domingo, dezembro 25, 2005

Boas Festas...

... a todos os que por cá passam. Apesar de um pouco mais ausente nos escritos, sempre presente na leitura dos vossos comentários. Espero em breve poder retomar a "presença"do "Kafkiano"mais assídua. Até breve.

domingo, novembro 13, 2005

Só, Dois Pés

Sara não morrera. Nada podia ser mais verdade. E no entanto, nada podia ser mais mentira. A linha era na verdade bastante ténue, fazendo relembrar a indefinição aparente entre mar e céu em manhã enevoada. A verdade e a mentira misturavam-se, enciumadas do casal água e azeite, assim tal como a vida e a morte. Nisto pensava a rapariga de cabelos longos, meio indefinida ainda na vida. Tão indefinida que não me permitiria recordar-lhe o nome. Será que importava? Talvez sim, mas agora a vontade é de que não tenha alguma e qualquer importância.
Na escada, sozinha, pensava em como Sara não morrera, no verdadeiro sentido da palavra, mas se encontrava quase morta dentro de si. Quase. Quase, pois sabia que, no fundo, nunca morreria. Estaria sempre presente na sua mente, para a relembrar a ela, rapariga dos olhos meigos e tristes até ao limite, daquilo que hoje não tinha. Daquilo que um dia teve, mas hoje não tem...
Há alturas na vida em que se não pode estar sozinho. Está-se, mas sabe-se que se não pode estar, e até nem se está. Só quando se está realmente, se sabe que antes não se estava. Sozinho.
Agora sabia que Sara não morrera, pois lá estava ela, com aquele seu rosto tão igual ao seu, com os mesmos olhos e os mesmos cabelos. Ali tão perto, mesmo no final da rua, tantas vezes percorrida a quatro pés.
No entanto, a rapariga dos cabelos longos levantou-se, descendo devagar os degraus da espera e de tudo o que vale a pena. Deixou os olhos meigos encherem-se de amargura e virou as costas andando na direcção oposta à do final da rua. Desde aí caminhou sempre sozinha e a rua passou a ser percorrida apenas a dois pés.
Leitung Geist

sexta-feira, novembro 04, 2005

Ramos e Raízes

Espero na invisibilidade, num lugar ainda mais transparente, ainda que mais obscuro. Deito-me e entranho-me no tronco da árvore, tornando-me raíz e, quem sabe, ramo... Ramo seco e quebradiço ou pura seiva transbordante. Não sei. Mas esculpo-me na frieza dos dias.
"Tree Girl", Virginia Lee

terça-feira, outubro 04, 2005

Da (In)Visibilidade
A paixão expressa-se na lágrima. Porque a lágrima é o extremo. Vem sempre de dentro, portanto sabe onde fica a origem e como tudo conheceu um início.
Foram os pensamentos de Ana naquela tarde sem lágrimas. Como não chorava fazia já muito tempo, estava cada vez mais certa de que já não tinha paixão dentro de si. Assim como se tivesse secado por dentro, esvaziado o saco das lágrimas na infertilidade dos terrenos áridos em que a sua alma se transformara.
Os dedos esguios sobre a folha branca de papel defronte de si tornavam-se ainda mais esguios, como se fossem braços de bailarina ou pescoço de cisne. Não tão brancos como a imagem sugere, mas curvilíneos, magros, de uma elegância subtil e quase virgem. Segurou devagar o resto de carvão que usara para os seus esboços e desenhou algumas rugas. Depois vincou o papel no lugar dos riscos desenhados. Este era o seu livro, aquele que contava a sua vida.
Quando terminou verificou que era um livro imenso, quase infinito. E nesse momento sentiu-se mais viva. Chorou para dentro e regou uma semente inconsciente.
Pensou para si própria que talvez estivesse certa. Ou errada. E também que há lágrimas invisíveis.
"Teardrop", por "Flamingpear"

terça-feira, setembro 20, 2005

Uma Questão de ...

Segundos...

Minutos...

Horas...



Espartilhei o meu envelhecer e chamei-lhe Tempo.

É preciso parar no tapete vermelho que me aponta a cova.

Como?...?

Por agora... vou deixar de dar corda às máquinas do Tempo. Talvez daqui a dez minutos.

sábado, setembro 10, 2005

Falto-Me
Derramei-me sobre a cama desmanchada, os meus dedos nos prolongamentos das dobras dos lençóis. Peço a alguém que me faça chorar. Mesmo que seja de rir. Mas tenho quase a certeza que vai ser de tristeza. E de raiva.
Sinto a falta... simplesmente a falta. O incomensurável buraco cheio de nada. Que insiste. E persiste. E insiste. E persiste.
Anseio. Espero. Mas sei que só vai chegar o olho esburacado, a perna arrancada, o ventre entreaberto, as entranhas que me enforcam. Só vai chegar o todo menos uma parte, o completo menos um bocado. É o quase sem o ser sequer. E pergunto-me o que é pertencer, porque não sei. Enrolo-me sobre mim mesma, procurando esconder-me dentro de mim. Olho o horizonte através do umbigo. Na melancolia, sinto-me egoísta e assim me deixo ficar.
Preciso agora de colocar este braço de onde caíu...
"Nude3", G.B.Lasko

sábado, agosto 13, 2005

O Caminho (Nem) Sempre Percorrido
Naquele dia azul acinzentado, pintado a aguarela, Helena viu-se obrigada a cessar os próprios passos. Helena era uma menina, mas tinha nome de mulher. Os cabelos eram canudos inocentemente dourados e os olhos, apesar da ingenuidade azul que transpareciam, deixavam entrever a amargura, disfarçada das mesmas matizes. Naquele dia, de facto, tudo era azul. Desde os olhos à amargura. O vestido e mesmo a cor do dia.
Contudo, ainda que o azul dominasse, aquele momento pareceu-lhe obviamente branco. Era mesmo branco demais. Estranhamente branco demais. Dava-lhe demasiado tempo para pensar em si própria. O vazio e a angústia dominavam-na agora que não tinha lugar algum onde semear os seus passos.
Helena estava cega. Completamente cega, e ao contrário do que já imaginara, o mundo não se tornava negro. Era dolorosamente alvo.
Foi nesse momento que percebeu que avançar não seria possível. Demorou-se a olhar o vazio até ao limite do suportável e corajosamente começou a rodar sobre si mesma. Era a primeira vez que se permitia dar meia volta e enfrentar finalmente o que deixara para trás. Pensava ela que deixara para trás. Não percebera até então que não olhar para trás apenas aumentaria o peso daquilo que aparentemente se tornava passado mas na realidade se transformava em cada vez mais presente.
Helena voltou-se devagar. Dolorosamente verificou o rasto de destruição atrás de si. Com os olhos cheios de chuva viu as feridas abertas. Viu as feridas perfuradas. Viu o sangue vermelho escuro que era o manto que seguia no seu encalço. Viu tudo e chorou alto, ajoelhada no chão, as mãos nos cabelos, a face escondida no colo ferido.
Depois secou as lágrimas, levantou-se e devagar caminhou para trás. Aproximou-se da primeira ferida e derramou um beijo sobre ela. Agora ía ficar por ali por algum tempo.
"La Voile Bleu, Damour, Lebanon", T. Hulubey

segunda-feira, agosto 08, 2005

Vou...

