sábado, janeiro 29, 2005

Dança de Fogo
Por entre as chamas, ela grita para dentro, sufocando por fora. Metamorfoseada em fumo e em fogo, mistura-se com a cinza tornando-se nela. Nesse dia, em que as árvores em redor se transformaram em espasmos medonhos das noites terríveis das histórias de encantar. Em que o mundo foi mais do que uma história. Em que o mundo deixou de morar na cabeça, e doeu no corpo deformante e na alma faminta. No dia em que pediu aos outros que a suicidassem. Na ausência de elo entre ela e o mundo, na mistura inequívoca que lhe dizia que a ele pertencia. Pó do pó. O eterno retorno. Foi assim o triste dia em que se realizou o seu pedido para que a cremassem viva.
"Firedance", F. Rasouli

segunda-feira, janeiro 24, 2005

Planta-Me

Rafael era um rapaz pacato. Tinha poucos amigos, a sua vida era um constante avançar e refluir de casa para o trabalho. Um caminho quotidianamente construído com sorrisos. Sobretudo com sorrisos. Apesar das lágrimas que o espreitavam por entre as fissuras que se iam abrindo na casa, na qual os anos já pesavam. Eram pequenas esferas de água. Espreitantes. Expectantes. Mas Rafael sempre seguia caminho, perdido no seu sorriso, cego para as angústias e dúvidas existenciais.
O rapaz sabia porque existia e para o que existia. Tinha aquela sempre maravilhosa capacidade e transformar o escuro no claro, de simplificar as coisas e de ser feliz. Rafael era feliz. Contudo, um dia houve em que no usual caminho que percorria todos os dias deixou de ver relva e flores. Deixou de ver verde, campo e montanhas, e viu somente um longo caminho cinzento que o devolvia a casa. A anterior monotonia que ele tão bem sabia transformar em segurança, devolvia-lhe uma imagem desolada e sombria, sobre a qual o desconhecimento era total. Pela primeira vez na vida sentiu a insegurança. Sentimento medonho que fazia com que não tivesse a certeza de não cair no passo seguinte…
Muito devagar e a medo chegou a casa. Não parecia a mesma. As fissuras tinham aberto a casa em duas grandes metades. Mesmo assim, entrou pela porta. A desolação foi enorme quando viu a sua pobre casa. Da alegria nada restava. Apenas um monte de lixo putrefacto, um odor nauseabundo que tresandava a humidade esverdeada e bolorenta. Não reconheceu os seus objectos. Imundos. Sujos. Lamacentos. Nada. Nem sequer eram os mesmo objectos. Onde havia cor, as matizes tornaram-se bipolares de preto e branco. Onde havia som, apenas restou a angústia do silêncio. Onde havia alegria, passou a haver insegurança e agonia.
Rafael esboçou um sorriso ao contrário. Já sem qualquer alento deixou escorregar a pasta que trazia no braço e, nesse momento, o peso do objecto permitiu abrir um espaço no meio do caos. Uma pequena flor resplandecia no meio da lama. Rafael, a quem podiam tirar tudo, menos a ele próprio, segurou na pequena flor amarela e branca, que apesar de não estar plantada, parecia muito viva e viçosa… Olhou-a com um novo brilho no olhar. Com ela nas mãos, segurando-a como alguém segura a fragilidade , mas mantém a força, sentou-se na pedra que fazia anos repousava a entrada de casa. Devagar, desabotoou a camisa branca que lhe cobria o corpo, um pouco franzino. Com muito jeito, abriu um pequeno buraco na sua barriga e cuidadosamente plantou a flor em si próprio. Rapidamente, Rafael sentiu a força da raiz que alastrou pelo seu corpo alimentando-o. Levantou-se e partiu. Estava na hora de partir.
"Flower", M. Letaw

