Fragmentos REM (XI) - A Subida
Sara subia pelas escadas cinzentas sem parar. O corpo frágil contrastava com a tonalidade e a textura da pedra fria de cada degrau. Desde sempre que se recordava de subir aquelas escadas. Ainda criança, consegue lembrar-se do seu esforço para subir os degraus. Mãos e pés misturados na concretização do objectivo último. Subir. Lembra-se bem das correrias e das tropelias, das quedas quando se apressava demais ou se descuidava. Quando se desmotivava e chegava mesmo a parar. Sim, lembra-se bem. Das subidas bem acompanhadas. Dos esforços mais solitários. Mas ainda assim, o caminho era para cima, a escada abria-se, semi-obscurecida pela luz que descia de cima, em forma de espiral, chamando-a.
Na sua magreza ainda assim elegante, equilibrava-se periclitante, passo a passo, agora apoiada no corrimão de pedra. Hoje Sara sente-se cansada. Sabe que continua a subir apenas para não parar e ser obrigada a pensar... No entanto, pouco a pouco, o corpo começa a ceder e transforma-se em quase manta de retalhos, arrastada como rasto de vagabundo, frio e rastejante. Sara está tentada a parar e a contrariar essa força maior a que chama destino e a que resolveu deixar a direcção da sua vida. Não sabe até que ponto interferirá com essa força que se poderá enfurecer por essa sua interferência indesejada e intrometida.
Com o corpo vergado pela força do cansaço e da ironia, Sara pára momentaneamente. E é nesse momento que recorda acontecimentos soltos que não consegue relacionar e aos quais não consegue conferir significado. Lembra-se de subir as escadas a correr, armada. Recorda obstáculos vários - um animal enorme, uma porca que acabou de dar à luz, mas perdeu os seus leitões. Restam-lhe as tetas cheias de leite. Sara tem de passar-lhe por cima, apesar da enormidade e da disformidade do animal.
E continua a recordar... lembra-se de estar armada, de trespassar alguém com a lâmina de uma espada, mais pesada que ela própria, mais pesada que a sua culpa, desde então. E finalmente o lobo. O lobo branco, resistente a toda e qualquer bala. Talvez o destino que não pode vencer.
Sara volta ao agora e lança um olhar saudoso, mas temeroso ao centro das escadas. É possível ver os restantes patamares anteriores. Estão sombrios e ela não quer iluminá-los com os seus olhos. E se descesse? Mas o caminho é infinito, e a espiral que desce é tão grande ou maior do que a que sobe.
Sara ouve um uivo longínquo. Está longe, mas ela sabe que é o lobo branco que a persegue e que marca o ritmo dos seus passos. Uiva também em resposta e, devagar, retoma a caminhada. Sobe na direcção da luz. Não sabe para onde vai nem o que vai encontrar quando lá chegar, se é que vai chegar algum dia. Não sabe. Mas sabe que o seu caminho será sempre para cima.
"Spiral", C. Cherubini