Trilho
Percurso
Caminho
Viagem
Vereda
Estrada

Com areia
Sem areia
Com areia
Sem areia

Pequeno grão no sapato

Vou descalça.



"Caminho Tortuoso", O. L. Pastorelli

segunda-feira, agosto 01, 2005

"Quem És?"

"Quem és tu que me esperas?" - indagou a voz forte, porém ainda trémula. Ergueu-se devagar, de modo a poder ganhar perspectiva, procurando saciar a curiosidade. Quem a esperava, agora que partira para nunca mais chegar? Decerto algum louco, alguma mente insana que ainda acredita em milagres e segue utopias... Mal conseguia vislumbrar alguém, mas com toda a certeza sentia uma presença forte, ainda assim longínqua. Mal definida, mas segura. Sabia que a esperava, mesmo que não acreditasse que um dia poderia satisfazer tal aspiração. Olhou com cuidado e pareceu-lhe ver o seu próprio vulto, de há alguns anos atrás...
Rama-Sinta, Indonesian Shadow Play

domingo, julho 17, 2005

Dar o Que Não se Tem

"Dá-te tempo" - sussurrou a voz, marcando a sua ausência. Pensou para si própria o que seria isso do "dar-se tempo". Como poderia dar-se algo que não possuía? Como poder oferecer a presença de uma ausência? As perguntas ficavam suspensas no ar, sem resposta, como bolas de sabão, vagueando no tempo. Subitamente apercebeu-se da proliferação de bolas de sabão flutuantes em seu redor. Todas esperavam. Esperavam pelo tempo em que a resposta chegasse. Demorou-se a observar estas bolas-pergunta. A sua forma, a sua fragilidade, as cores que reflectiam. A leveza que contrastava com o peso que representavam dentro de si. Talvez as dúvidas fossem como o algodão e flutuassem. Talvez libertassem, mais do que prendessem.
"Há sentimentos que nos prendem" - disse baixinho, para se ouvir sem ser ouvida. E soltou algumas amarras. Largou mágoas e culpas na palma de uma das mãos e soprou-as docemente, deixando-as dissolver-se no vento.
Naquele momento estava a dar-se tempo. Afinal podia dar-se o que não tinha. Afinal podia criar e ser um caso raro de geração espontânea. Suspirou melodiosamente e transformou-se, enfim, em bola de sabão-resposta.
"Bubble", in V-Ray

quinta-feira, julho 07, 2005

"Como todo indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fatal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido."

Bernardo Soares (Pessoa 1888-1935)
O Livro do Desassossego

quinta-feira, junho 30, 2005

Alma sem Asas
O dia amanheceu à tarde, abraçado palo céu cinzento, da cor das violetas debaixo da luz de Inverno. O corpo de menina avançou no espaço sem esforço e sem movimento. Deixou que fosse o vento que empurrasse o peso que não era senão inexistente. A Alma estava leve naquela manhã-tarde. Tão leve que poderia levantar voo e se deixar abraçar pelos tons indefinidos do céu. Era quase um chamamento que fazia com que deixasse de olhar miopicamente para a parede em frente e poisasse os olhos e os sonhos cor de rosa, além, no horizonte, onde os anjos cantam e o dia adormece embalado.
Quando saí naquele dia, os meus olhos não se estendiam para além da distância que o braço podia alcançar. Pelo contrário, batiam ruidosamente na primeira superfície que encontravam. A Alma estava pesada, carregada de objectos inúteis que não soubera escolher ou fazer existir. Foi com o mesmo ruído ensurdecedor dos olhos a baterem em superfícies que empurrei sem dó o corpo de menina que ansiava soltar a Alma da gaiola. A Alma sem asas. Foi assim que atropelei a Vida na manhã violeta acinzentada.
"Soulseal", Paula Fisher

sábado, junho 25, 2005

"Orquídea Selvagem"

A orquídea florescia dentro de um copo. Não sabia como podia acontecer uma planta como a orquídea florescer quase sem ar, quase sem luz, tal como era o ambiente do seu quarto. Mas ela ali estava. Respirava juventude na sua cor rosada pastel, exibindo as suas formas, como se não dependesse de nada nem de ninguém para existir e gostar de existir. Ah, quem lhe dera ser como a bela orquídea. Nascida do nada, alimentada de nada, crescida no ambiente escuro e húmido do seu quarto, e ainda assim, luminosa e firme. Sim, firme. As condições adversas parecem tê-la tornado mais resistente. Era fácil perceber que a força também tinha beleza. Talvez porque o escuro e o asfixiante não viviam dentro dela, viviam fora dela. Talvez por não se confundir com o exterior, se mantivesse assim, viva e fresca como um dia de Verão...
Num desses dias escuros e húmidos do seu quarto, num desses dias em que, mais uma vez, a orquídea, se abria, voluptuosa, como que criando luz à sua volta, ela deitou-se nua sobre a sua cama. E esperou pacientemente que todas as larvas e lesmas escuras percorressem o espaço por debaixo da sua pele e saíssem, enfim, lentas e viscosas, através do seu umbigo. Quando o último verme escorregou pela sua barriga, já com grande custo, deixou o seu corpo de mulher, ainda que violado, descansar, como se não fosse seu... Mais tarde, quando a ele voltasse, teria tempo para se sentir mais leve. Mas também mais vazia.
"Orquídea", Oscar López Guerra

segunda-feira, junho 20, 2005

Só uma Faixa Cor de Rosa...
O meu sonho era ter uma faixa cor de rosa para colocar sobre o meu vestido. Que o vestido fosse tão lindo que resplandecesse sob a faixa. Contornado, sinuoso, justo, mas um pouco evasé no corte final. Podia não ser simétrico, contrastando uma ponta mais curta com um pedaço de tecido que formasse uma semi-cauda.
Eu só queria mesmo uma faixa cor de rosa. Um rosa bem vivo, que me fizesse mais bonita. Que conferisse um toque de elegância discreta, quase inocentemente infantil, à volúpia que não conseguiria esconder... Queria uma faixa cor de rosa... e junto com ela, uma cascata de caracóis anelados e dourados que ficassem suspensos ao longo das costas, roçando o final do decote do vestido. Queria uma beleza rara, condizente com a faixa cor de rosa. Da cor das rosas, do perfume floral do jardim, da cor das princesas. Queria parecer uma princesa. Uma coroa na cabeça. E claro, o meu trono e o meu ceptro. Que ficassem bem com a faixa cor de rosa. No fundo, era tudo o que eu queria - uma faixa cor de rosa...
"The Pink Princess", Ebsqart.com