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Equilibra-Me

Foi tudo muito rápido. Tudo se passou numa questão de segundos, por entre o trânsito e os empedrados da calçada. Olhei-o de soslaio, sustendo-me no meu passo apressado. Aprendi que um segundo se divide em infinitas partes e pode ter dentro de si a vastidão de uma vida. O olhar é o de artista de circo. Tal e qual o funâmbulo atento e experiente. O olhar fixo, cravado numa qualquer realidade invisível. Os dois pés paralelos, um em frente do outro, indicando direcções opostas. Sem vacilar, como se o arame fosse apenas mais um prolongamento dos seus membros inferiores. Os braços abertos, disponíveis, mas sem o saberem. Como qualquer artista concentrado, não me chegou a ver. Talvez me visse. Mas naquela outra dimensão, paralela, onde a nossa opção foi outra. Talvez mais acertada. Talvez simplesmente outra, por nessa dimensão não haver certo nem errado. Tão mais certo do que nesta...
Por um momento, o olhar atento desvia-se. O corpo balança, torna-se frágil. Periclitantemente assustador o facto de ter abdicado da rede. Num momento ainda dentro do milésimo de segundo anterior o equilíbrio é realcançado. Um dia vai cair. Mas ainda não é hoje.



"Balance", Zen Azur

domingo, janeiro 16, 2005

Voa-me

Um pássaro gira em voos circulares no tecto do quarto. As penas aflitas movimentam-se aceleradamente em aflição, tornam-se mancha negro-azulada, movimentando-se em forma de infinito. O oito horizontal desenha-se contra o tecto branco, tornando o quarto vertigem alucinante. A rapariga dos cabelos pretos perde-se no movimento. Os pés descalços em cima da cama desalinhada. Os lençóis negros acetinados formam um fundo contra os pés de porcelana. Frágeis, mas lestos. Desimpedidos. Livres. Pequenos e saltitantes. As madeixas onduladas em movimento espalham o perfume obscuro. Madeixas e penas. Penas e madeixas. Saltitantes. Esvoaçantes.
Ela gira em sintonia com o pássaro, como que ouvindo uma música inaudível numa simultaneidade quase perfeita. Mais perfeito, só fundindo-se num só.
A música prossegue. O ritmo parece acelerar. A mulher, ainda menina, dança como ave. No meio do tumulto que se vê por fora e se sente por dentro, sabe que só lhe faltaria voar. Num gesto instantâneo, estica o punho na direcção do tecto e agarra de uma investida só o pássaro aflito, semi-desfeito pela força desproporcionada empregue no movimento descoordenado, sombra da loucura. Com uma das mãos, suaves como pétalas de rosa branca, segura o peito da ave. Com a outra, devagar, mas segura, arranca uma das asas... a uma segue-se a outra. Mancha de vermelho vivo o quadro a preto e branco. As asas negro-azuladas numa mão, triunfante. O pássaro rasgado na outra, um pouco mais descaída. Aproxima-se rápido da janela e, erguendo as duas pequenas asas acima da cabeça, lança-se no espaço, esperando combater a gravidade. Sem pensar que as asas roubadas jamais farão parte de si própria.
"Black Angel", S. Blondal

sábado, janeiro 15, 2005

Dissolução

Mergulho na escuridão da noite
Nado na humidade alva
Parede eminente
Separadora de mundos iguais
Provo as estrelas que não vejo
Estendo a língua na sua direcção
E apenas bebo o ar frio e húmido
Em rodopios giro sem parar
Desenho na mente o silêncio cantante
Dançando com a noite branca
Absorvo a luz simbiótica
Estendo as asas. Plano.
Sou confusão de nevoeiro
Dissolvo-me, enfim, no amanhecer.



