domingo, fevereiro 27, 2005

Tempestade de Fim do Dia

Quando Miguel finalmente se senta para escrever o fim do dia já lá vai, mais do que findo. É sempre na pressa que as letras saem e as frases se atropelam, sedentas de chegar a um destino e encontrarem, enfim, um destino ainda que ilusório. É nesse ímpeto que pensa sempre que precisaria de mais tempo, mais dedicação, mais sentido a dar a cada minuto que não vai dormir.
É nesse momento que ouve o camião do lixo, triturando os restos do dia. E Miguel gostava também de aproveitar a boleia. Nos dias em que se sente lixo. Ou então separá-lo de si e deitá-lo num recipiente adequado. Lixo devidamente separado. Nada de colocar o seu lixo junto de plásticos, embalagens ou vidro. Não. O seu lixo só poderia ser deitado em recipiente cor de rosa, aquele onde se deitam as emoções e se desfazem laços e se fazem nós bem mais apertados na garganta.
Miguel quer fazer. Não quer ficar parado. Se é para ser lixo que seja um lixo ambulante. Aquele que não pára. Cujo cheiro fétido é o seu produto. Não ele próprio, mas aquilo em que se transformou: a sua acção, o seu movimento e metamorfose contínuas, como que num devir inigualável, permanente e eterno.
Já não consegue escrever. O tempo suga-o para fora do cronologicamente aceitável. A serpente enrola-o e sufoca-o. Peca sem saber e engole o próprio pecado. Hoje, Miguel sente-se bizarro. Uma mistura de querer e não querer. E quer traduzi-lo em palavras, mas não consegue pensá-las, quanto mais escrevê-las ou dizê-las.
Então fica só no seu quarto, esperando a dor atingir a sua máxima intensidade. Talvez nesse momento a ferida seja alegria e as lágrimas, entusiasmo e motivação. Nesse momento, transformar-se-ão em pedras preciosas... e a caneta parirá, enfim, o pensamento.
Tarde demais. Já é muito para além do fim do dia. Nesse momento, Miguel ouve mais uma vez o camião do lixo.
"Deep Night Storm", Valerie Claff

domingo, fevereiro 20, 2005

Imortalidade

Percorre as folhas do livro,
a caligrafia de sangue negro,
com as mãos,
as pontas dos dedos,
a língua...
Dança com as folhas de seda
Degusta cada letra,
prova a entoação,
passeia por entre as linhas
na textura molhada da boca
que prova
o sabor de uma palavra...
Sela o segredo nos sentidos
e cavalga no vento
que não leva o que fica
escrito para sempre.



"Free Light", Rassouli

domingo, fevereiro 13, 2005

Morrendo

O seu rosto resplandecia, luminoso, quando ouvia aquelas histórias. O tom de voz grave dava-lhe sempre um outro soar, uma dimensão mais fantástica. O som dos seus lábios reflectiam-se no olhar dela, castanho de menina. Hoje ele contava uma história acerca de um homem que aparentemente dormia numa das carruagens cinzentas do Metro. Um homem que dormiu durante vários dias sentado no banco daquela carruagem. O chapéu ocultando uma parte do rosto, a cabeça sombria pendida para a frente, os braços presumivelmente relaxados, caindo por entre os joelhos. Até certa altura, mais tarde, um dos fiscais se aperceber que estava morto fazia já algum tempo. Um espaço de silêncio ocupou o tempo, até ela o indagar: "Morto... mas por fora ou por dentro?" Ao que ele lhe respondeu: "Será que faz diferença?"



"When the rock was sleeping.
The flower said: it was dead!
I never see its movement in all my life."


"Death", Rino



quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Final do Dia

No final do dia olhaste-me de soslaio e disseste de mansinho: "Eu não conseguia ser tu".
Olhei-te de volta e com a voz silenciosa suspirei: "Por vezes, também não consigo ser eu...".



"Symbiosis", Tomek Sikora


sábado, fevereiro 05, 2005

Diferente (Mente)
À medida que avançava com os olhos colados na biqueira dos ténis de cor azul já gasta, quedou-se no silêncio cinzento do pavimento. Estacou e leu as palavras vermelhas na parede de pedra poluída:
"Os meus amigos só podem ser aqueles que olham o mundo de modo diferente"
Indagou-se sobre o autor de tal frase. Ficou muito tempo parado em frente à parede. Quando se decidiu finalmente a continuar a sua indolente maratona quotidiana, soube que "aqueles que olham o mundo de modo diferente" eram "anormais". Pensou para si próprio que talvez tivesse pintado aquelas palavras na noite anterior, antes de regressar a casa. E seguiu caminho.
"World of Difference", Ian Cooper

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

A Descoberta

Madalena fazia mais uma vez o pino frente ao espelho para poder ver a sua expressão triste ao contrário. Longas tardes não passavam sem que de vez em quando sentisse a súbita necessidade de se ver pelo avesso. Caracóis louros espalhados no chão, a saia de tamanho médio rendida ao poder da gravidade, deixando entrever as coxas rosadas e as rendas mais íntimas. A camisa de algodão desalinhada, mais reveladora do que ocultante. Poder-se ia dizer que chegava a tornar-se uma imagem carregada de algum erotismo, de alguma sensualidade às quais eram, no entanto, alheios os olhos de Madalena.
Madalena concentrava-se no desenho semicircular que os lábios finos desenhavam, os cantos da boca apontando o chão. Ainda assim, esta direcção podia ser facilmente alterada quando, na sua perspectiva, o céu se tornava um imenso areal azul, salpicado de nuvens brancas onde podia brincar. Não conhecia outra maneira de sorrir.
Também as lágrimas imparáveis como rio transbordante acentuavam esta personificação da tristeza e da melancolia. Madalena procurava lugares fustigados pelo vento que lhe pudessem constantemente secar as lágrimas.
Um dia, Madalena demorou-se um pouco mais ao espelho. Observou demoradamente as suas curvas sinuosas, como se as visse e as sentisse pela primeira vez... Por momentos, quedou-se nos lábios entreabertos que beberam as lágrimas de um só trago. Não precisou de ajuda para puxar os seus cantos para cima... e perdeu-se no seu maravilhoso sorriso plantado num céu azul.
"Opening the Heart", Brian W. Jones