domingo, junho 12, 2005

Esqueço-Me de Mim
Miguel conduzia rua abaixo, carregando sobre si o peso de uma apatia que não sabia explicar. Os pensamentos eram todos, transportando-o a um tempo e espaço muito para além do presente imediato. Só restava lugar para os costumeiros automatismos da condução, aqueles que ficam mesmo quando o pensamento está bem longe do corpo.
Enquanto descia a rua, sentiu uma súbita vontade de olhar para o parque infantil à esquerda, semi-escondido pelas árvores, e ver o que lá se passava. Como se esse espaço tivesse algo de muito íntimo a ver com a sua vida. A sua atenção ficou suspensa por escassos segundos. No primeiro momento não pôde ter a certeza, mas avançados alguns metros à frente, pôde confirmar as suas iniciais suspeitas. Eram as suas Expectativas. As Expectativas de Miguel brincavam no parque infantil.
Meio desorientado com esta estranha visão, Miguel estacionou o carro junto à berma e ofereceu-se a si próprio algum tempo para observar tal cenário. As crianças eram muitas e brincavam mais ou menos caoticamente, sem uma ordem ou sequer uma regra mais fixa por onde se orientarem. Por isso pareciam ora divertidas, ora zangadas, não conseguindo perceber qual vinha primeiro, qual deveria passar à frente e em que ordem. Acabavam por se ultrapassar e se atropelar caindo no chão em desespero. Com a sua curiosidade, Miguel acabou por denunciar a sua presença e as expectativas puderam aperceber-se que alguém as observava. Face a esta situação, algumas tentavam comportar-se da melhor maneira possível, endireitando os vestidinhos brancos e colocando lacinhos nos cabelos para se enfeitarem. Ainda assim, sempre brincalhonas, algumas pareciam até zombar de qualquer situação que Miguel não sabia qual era. Mais à frente algumas meninas rebolavam a rir no chão, apontando para as suas imagens reflectidas no espelho.
Com este cenário, Miguel partiu para o seu dia... quem sabe mais tarde não chegaria a tempo de brincar com as Expectativas.
O dia pareceu-lhe uma eternidade, e tal como esse dia se passou, outros tantos se lhe seguiram. E todos os dias, passava pelo parque infantil onde as suas Expectativas brincavam ora sozinhas, ora com outros meninos que passaram também eles a frequentar aquele espaço. Os Sonhos de Miguel também brincavam no parque infantil.
Depois de muitos dias passados nesta rotina quotidiana, sem nunca ter tido coragem de ir ter com os meninos, sem nunca ter tido tempo de os fazer crescer, Miguel aproximou-se novamente do parque. No dia em que viu um castelo de nuvens desfazer-se no azul do céu. Quando avistou o parque viu, enfim, que todas as crianças estavam mortas. Esventradas, os olhos fixos e sem vida, os pequenos vestidinhos brancos manchados de sangue vermelho escuro. Miguel nunca mais ousou passar pelo parque infantil.
"Children Playing...", Arthur Rothstein
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... depois de "Só Uma Letra":

"Escrever não tinha sido boa ideia. O risco duma revolução das letras por discordância com as ideias de quem as manobrava era iminente mas a ocorrência legitima. Pobres coitadas sem personalidade – pensava eu tal como todos os outros que lhes mexem a seu bel-prazer sem contemplações – sem ter em consideração a vontade dum alfabeto, a nobreza de carácter de um A, a elegância explicita de um X, as formas de respeitável matrona de um B.Mesmo assim tentei impor as minhas convicções, alinhá-las segundo os meus pensamentos num constante movimento de pulso que a cada momento que passava se revelava mais difícil.Olhei para a folha de papel antes branca, agora repleta de caracteres por mim escolhidos, conspurcada por uma atitude sobranceira que se pretendia desculpada pela urgência de desabafos íntimos, mas nada do que escrevera fazia sentido.Tinha ocorrido a Revolução. As letras discordavam de mim e eram mais fortes do que eu."
Sr.Ministro


"Scrambled Letters...", Fotosearch

sábado, junho 04, 2005

Só Uma Letra

Quando abri a janela o texto estava já completo ( se é que algum texto o pode realmente estar). E à medida que lia e absorvia os caracteres com alma, a tinta sumia-se até à última linha. Ou a primeira. Pois o texto sucumbia à passagem dos meu olhos, à volúpia da minha língua que vagarosamente lambeu sílaba por sílaba. As palavras contorceram-se de prazer. De prazer e de raiva. O mesmo amor que amava era o amor que matava. O aparo afiado e molhado de sangue negro esventrando o meu súbito lirismo. Soube-o pelo olhar cínico que o desenho formado pelo próprio texto me deitava. Olhares largados como se fossem nada. Como se eu fosse transparente e um simples e sujo tinteiro afogado no meu próprio corpo. A tinta que era negra, mas era sangue.
As letras duvidavam de mim a cada passo, as frases desiludiam-se, deixavam-me pontos e vírgulas espalhados sem coerência para que simplesmente tropeçasse neles e me deixasse enrolar parágrafos abaixo.
Só para contrariar leio ao contrário. Da direita para a esquerda. De baixo para cima. E assim revelo ainda mais a minha devoção, a minha entrega.
Olho pela outra janela, a parede transparente que me oferece ao mundo. Somem-se nuvens como palavras. Hoje quero ser só uma letra.
(Como letra, como palavra, frase, ou tão somente ideia, não deixei de cá estar...)
"Blood and Ink", Silkeara

domingo, maio 15, 2005

O Homem que Vivia numa Roda
Xavier estava cansado. A sua roda parecia andar depressa demais. Sentia-se cansado e sem forças, mesmo exausto quando, chegado a casa, se sentou no sofá. Ainda assim continuando a "pedalar" na sua roda. No entanto, embora naquele dia lhe parecesse mais pesada, esta andava tão depressa quanto a de todos os outros.
Observando de fora, a roda em que todos caminhavam, dia após dia, fazia lembrar as que entretêm os hamsters nas suas gaiolas. Com a diferença que a de Xavier, tal como a de todos os outros, não era uma opção. Rodava sem parar, sempre em direcção única, sem nunca voltar atrás, debaixo de chuva ou de sol, fizesse frio ou calor, estivesse Xavier mais ou menos cansado. A sua vida era precisamente fazer tudo o que todos fazem desde o nascimento até à morte, andando sem parar, na roda gigante. Na verdade, alternativa não existia já que não havia maneira de fazer parar este mecanismo que por vezes parecia monstruoso a este homem. Mecanismo que tinha tanto de curioso como de banal. A rotina tornara-o curriqueiro, mas não deixava de ser intrigante para os que sobre ele reflectiam. Certo dia, Xavier, um pouco cansado de não olhar muito para além da sua própria roda, contiuando a efectuar os mesmos mecânicos passos, dispensou algum tempo para observar as dos outros. E nisto pôde reparar que todas as rodas tinham o mesmo tamanho e andavam precisamente à mesma velocidade. No entanto, nem todas as pessoas caminhavam com a mesma facilidade. Realmente havia quem caminhasse aos empurrões, quem andasse ao sabor do vento, quem rastejasse e mesmo quem corresse. Alguns pareciam relativamente descansados, sonhadores até, não reparando sequer que a roda girava, outros pareciam exaustos carregando objectos e ideias amarrados à roda, tornando-a demasiado pesada para os seus magros corpos.
Xavier não tinha opção senão caminhar dentro da roda. É um facto que poderia sair dela, mas mais nada faria. Assim, dentro da não opção, apercebeu-se por momentos que poderia ter opção. Então olhou bem para a sua roda, depois olhou para as suas pernas, idealizou o ritmo a que teria de andar; antes de retomar desamarrou alguns objectos inúteis das grades da sua roda. Sentiu-a mais leve e, pelo caminho, plantou algumas flores para poder contemplar a sua beleza e sentir o seu cheiro à medida que caminhava.
"Hamster Wheel", Nancy Settle