"Misty Moisty Morning", S. Chambless

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Fragmentos REM (XI) - A Subida

Sara subia pelas escadas cinzentas sem parar. O corpo frágil contrastava com a tonalidade e a textura da pedra fria de cada degrau. Desde sempre que se recordava de subir aquelas escadas. Ainda criança, consegue lembrar-se do seu esforço para subir os degraus. Mãos e pés misturados na concretização do objectivo último. Subir. Lembra-se bem das correrias e das tropelias, das quedas quando se apressava demais ou se descuidava. Quando se desmotivava e chegava mesmo a parar. Sim, lembra-se bem. Das subidas bem acompanhadas. Dos esforços mais solitários. Mas ainda assim, o caminho era para cima, a escada abria-se, semi-obscurecida pela luz que descia de cima, em forma de espiral, chamando-a.
Na sua magreza ainda assim elegante, equilibrava-se periclitante, passo a passo, agora apoiada no corrimão de pedra. Hoje Sara sente-se cansada. Sabe que continua a subir apenas para não parar e ser obrigada a pensar... No entanto, pouco a pouco, o corpo começa a ceder e transforma-se em quase manta de retalhos, arrastada como rasto de vagabundo, frio e rastejante. Sara está tentada a parar e a contrariar essa força maior a que chama destino e a que resolveu deixar a direcção da sua vida. Não sabe até que ponto interferirá com essa força que se poderá enfurecer por essa sua interferência indesejada e intrometida.
Com o corpo vergado pela força do cansaço e da ironia, Sara pára momentaneamente. E é nesse momento que recorda acontecimentos soltos que não consegue relacionar e aos quais não consegue conferir significado. Lembra-se de subir as escadas a correr, armada. Recorda obstáculos vários - um animal enorme, uma porca que acabou de dar à luz, mas perdeu os seus leitões. Restam-lhe as tetas cheias de leite. Sara tem de passar-lhe por cima, apesar da enormidade e da disformidade do animal.
E continua a recordar... lembra-se de estar armada, de trespassar alguém com a lâmina de uma espada, mais pesada que ela própria, mais pesada que a sua culpa, desde então. E finalmente o lobo. O lobo branco, resistente a toda e qualquer bala. Talvez o destino que não pode vencer.
Sara volta ao agora e lança um olhar saudoso, mas temeroso ao centro das escadas. É possível ver os restantes patamares anteriores. Estão sombrios e ela não quer iluminá-los com os seus olhos. E se descesse? Mas o caminho é infinito, e a espiral que desce é tão grande ou maior do que a que sobe.
Sara ouve um uivo longínquo. Está longe, mas ela sabe que é o lobo branco que a persegue e que marca o ritmo dos seus passos. Uiva também em resposta e, devagar, retoma a caminhada. Sobe na direcção da luz. Não sabe para onde vai nem o que vai encontrar quando lá chegar, se é que vai chegar algum dia. Não sabe. Mas sabe que o seu caminho será sempre para cima.
"Spiral", C. Cherubini

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Trilhos

Não. Hoje é só para mim. Hoje sou só para mim. Sou umbigo, redondo, enrolado, feto mal acabado, ego perfeitamente determinado. Enrolo-me em onda sobre mim mesma, coroada pela espuma vacilante, e espraio-me na cama branca. Como se fosse areia. Os membros no prolongamento dos lençóis alvos. Desalinhados. Em sintonia com as madeixas onduladas e escuras. Revoltas como se fosse mar, só que de uma outra cor…
As lágrimas interiores, presas, desbragadas. O corpo não existe para além de mim. Para lá de mim. O corpo não se vê. Encanta e cega. O corpo brilha, sente e sabe que mais ninguém vai sentir. Mas hoje é para mim. Hoje resguardo-me, apesar de nua. Com o dedo vagarosamente abro um caminho no lençol, o caminho que nunca construi e que não vou percorrer. Hoje percorro-o por dentro, no corpo cheio de alma. Construo um cruzamento para que me possa perder. Um lugar sem horizonte. Neste leito, neste rio de doçura que corre entre as madeixas revoltas e que grita sem ser ouvido. Entrego-me sob o manto do lânguido abraço do leito. Só para mim, apesar de ter retirado o escudo de sempre. Para sempre. E mais uma vez sou percorrida pelo eterno raio de luz e sombra, o mesmo espasmo do peito, a mesma matéria que só pode ser mesmo mais do que isso. Que não me pacifica, mas encanta. Hoje é só para mim. Esta noite sou suspiro lânguido e doce…



"Nude Under White", C. Bolan