso de chumbo. A faca pontiaguda nas mãos. Não sabe bem porquê. Como se fosse comandado por uma força que não a sua. Abre a porta, um resto de claridade deixa ver o vulto junto à janela. Ela, a moradora da janela, faz já algum tempo. Ele observa-a com cuidado antes de avançar. Ela está de costas. Não o vê... não o ouve. O coração bate.
"Descontraia... o seu coração bate forte e lentamente... sinta como o seu corpo está calmo e tranquilo..."
A imobilidade. A respiração presa nos entrelaçados da memória. Um breve longo momento parado no tempo. Ele obeserva-a. Ela olha o horizonte. Um pé na morte, outro no lado de cá. Um óbvio desequilíbrio no sentido da figura da foice... Ela quase pede este desequilíbrio. Agradece, oferecendo-se.
Ele não pode esperar mais. Esperou a vida inteira. E a vida inteira é demais. Um passo e mais outro. A lâmina afiada encostada à nuca dos cabelos desalinhados. Um movimento em falso e tudo muda. Ele sente a lâmina enterrar-se devagar no crânio dela. Devagar... até ao fundo. Ele gostaria de ter tido mais luta. Ela não resiste, sequer. Deixa-se cair no chão de madeira, a faca enterrada na cabeça.
"A calma vem a si de forma perfeitamente natural."
Tomado de uma vontade de luta, ele arranca a faca e apunhala-a até mais não poder. Nunca se achou capaz de tal acto, nem em pensamentos...
Contorcida e irreconhecível no chão, respira o seu próprio sangue, agradecendo a despedida, como que numa vénia vermelha.
"Sente-se cheio de energia... muito rejuvenescido... preparado e bem disposto para o que planeou a seguir a este momento de descontracção."
Ele está levantado e expectante. Como se houvesse algo mais por que esperar. De modo súbito, é assaltado por uma dúvida assustadora, mas emergente na mente de modo perfeitamente quotidiano. Pensa o que fazer com o que resta dela. Não sabe... mas com a frieza da loucura, sente-se prático... sente alguma fome e recorda que não tinha preparado nada para o jantar.
"Apophisis", J. R. Skemp

terça-feira, dezembro 07, 2004

Impulso

A parede transparente abre-se para a minha fusão com o mundo. As raízes crescem a partir dos dedos dos pés. Minhas pernas troncos firmes, bases sólidas e estáveis. Os meus braços, ramos aflitos, reticentes, coroados de lágrimas e de pensamentos gastos e perdidos. Os ramos estendem-se na direcção do espaço aberto, prolongam o peito que se se abre em grito de dor magnificamente entoado. Os braços do meu corpo estendem-se querendo abraçar o ar em que me desvaneci, em que me sonho desfazer e transformar. Puxam as raízes inabaláveis. Agora apodrecidas. Meu corpo, árvore pendente.



"Windtree", Cory Ench

segunda-feira, dezembro 06, 2004

O Sol ao Por do Sol

Interrogo o Sol ao por do Sol.
Interrogo-o no derradeiro momento.
Pergunto-lhe onde gosta mais de morrer.
Nas rochas ou no arranha-céus.
Nas ondas ou no alcatrão.
Na areia ou no empedrado da calçada.
Na palmeira ou na árvore sozinha e cinzenta.
No mar ou no automóvel.
Ele responde-me que gosta de morrer em todo o lado.
Responde-me que gosta de se esbater e misturar em todas as coisas.
Um segundo antes de exalar o último suspiro...
"Morro aqui, mas nasço além".



"Sunset", Napton