segunda-feira, maio 09, 2005

As Pedras e os Casacos
Quando nasceu, Alzira trazia já, acabadinha de ver os primeiros raios de luz, um pequeno casaco de Inverno. Um casaquinho com algumas cores, mas um pouco avantajado para a pequena bebé. Rapidamente cresceu e se ajustou na perfeição às suas vestes. Mas à medida que foi crescendo, também o casaco ía ficando maior, com mais cores, mais bordado em detalhes. O número de bolsos ía aumentando, bem como o seu conteúdo ía ficando mais pesado. Alzira tinha um corpo aparentemenre frágil, mas forte como nunca suspeitara. A certa altura, este casaco, cada vez mais cheio de pormenor, em vez de aquecer ou proteger o seu corpo, fazia suar. Tornara-se um fardo que Alzira tinha de carregar. As próprias cores, já desbotadas, conferiam-lhe um aspecto pouco atraente e cansado. Os bolsos íam enchendo, sempre cada vez mais. Tinha pedras dentro deles e todos os dias mais alguém lhe pedia que carregasse mais uma pequena pedra. Apenas mais uma pequena pedra. Alzira arrastava-se com o peso do casaco, cada vez mais pesado, cada vez mais monstruoso, quase impedindo a pobre rapariga de andar. Um casaco cheio. Um casaco cheio de nada que lhe toldava os movimentos e lhe encharcava os olhos, inundados das lágrimas que lhe ocultavam por completo o rosto.
Alzira rastejava e não sabia o que havia de fazer para impedir o seu próprio soterramento pelo peso que colocava em si mesma e que se deixava colocar pelos outros que, habituados a verem-na rastejar achando tal comportamento natural, continuavam a sobrecarregar os seus bolsos.
O casaco ameaçava rasgar-se. O corpo ameaçava sucumbir. Nesse dia, enquanto tomava banho nas próprias lágrimas, Alzira pensou seriamente em despir o casaco.
"Heaviness of Life", Nasrin Afrouz

segunda-feira, abril 25, 2005

Da Liberdade e da sua Morada
Hoje, alguém me disse que sou livre. Contudo, naquele momento não me senti livre. Para dizer a verdade, até os movimentos dos músculos mais pequenos se sentiram presos dentro do meu corpo. Esticados e ainda por rasgar.
Como se quando as palavras foram proferidas me tivessem entalado em labirinto obscurecido pelo tempo e pela impaciência. Como se a vida fosse a cela que me encerra. A cela que se fecha, vazia e escura, sobre mim. Uma redoma povoada por demónios atormentadores, zombando das ironias que me compõem. Procuro a liberdade que não vejo e não sinto. Não encontro também o meu carcereiro. Por mais que busque.
Por momentos, olho pela janela que dá para a paisagem que sou eu por dentro. Talvez tenha procurado no local errado. Viro-me do avesso e encontro enfim, os meus atilhos. A carne da minha carne que me ata e me tolda os movimentos. Agora que sei... talvez possa ser livre.
R. Magritte

quinta-feira, abril 21, 2005

Ad Aeternum

Talvez tivesse chegado a hora de aqui estar mais uma vez… ouvindo a mesma música, a que torna todo o momento no conceito de sempre. Aquela que não deixa descansar, que tumulta e revolve. Que faz pensar no rodopio que danço enquanto olho o céu, em que já não sou eu que rodopio, mas sim o céu em tons azulados pintado de fiapos de algodão. Então o céu mistura-se com a minha boca e sai pelos olhos em forma de lágrimas doces.
Faz lembrar o cemitério coberto de relva e de flores amarelas. Aquelas, as dos campos onde me gostavas de levar a passear. Agora elas alimentam-se do teu corpo e dão-me vida. Sugam-te e transformam-te na seiva que corre. É assim que me dás vida e que te vejo. No rodopio contínuo da música que chega a arrepiar a pele. No ciclo infindável, em que o fim é apenas ilusão, ou tão só uma maneira de suportar a distância intemporal inexistente.

"Surrendering", F. Rassouli

segunda-feira, abril 18, 2005

Fragmentos REM (XII)

Naquela noite Cecília esfaqueou muita gente.
Foi já depois do sol se tornar da cor da noite, quando em conjunto se digiram em conjunto até ao cume longínquo da colina esverdeada. O grupo, numeroso em gente e em sonhos, caminhou junto e tornou-se da cor da relva. No cimo da colina, o tempo misturou-se com o som, e a vida deixou de ser real. As crianças deitaram-se em conjunto olhando o céu que era naquele momento da cor que o céu é nos sonhos e nos filmes. Adormeceram em paz. As crianças e os anjos. Só Cecília estava inquieta. Apesar disso lembra-se de ter visto gente estranha entrar no vale abaixo dos seus pés. Recorda os caracóis anelados, cor de ouro, do menino adormecido.
Despertou à hora certa,aquela em que sabia ter uma missão por cumprir. Os homens e as mulheres com armaduras entravam no Paraíso, enquanto os anjos dormiam. Cecília segurou com custo a faca afiada, quase espada e, um a um, ía dilacerando os corpos. Os movimentos era rápidos e precisos. Por vezes era necessário ferir mais fundo, por vezes era preciso remexer e fazer doer. Lembra-se de enfiar a espada nos olhos cegos de fúria de um dos homens armados. A colina verde já não era verde. A mistura vermelha escura conferira-lhe um aspecto acastanhado e o cheiro a sangue abundava.
Naquela noite, Cecília esfaqueou muita gente. Cecília sabia que muitos mais viriam. Os anjos não a ajudavam e, por momentos, temeu que a sua força não chegasse até ao fim...
"Angel", U. Kenins

sábado, abril 09, 2005

Mais Não.
Correu sempre incansavelmente ao lado do mundo. A direcção da velocidade mantinha-se constante. O mundo ao lado dela. Ela ao lado do mundo. Correndo e sempre na direcção da aceleração, tanto maior quanto a sua vontade de chegar a algures, sempre potencialmente nenhures.
Nunca pensou em ultrapassá-lo... antes em acompanhá-lo. Mas também nunca lhe passou pela mente deixar-se ultrapassar. Lado a lado, como casal que jurou fidelidade até ao fim da vida. Ela e o mundo. Acelerava o passo para não se deixar ficar para trás, mas nunca abrandava. E percebeu que o mundo não esperava por ela. Sabe, no entanto, que ela, sim, esperaria pelo mundo. E tal como em todas as trocas, quando não se encontram, decidiu parar e deixar-se ultrapassar pelo mundo. Ele passou, sereno, como se nada fosse, ao lado da companheira de sempre, sem se deixar afectar, sem sequer reparar. Ela viu-o afastar-se ao longe. E não se importou.
"Message of Stopped Time", I. Sidorov

