sexta-feira, março 25, 2005

Quando os Mendigos Fazem Sorrir

Sabias que hoje é dia de sorrir lágrimas? Sabias?... Todas aquelas que não foram vertidas, e em vez de serem choradas, serão sorridas?
As gotas de água adivinhavam-se por detrás das notas musicais que ondulavam a partir dos dedos que se moviam, lestos, no acordeon, e por momentos se transformavam em sorrisos cantados.
Os mendigos, muitas vezes, fazem chorar. Mas hoje os mendigos faziam sorrir. E na carruagem, em vez de uma moeda, ganharam um sorriso. Um sorriso tímido da mulher que, encostada num dos lugares perdidos do metro, teria tido mais um final de dia amarelo e um rosto pardacento de cansaço, não tivessem sido aqueles dedos lestos que percorriam o instrumento e o faziam tocar entrelaçando as notas com a voz cor de mel. E o olhar foi melhor que a moeda. No peito, uma luz trémula de agradecimento.
A música ecoou, mesmo quando os vidros que dividem as carruagens abafavam o som. Nada pode abafar sorrisos. Ainda mais, quando são chorados, vertidos, derramados. Mesmo assim, verdadeiros. Talvez a música já não estivesse na carruagem ao lado. Talvez ecoasse apenas por dentro, em harmonia com o compasso sempre certo do coração eterno.
Há dias assim. Em que o fim do dia, mesmo amarelecido, é cantado, glorificado, memorável até. Como o som gravado por dentro.
Há dias em que os mendigos fazem sorrir. Embora chorem.
"The Flavour of Tears", R. Magritte

segunda-feira, março 21, 2005

Ressurreição
Gritaste-me, surpreendido - "Estás viva! Estás viva!"
Fiquei, por momento, perdida em mim mesma. Desorientada com as palavras que não entendia. Desmaiadas. Saídas dos teus lábios húmidos e da tua expressão surpreendida.
Percebi a tua surpresa, mas já não era sem tempo. Fazia já longos anos que estava morta.
"Rising Sun", TheRagingBull

segunda-feira, março 14, 2005

(Ir)Retornável
"Marília, o teu pai já chegou!" - gritava a voz forte, mas trémula por dentro. Marília murmurava qualquer coisa em retorno à voz da mãe. A voz da mãe, igual à de todos os dias, aquela que anunciava a chegada de quem nunca mais chegaria. Desde menina que sabia que o seu pai jamais voltaria. Desde o dia em que a mãe voltou pela última vez do hospital. Lembra-se bem desse dia- tinha uma claridade fora do habitual, a mãe chegara mais branca do que nunca e, contrariamente aos dias anteriores, não verteu uma lágrima ou proferiu uma palavra sequer.
Desde esse dia que simulava a aproximação da hora de chegada do marido a casa e avisava a filha: "O teu pai já chegou!". Durante muito tempo, já adolescente, Marília dos caracóis dourados, estacava em silêncio ao ouvir a voz da mãe, aguardando ouvir o já inconscientemente não esperado bater da porta. Aguardava em silêncio e respiração suspensa o passos largos e compassados do pai, o vulto que deveria passar no corredor, em frente à porta do seu quarto. Mas o pai nunca chegava.
Marília nunca mais dormira bem. Fazia anos que a insónia dela se apoderara, passando noites e noites em branco.
À medida que o tempo foi passando, a fúria começou a tomar conta de si, voltando-se contra a sua mãe, que considerava responsável por sempre lhe ter transmitido a esperança de um dia o pai voltar. Em vão. Revoltava-se contra aquela situação que se lhe afigurava insustentável, contrariando a negação da mãe. Entrou num ciclo desgastante de tentativas de confrontação da mãe com a realidade, que resultaram apenas no aumento da força dessa negação.
Já cansada, Marília deixou o dia anoitecer. Nessa noite, sentiu uma luminosidade diferente, parecida à do dia em que a sua mãe regressara para sempre do hospital.
Ouviu ao longe a voz da mãe: "Marília, o teu pai já chegou!". Com a porta do quarto semi-aberta, debaixo das mantas de lã quente, enroscada sobre si mesma, sentiu os olhos pesados. Ainda antes de adormecer, recorda ter ouvido o bater da porta, aquele bater de porta tão familiar. Os passos aproximavam-se ao longe e o seu ritmo embalou Marília que, após muito tempo sem dormir, acabou por se deixar abraçar por um sono sereno e tranquilo. Ela sabia que o seu pai tinha, enfim, chegado.
"Sleeping Girl", escultura de Carl Moroder (interpretação da pintura de G.Klimt)

segunda-feira, março 07, 2005

Sentido Único

O que importa é a decisão. Depois dela, a estrada é caminho sem retorno. Ponte queimada sobre abismo azulado.

A decisão é o salto. O impulso. O desejo. O não desejo.

Preso pela angústia. Salvo pela não resignação. Condenado à liberdade.

O momento é o movimento no seu quase. Quase... O Medo.

O Terror. A vida que passa depressa por dentro no instante lento do agora.

A gota de suor resvalante oferece o corpo ao desequilíbrio. O corpo balança, o ímpeto faz iniciar a estrada sem fim.

Caminho dolorosamente irretornável... a carne oferece-se à dor já sem medo. Como dizia... a decisão é o salto.

Agora é só a queda sem rede.


"Through the Door of No Return", Film by Shirikiana Aina
Partilhar...

... as vossas palavras

depois de "Tempestade de Fim do Dia":

"... Sempre tentou reservar as suas emoções para o papel. Nada de computadores impessoalmente inteligentes. Gostava de reler o que escrevia para relembrar alegrias passadas, para carregar com todos os dedos em feridas antigas, e só o papel as conservava acesas lembrando-o que fora ele que sentira "aquilo".Naquela noite, no entanto, o papel da sua memória só lhe fazia lembrar o que desempenhava na vida, e esse cada vez lhe agradava menos.Foi nessa altura que ouviu o barulho familiar do carro do lixo. O ruido dos caixotes levantados por pás mecânicas que despejavam pedaços sem utilidade de um dia da vida de alguém para o triturador. E foi nessa altura também que decidiu iniciar outra vida. Recomeçar de novo sem memórias.À pressa tomou nos braços todos os papéis que escrevia desde que se lembrava e desceu correndo os poucos degraus que o separavam da porta de casa, na esperança de ainda conseguir chegar ao carro do lixo. O papel do passado, com as suas alegrias e tristezas, iria para onde pertencia. Talvez um dia voltasse para a sua posse sob a forma de uma resma reciclada e pura."
............................................................................
"Não parar
Não parar
Não parar
Obsessão
(reciclar?)"