Quando Miguel finalmente se senta para escrever o fim do dia já lá vai, mais do que findo. É sempre na pressa que as letras saem e as frases se atropelam, sedentas de chegar a um destino e encontrarem, enfim, um destino ainda que ilusório. É nesse ímpeto que pensa sempre que precisaria de mais tempo, mais dedicação, mais sentido a dar a cada minuto que não vai dormir.
É nesse momento que ouve o camião do lixo, triturando os restos do dia. E Miguel gostava também de aproveitar a boleia. Nos dias em que se sente lixo. Ou então separá-lo de si e deitá-lo num recipiente adequado. Lixo devidamente separado. Nada de colocar o seu lixo junto de plásticos, embalagens ou vidro. Não. O seu lixo só poderia ser deitado em recipiente cor de rosa, aquele onde se deitam as emoções e se desfazem laços e se fazem nós bem mais apertados na garganta.
Miguel quer fazer. Não quer ficar parado. Se é para ser lixo que seja um lixo ambulante. Aquele que não pára. Cujo cheiro fétido é o seu produto. Não ele próprio, mas aquilo em que se transformou: a sua acção, o seu movimento e metamorfose contínuas, como que num devir inigualável, permanente e eterno.
Já não consegue escrever. O tempo suga-o para fora do cronologicamente aceitável. A serpente enrola-o e sufoca-o. Peca sem saber e engole o próprio pecado. Hoje, Miguel sente-se bizarro. Uma mistura de querer e não querer. E quer traduzi-lo em palavras, mas não consegue pensá-las, quanto mais escrevê-las ou dizê-las.
Então fica só no seu quarto, esperando a dor atingir a sua máxima intensidade. Talvez nesse momento a ferida seja alegria e as lágrimas, entusiasmo e motivação. Nesse momento, transformar-se-ão em pedras preciosas... e a caneta parirá, enfim, o pensamento.
Tarde demais. Já é muito para além do fim do dia. Nesse momento, Miguel ouve mais uma vez o camião do lixo.
"Deep Night Storm", Valerie Claff