domingo, abril 03, 2005

Sabes-me a Eternidade
"Sabes-me a Eternidade" - cantou a música por dentro da pele, levando-a ao canto mais ínfimo do corpo que começava agora a ondular devagarinho na direcção de ninguém. E com a língua percorreu o som que se espalhava na sala e também por dentro. Não havia mais do que aquele som, que se questionava se era efectiva realidade, ou o produto do efeito das vibrações no corpo. Mais um bocado de história, mais um bocado de tempo, inútil mas necessário. E sentiu a experiência do Infinito.
"Blue-Infinity", Ulybka

sexta-feira, abril 01, 2005

Tens para a troca...?
Gostaria de te dizer uma palavra que não sei. Uma palavra que não conheço. Mas é essa, precisamente essa, que preciso de te dizer.
Tal como no dia em que quis sorrir e não pude pois não sabia como se fazia para sorrir. Sobretudo para sorrir a alguém. Não podia dar o que não tinha. Por mais que procurasse a fonte idealisticamente inesgotável. O poço secara... Aliás, desde sempre tivera sido um poço seco, tal e qual ventre estéril e desprovido de vida. Como a mãe que abre o colo em busca da semente que não tem, que não gera vida, que não basta querer semear. Assim como viver todos os dias e encontrar a impossibilidade a cada esquina.
O meu sorriso só pode ser a ausência de sorriso, já que espelho de todos os que me são esboçados diariamente, que são nenhuns. Tento encontrar nos confins da memória o esgar da felicidade, mas as rugas da mente fazem esquecer. Quero esquecer. Na verdade não quero encontrar. O que faria face a tão ilustre desconhecido? Aquele de que todos falam, mas poucos o fazem realmente. Recordo alguns traços do que me parece corresponder ao que descrevem como"sorriso", mas o afecto presente não é aquele de que falam. Recordo azedume, ironia, intriga, e ainda a cor amarela... não o amarelo vivo, mas o amarelo desvanecido, cor de vómito... Não recordo a alegria de que dizem o sorriso ser expressão...
Estou cansada de esperar que me sorriam. Para que possa fazer o mesmo, para que possa retribuir. Contudo, hoje vou fazer algo diferente. Não vou esperar. Vou pensar na primeira pessoa que sorriu no mundo e mais do que reproduzir ou retribuir, vou criar e oferecer. Faço um esforço agora... as linhas do rosto alteram-se, os músculos faciais empurram-se uns contra os outros e oferecem-se a um esforço desconhecido. Um esgar e uma sensação diferente encontram lugar no meu rosto. Sinto algum prazer, agora já não é só esforço. Estou a gostar... mas agora... que fazer com esse prazer...? Acho que sorri... será que alguém percebeu?
"Mona Lisa", L. DaVinci

sexta-feira, março 25, 2005

Quando os Mendigos Fazem Sorrir

Sabias que hoje é dia de sorrir lágrimas? Sabias?... Todas aquelas que não foram vertidas, e em vez de serem choradas, serão sorridas?
As gotas de água adivinhavam-se por detrás das notas musicais que ondulavam a partir dos dedos que se moviam, lestos, no acordeon, e por momentos se transformavam em sorrisos cantados.
Os mendigos, muitas vezes, fazem chorar. Mas hoje os mendigos faziam sorrir. E na carruagem, em vez de uma moeda, ganharam um sorriso. Um sorriso tímido da mulher que, encostada num dos lugares perdidos do metro, teria tido mais um final de dia amarelo e um rosto pardacento de cansaço, não tivessem sido aqueles dedos lestos que percorriam o instrumento e o faziam tocar entrelaçando as notas com a voz cor de mel. E o olhar foi melhor que a moeda. No peito, uma luz trémula de agradecimento.
A música ecoou, mesmo quando os vidros que dividem as carruagens abafavam o som. Nada pode abafar sorrisos. Ainda mais, quando são chorados, vertidos, derramados. Mesmo assim, verdadeiros. Talvez a música já não estivesse na carruagem ao lado. Talvez ecoasse apenas por dentro, em harmonia com o compasso sempre certo do coração eterno.
Há dias assim. Em que o fim do dia, mesmo amarelecido, é cantado, glorificado, memorável até. Como o som gravado por dentro.
Há dias em que os mendigos fazem sorrir. Embora chorem.
"The Flavour of Tears", R. Magritte

segunda-feira, março 21, 2005

Ressurreição
Gritaste-me, surpreendido - "Estás viva! Estás viva!"
Fiquei, por momento, perdida em mim mesma. Desorientada com as palavras que não entendia. Desmaiadas. Saídas dos teus lábios húmidos e da tua expressão surpreendida.
Percebi a tua surpresa, mas já não era sem tempo. Fazia já longos anos que estava morta.
"Rising Sun", TheRagingBull

segunda-feira, março 14, 2005

(Ir)Retornável
"Marília, o teu pai já chegou!" - gritava a voz forte, mas trémula por dentro. Marília murmurava qualquer coisa em retorno à voz da mãe. A voz da mãe, igual à de todos os dias, aquela que anunciava a chegada de quem nunca mais chegaria. Desde menina que sabia que o seu pai jamais voltaria. Desde o dia em que a mãe voltou pela última vez do hospital. Lembra-se bem desse dia- tinha uma claridade fora do habitual, a mãe chegara mais branca do que nunca e, contrariamente aos dias anteriores, não verteu uma lágrima ou proferiu uma palavra sequer.
Desde esse dia que simulava a aproximação da hora de chegada do marido a casa e avisava a filha: "O teu pai já chegou!". Durante muito tempo, já adolescente, Marília dos caracóis dourados, estacava em silêncio ao ouvir a voz da mãe, aguardando ouvir o já inconscientemente não esperado bater da porta. Aguardava em silêncio e respiração suspensa o passos largos e compassados do pai, o vulto que deveria passar no corredor, em frente à porta do seu quarto. Mas o pai nunca chegava.
Marília nunca mais dormira bem. Fazia anos que a insónia dela se apoderara, passando noites e noites em branco.
À medida que o tempo foi passando, a fúria começou a tomar conta de si, voltando-se contra a sua mãe, que considerava responsável por sempre lhe ter transmitido a esperança de um dia o pai voltar. Em vão. Revoltava-se contra aquela situação que se lhe afigurava insustentável, contrariando a negação da mãe. Entrou num ciclo desgastante de tentativas de confrontação da mãe com a realidade, que resultaram apenas no aumento da força dessa negação.
Já cansada, Marília deixou o dia anoitecer. Nessa noite, sentiu uma luminosidade diferente, parecida à do dia em que a sua mãe regressara para sempre do hospital.
Ouviu ao longe a voz da mãe: "Marília, o teu pai já chegou!". Com a porta do quarto semi-aberta, debaixo das mantas de lã quente, enroscada sobre si mesma, sentiu os olhos pesados. Ainda antes de adormecer, recorda ter ouvido o bater da porta, aquele bater de porta tão familiar. Os passos aproximavam-se ao longe e o seu ritmo embalou Marília que, após muito tempo sem dormir, acabou por se deixar abraçar por um sono sereno e tranquilo. Ela sabia que o seu pai tinha, enfim, chegado.
"Sleeping Girl", escultura de Carl Moroder (interpretação da pintura de G.Klimt)

segunda-feira, março 07, 2005

Sentido Único

O que importa é a decisão. Depois dela, a estrada é caminho sem retorno. Ponte queimada sobre abismo azulado.

A decisão é o salto. O impulso. O desejo. O não desejo.

Preso pela angústia. Salvo pela não resignação. Condenado à liberdade.

O momento é o movimento no seu quase. Quase... O Medo.

O Terror. A vida que passa depressa por dentro no instante lento do agora.

A gota de suor resvalante oferece o corpo ao desequilíbrio. O corpo balança, o ímpeto faz iniciar a estrada sem fim.

Caminho dolorosamente irretornável... a carne oferece-se à dor já sem medo. Como dizia... a decisão é o salto.

Agora é só a queda sem rede.


"Through the Door of No Return", Film by Shirikiana Aina
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... as vossas palavras

depois de "Tempestade de Fim do Dia":

"... Sempre tentou reservar as suas emoções para o papel. Nada de computadores impessoalmente inteligentes. Gostava de reler o que escrevia para relembrar alegrias passadas, para carregar com todos os dedos em feridas antigas, e só o papel as conservava acesas lembrando-o que fora ele que sentira "aquilo".Naquela noite, no entanto, o papel da sua memória só lhe fazia lembrar o que desempenhava na vida, e esse cada vez lhe agradava menos.Foi nessa altura que ouviu o barulho familiar do carro do lixo. O ruido dos caixotes levantados por pás mecânicas que despejavam pedaços sem utilidade de um dia da vida de alguém para o triturador. E foi nessa altura também que decidiu iniciar outra vida. Recomeçar de novo sem memórias.À pressa tomou nos braços todos os papéis que escrevia desde que se lembrava e desceu correndo os poucos degraus que o separavam da porta de casa, na esperança de ainda conseguir chegar ao carro do lixo. O papel do passado, com as suas alegrias e tristezas, iria para onde pertencia. Talvez um dia voltasse para a sua posse sob a forma de uma resma reciclada e pura."
............................................................................
"Não parar
Não parar
Não parar
Obsessão
(reciclar?)"

domingo, fevereiro 27, 2005

Tempestade de Fim do Dia

Quando Miguel finalmente se senta para escrever o fim do dia já lá vai, mais do que findo. É sempre na pressa que as letras saem e as frases se atropelam, sedentas de chegar a um destino e encontrarem, enfim, um destino ainda que ilusório. É nesse ímpeto que pensa sempre que precisaria de mais tempo, mais dedicação, mais sentido a dar a cada minuto que não vai dormir.
É nesse momento que ouve o camião do lixo, triturando os restos do dia. E Miguel gostava também de aproveitar a boleia. Nos dias em que se sente lixo. Ou então separá-lo de si e deitá-lo num recipiente adequado. Lixo devidamente separado. Nada de colocar o seu lixo junto de plásticos, embalagens ou vidro. Não. O seu lixo só poderia ser deitado em recipiente cor de rosa, aquele onde se deitam as emoções e se desfazem laços e se fazem nós bem mais apertados na garganta.
Miguel quer fazer. Não quer ficar parado. Se é para ser lixo que seja um lixo ambulante. Aquele que não pára. Cujo cheiro fétido é o seu produto. Não ele próprio, mas aquilo em que se transformou: a sua acção, o seu movimento e metamorfose contínuas, como que num devir inigualável, permanente e eterno.
Já não consegue escrever. O tempo suga-o para fora do cronologicamente aceitável. A serpente enrola-o e sufoca-o. Peca sem saber e engole o próprio pecado. Hoje, Miguel sente-se bizarro. Uma mistura de querer e não querer. E quer traduzi-lo em palavras, mas não consegue pensá-las, quanto mais escrevê-las ou dizê-las.
Então fica só no seu quarto, esperando a dor atingir a sua máxima intensidade. Talvez nesse momento a ferida seja alegria e as lágrimas, entusiasmo e motivação. Nesse momento, transformar-se-ão em pedras preciosas... e a caneta parirá, enfim, o pensamento.
Tarde demais. Já é muito para além do fim do dia. Nesse momento, Miguel ouve mais uma vez o camião do lixo.
"Deep Night Storm", Valerie Claff

domingo, fevereiro 20, 2005

Imortalidade

Percorre as folhas do livro,
a caligrafia de sangue negro,
com as mãos,
as pontas dos dedos,
a língua...
Dança com as folhas de seda
Degusta cada letra,
prova a entoação,
passeia por entre as linhas
na textura molhada da boca
que prova
o sabor de uma palavra...
Sela o segredo nos sentidos
e cavalga no vento
que não leva o que fica
escrito para sempre.



"Free Light", Rassouli

domingo, fevereiro 13, 2005

Morrendo

O seu rosto resplandecia, luminoso, quando ouvia aquelas histórias. O tom de voz grave dava-lhe sempre um outro soar, uma dimensão mais fantástica. O som dos seus lábios reflectiam-se no olhar dela, castanho de menina. Hoje ele contava uma história acerca de um homem que aparentemente dormia numa das carruagens cinzentas do Metro. Um homem que dormiu durante vários dias sentado no banco daquela carruagem. O chapéu ocultando uma parte do rosto, a cabeça sombria pendida para a frente, os braços presumivelmente relaxados, caindo por entre os joelhos. Até certa altura, mais tarde, um dos fiscais se aperceber que estava morto fazia já algum tempo. Um espaço de silêncio ocupou o tempo, até ela o indagar: "Morto... mas por fora ou por dentro?" Ao que ele lhe respondeu: "Será que faz diferença?"



"When the rock was sleeping.
The flower said: it was dead!
I never see its movement in all my life."


"Death", Rino



quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Final do Dia

No final do dia olhaste-me de soslaio e disseste de mansinho: "Eu não conseguia ser tu".
Olhei-te de volta e com a voz silenciosa suspirei: "Por vezes, também não consigo ser eu...".



"Symbiosis", Tomek Sikora


sábado, fevereiro 05, 2005

Diferente (Mente)
À medida que avançava com os olhos colados na biqueira dos ténis de cor azul já gasta, quedou-se no silêncio cinzento do pavimento. Estacou e leu as palavras vermelhas na parede de pedra poluída:
"Os meus amigos só podem ser aqueles que olham o mundo de modo diferente"
Indagou-se sobre o autor de tal frase. Ficou muito tempo parado em frente à parede. Quando se decidiu finalmente a continuar a sua indolente maratona quotidiana, soube que "aqueles que olham o mundo de modo diferente" eram "anormais". Pensou para si próprio que talvez tivesse pintado aquelas palavras na noite anterior, antes de regressar a casa. E seguiu caminho.
"World of Difference", Ian Cooper

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

A Descoberta

Madalena fazia mais uma vez o pino frente ao espelho para poder ver a sua expressão triste ao contrário. Longas tardes não passavam sem que de vez em quando sentisse a súbita necessidade de se ver pelo avesso. Caracóis louros espalhados no chão, a saia de tamanho médio rendida ao poder da gravidade, deixando entrever as coxas rosadas e as rendas mais íntimas. A camisa de algodão desalinhada, mais reveladora do que ocultante. Poder-se ia dizer que chegava a tornar-se uma imagem carregada de algum erotismo, de alguma sensualidade às quais eram, no entanto, alheios os olhos de Madalena.
Madalena concentrava-se no desenho semicircular que os lábios finos desenhavam, os cantos da boca apontando o chão. Ainda assim, esta direcção podia ser facilmente alterada quando, na sua perspectiva, o céu se tornava um imenso areal azul, salpicado de nuvens brancas onde podia brincar. Não conhecia outra maneira de sorrir.
Também as lágrimas imparáveis como rio transbordante acentuavam esta personificação da tristeza e da melancolia. Madalena procurava lugares fustigados pelo vento que lhe pudessem constantemente secar as lágrimas.
Um dia, Madalena demorou-se um pouco mais ao espelho. Observou demoradamente as suas curvas sinuosas, como se as visse e as sentisse pela primeira vez... Por momentos, quedou-se nos lábios entreabertos que beberam as lágrimas de um só trago. Não precisou de ajuda para puxar os seus cantos para cima... e perdeu-se no seu maravilhoso sorriso plantado num céu azul.
"Opening the Heart", Brian W. Jones

sábado, janeiro 29, 2005

Dança de Fogo
Por entre as chamas, ela grita para dentro, sufocando por fora. Metamorfoseada em fumo e em fogo, mistura-se com a cinza tornando-se nela. Nesse dia, em que as árvores em redor se transformaram em espasmos medonhos das noites terríveis das histórias de encantar. Em que o mundo foi mais do que uma história. Em que o mundo deixou de morar na cabeça, e doeu no corpo deformante e na alma faminta. No dia em que pediu aos outros que a suicidassem. Na ausência de elo entre ela e o mundo, na mistura inequívoca que lhe dizia que a ele pertencia. Pó do pó. O eterno retorno. Foi assim o triste dia em que se realizou o seu pedido para que a cremassem viva.
"Firedance", F. Rasouli

segunda-feira, janeiro 24, 2005

Planta-Me

Rafael era um rapaz pacato. Tinha poucos amigos, a sua vida era um constante avançar e refluir de casa para o trabalho. Um caminho quotidianamente construído com sorrisos. Sobretudo com sorrisos. Apesar das lágrimas que o espreitavam por entre as fissuras que se iam abrindo na casa, na qual os anos já pesavam. Eram pequenas esferas de água. Espreitantes. Expectantes. Mas Rafael sempre seguia caminho, perdido no seu sorriso, cego para as angústias e dúvidas existenciais.
O rapaz sabia porque existia e para o que existia. Tinha aquela sempre maravilhosa capacidade e transformar o escuro no claro, de simplificar as coisas e de ser feliz. Rafael era feliz. Contudo, um dia houve em que no usual caminho que percorria todos os dias deixou de ver relva e flores. Deixou de ver verde, campo e montanhas, e viu somente um longo caminho cinzento que o devolvia a casa. A anterior monotonia que ele tão bem sabia transformar em segurança, devolvia-lhe uma imagem desolada e sombria, sobre a qual o desconhecimento era total. Pela primeira vez na vida sentiu a insegurança. Sentimento medonho que fazia com que não tivesse a certeza de não cair no passo seguinte…
Muito devagar e a medo chegou a casa. Não parecia a mesma. As fissuras tinham aberto a casa em duas grandes metades. Mesmo assim, entrou pela porta. A desolação foi enorme quando viu a sua pobre casa. Da alegria nada restava. Apenas um monte de lixo putrefacto, um odor nauseabundo que tresandava a humidade esverdeada e bolorenta. Não reconheceu os seus objectos. Imundos. Sujos. Lamacentos. Nada. Nem sequer eram os mesmo objectos. Onde havia cor, as matizes tornaram-se bipolares de preto e branco. Onde havia som, apenas restou a angústia do silêncio. Onde havia alegria, passou a haver insegurança e agonia.
Rafael esboçou um sorriso ao contrário. Já sem qualquer alento deixou escorregar a pasta que trazia no braço e, nesse momento, o peso do objecto permitiu abrir um espaço no meio do caos. Uma pequena flor resplandecia no meio da lama. Rafael, a quem podiam tirar tudo, menos a ele próprio, segurou na pequena flor amarela e branca, que apesar de não estar plantada, parecia muito viva e viçosa… Olhou-a com um novo brilho no olhar. Com ela nas mãos, segurando-a como alguém segura a fragilidade , mas mantém a força, sentou-se na pedra que fazia anos repousava a entrada de casa. Devagar, desabotoou a camisa branca que lhe cobria o corpo, um pouco franzino. Com muito jeito, abriu um pequeno buraco na sua barriga e cuidadosamente plantou a flor em si próprio. Rapidamente, Rafael sentiu a força da raiz que alastrou pelo seu corpo alimentando-o. Levantou-se e partiu. Estava na hora de partir.
"Flower", M. Letaw

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Equilibra-Me

Foi tudo muito rápido. Tudo se passou numa questão de segundos, por entre o trânsito e os empedrados da calçada. Olhei-o de soslaio, sustendo-me no meu passo apressado. Aprendi que um segundo se divide em infinitas partes e pode ter dentro de si a vastidão de uma vida. O olhar é o de artista de circo. Tal e qual o funâmbulo atento e experiente. O olhar fixo, cravado numa qualquer realidade invisível. Os dois pés paralelos, um em frente do outro, indicando direcções opostas. Sem vacilar, como se o arame fosse apenas mais um prolongamento dos seus membros inferiores. Os braços abertos, disponíveis, mas sem o saberem. Como qualquer artista concentrado, não me chegou a ver. Talvez me visse. Mas naquela outra dimensão, paralela, onde a nossa opção foi outra. Talvez mais acertada. Talvez simplesmente outra, por nessa dimensão não haver certo nem errado. Tão mais certo do que nesta...
Por um momento, o olhar atento desvia-se. O corpo balança, torna-se frágil. Periclitantemente assustador o facto de ter abdicado da rede. Num momento ainda dentro do milésimo de segundo anterior o equilíbrio é realcançado. Um dia vai cair. Mas ainda não é hoje.



"Balance", Zen Azur

domingo, janeiro 16, 2005

Voa-me

Um pássaro gira em voos circulares no tecto do quarto. As penas aflitas movimentam-se aceleradamente em aflição, tornam-se mancha negro-azulada, movimentando-se em forma de infinito. O oito horizontal desenha-se contra o tecto branco, tornando o quarto vertigem alucinante. A rapariga dos cabelos pretos perde-se no movimento. Os pés descalços em cima da cama desalinhada. Os lençóis negros acetinados formam um fundo contra os pés de porcelana. Frágeis, mas lestos. Desimpedidos. Livres. Pequenos e saltitantes. As madeixas onduladas em movimento espalham o perfume obscuro. Madeixas e penas. Penas e madeixas. Saltitantes. Esvoaçantes.
Ela gira em sintonia com o pássaro, como que ouvindo uma música inaudível numa simultaneidade quase perfeita. Mais perfeito, só fundindo-se num só.
A música prossegue. O ritmo parece acelerar. A mulher, ainda menina, dança como ave. No meio do tumulto que se vê por fora e se sente por dentro, sabe que só lhe faltaria voar. Num gesto instantâneo, estica o punho na direcção do tecto e agarra de uma investida só o pássaro aflito, semi-desfeito pela força desproporcionada empregue no movimento descoordenado, sombra da loucura. Com uma das mãos, suaves como pétalas de rosa branca, segura o peito da ave. Com a outra, devagar, mas segura, arranca uma das asas... a uma segue-se a outra. Mancha de vermelho vivo o quadro a preto e branco. As asas negro-azuladas numa mão, triunfante. O pássaro rasgado na outra, um pouco mais descaída. Aproxima-se rápido da janela e, erguendo as duas pequenas asas acima da cabeça, lança-se no espaço, esperando combater a gravidade. Sem pensar que as asas roubadas jamais farão parte de si própria.
"Black Angel", S. Blondal

sábado, janeiro 15, 2005

Dissolução

Mergulho na escuridão da noite
Nado na humidade alva
Parede eminente
Separadora de mundos iguais
Provo as estrelas que não vejo
Estendo a língua na sua direcção
E apenas bebo o ar frio e húmido
Em rodopios giro sem parar
Desenho na mente o silêncio cantante
Dançando com a noite branca
Absorvo a luz simbiótica
Estendo as asas. Plano.
Sou confusão de nevoeiro
Dissolvo-me, enfim, no amanhecer.



"Misty Moisty Morning", S. Chambless

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Fragmentos REM (XI) - A Subida

Sara subia pelas escadas cinzentas sem parar. O corpo frágil contrastava com a tonalidade e a textura da pedra fria de cada degrau. Desde sempre que se recordava de subir aquelas escadas. Ainda criança, consegue lembrar-se do seu esforço para subir os degraus. Mãos e pés misturados na concretização do objectivo último. Subir. Lembra-se bem das correrias e das tropelias, das quedas quando se apressava demais ou se descuidava. Quando se desmotivava e chegava mesmo a parar. Sim, lembra-se bem. Das subidas bem acompanhadas. Dos esforços mais solitários. Mas ainda assim, o caminho era para cima, a escada abria-se, semi-obscurecida pela luz que descia de cima, em forma de espiral, chamando-a.
Na sua magreza ainda assim elegante, equilibrava-se periclitante, passo a passo, agora apoiada no corrimão de pedra. Hoje Sara sente-se cansada. Sabe que continua a subir apenas para não parar e ser obrigada a pensar... No entanto, pouco a pouco, o corpo começa a ceder e transforma-se em quase manta de retalhos, arrastada como rasto de vagabundo, frio e rastejante. Sara está tentada a parar e a contrariar essa força maior a que chama destino e a que resolveu deixar a direcção da sua vida. Não sabe até que ponto interferirá com essa força que se poderá enfurecer por essa sua interferência indesejada e intrometida.
Com o corpo vergado pela força do cansaço e da ironia, Sara pára momentaneamente. E é nesse momento que recorda acontecimentos soltos que não consegue relacionar e aos quais não consegue conferir significado. Lembra-se de subir as escadas a correr, armada. Recorda obstáculos vários - um animal enorme, uma porca que acabou de dar à luz, mas perdeu os seus leitões. Restam-lhe as tetas cheias de leite. Sara tem de passar-lhe por cima, apesar da enormidade e da disformidade do animal.
E continua a recordar... lembra-se de estar armada, de trespassar alguém com a lâmina de uma espada, mais pesada que ela própria, mais pesada que a sua culpa, desde então. E finalmente o lobo. O lobo branco, resistente a toda e qualquer bala. Talvez o destino que não pode vencer.
Sara volta ao agora e lança um olhar saudoso, mas temeroso ao centro das escadas. É possível ver os restantes patamares anteriores. Estão sombrios e ela não quer iluminá-los com os seus olhos. E se descesse? Mas o caminho é infinito, e a espiral que desce é tão grande ou maior do que a que sobe.
Sara ouve um uivo longínquo. Está longe, mas ela sabe que é o lobo branco que a persegue e que marca o ritmo dos seus passos. Uiva também em resposta e, devagar, retoma a caminhada. Sobe na direcção da luz. Não sabe para onde vai nem o que vai encontrar quando lá chegar, se é que vai chegar algum dia. Não sabe. Mas sabe que o seu caminho será sempre para cima.
"Spiral", C. Cherubini

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Trilhos

Não. Hoje é só para mim. Hoje sou só para mim. Sou umbigo, redondo, enrolado, feto mal acabado, ego perfeitamente determinado. Enrolo-me em onda sobre mim mesma, coroada pela espuma vacilante, e espraio-me na cama branca. Como se fosse areia. Os membros no prolongamento dos lençóis alvos. Desalinhados. Em sintonia com as madeixas onduladas e escuras. Revoltas como se fosse mar, só que de uma outra cor…
As lágrimas interiores, presas, desbragadas. O corpo não existe para além de mim. Para lá de mim. O corpo não se vê. Encanta e cega. O corpo brilha, sente e sabe que mais ninguém vai sentir. Mas hoje é para mim. Hoje resguardo-me, apesar de nua. Com o dedo vagarosamente abro um caminho no lençol, o caminho que nunca construi e que não vou percorrer. Hoje percorro-o por dentro, no corpo cheio de alma. Construo um cruzamento para que me possa perder. Um lugar sem horizonte. Neste leito, neste rio de doçura que corre entre as madeixas revoltas e que grita sem ser ouvido. Entrego-me sob o manto do lânguido abraço do leito. Só para mim, apesar de ter retirado o escudo de sempre. Para sempre. E mais uma vez sou percorrida pelo eterno raio de luz e sombra, o mesmo espasmo do peito, a mesma matéria que só pode ser mesmo mais do que isso. Que não me pacifica, mas encanta. Hoje é só para mim. Esta noite sou suspiro lânguido e doce…



"Nude Under White", C. Bolan