segunda-feira, abril 25, 2005

Da Liberdade e da sua Morada
Hoje, alguém me disse que sou livre. Contudo, naquele momento não me senti livre. Para dizer a verdade, até os movimentos dos músculos mais pequenos se sentiram presos dentro do meu corpo. Esticados e ainda por rasgar.
Como se quando as palavras foram proferidas me tivessem entalado em labirinto obscurecido pelo tempo e pela impaciência. Como se a vida fosse a cela que me encerra. A cela que se fecha, vazia e escura, sobre mim. Uma redoma povoada por demónios atormentadores, zombando das ironias que me compõem. Procuro a liberdade que não vejo e não sinto. Não encontro também o meu carcereiro. Por mais que busque.
Por momentos, olho pela janela que dá para a paisagem que sou eu por dentro. Talvez tenha procurado no local errado. Viro-me do avesso e encontro enfim, os meus atilhos. A carne da minha carne que me ata e me tolda os movimentos. Agora que sei... talvez possa ser livre.
R. Magritte

quinta-feira, abril 21, 2005

Ad Aeternum

Talvez tivesse chegado a hora de aqui estar mais uma vez… ouvindo a mesma música, a que torna todo o momento no conceito de sempre. Aquela que não deixa descansar, que tumulta e revolve. Que faz pensar no rodopio que danço enquanto olho o céu, em que já não sou eu que rodopio, mas sim o céu em tons azulados pintado de fiapos de algodão. Então o céu mistura-se com a minha boca e sai pelos olhos em forma de lágrimas doces.
Faz lembrar o cemitério coberto de relva e de flores amarelas. Aquelas, as dos campos onde me gostavas de levar a passear. Agora elas alimentam-se do teu corpo e dão-me vida. Sugam-te e transformam-te na seiva que corre. É assim que me dás vida e que te vejo. No rodopio contínuo da música que chega a arrepiar a pele. No ciclo infindável, em que o fim é apenas ilusão, ou tão só uma maneira de suportar a distância intemporal inexistente.

"Surrendering", F. Rassouli

segunda-feira, abril 18, 2005

Fragmentos REM (XII)

Naquela noite Cecília esfaqueou muita gente.
Foi já depois do sol se tornar da cor da noite, quando em conjunto se digiram em conjunto até ao cume longínquo da colina esverdeada. O grupo, numeroso em gente e em sonhos, caminhou junto e tornou-se da cor da relva. No cimo da colina, o tempo misturou-se com o som, e a vida deixou de ser real. As crianças deitaram-se em conjunto olhando o céu que era naquele momento da cor que o céu é nos sonhos e nos filmes. Adormeceram em paz. As crianças e os anjos. Só Cecília estava inquieta. Apesar disso lembra-se de ter visto gente estranha entrar no vale abaixo dos seus pés. Recorda os caracóis anelados, cor de ouro, do menino adormecido.
Despertou à hora certa,aquela em que sabia ter uma missão por cumprir. Os homens e as mulheres com armaduras entravam no Paraíso, enquanto os anjos dormiam. Cecília segurou com custo a faca afiada, quase espada e, um a um, ía dilacerando os corpos. Os movimentos era rápidos e precisos. Por vezes era necessário ferir mais fundo, por vezes era preciso remexer e fazer doer. Lembra-se de enfiar a espada nos olhos cegos de fúria de um dos homens armados. A colina verde já não era verde. A mistura vermelha escura conferira-lhe um aspecto acastanhado e o cheiro a sangue abundava.
Naquela noite, Cecília esfaqueou muita gente. Cecília sabia que muitos mais viriam. Os anjos não a ajudavam e, por momentos, temeu que a sua força não chegasse até ao fim...
"Angel", U. Kenins

sábado, abril 09, 2005

Mais Não.
Correu sempre incansavelmente ao lado do mundo. A direcção da velocidade mantinha-se constante. O mundo ao lado dela. Ela ao lado do mundo. Correndo e sempre na direcção da aceleração, tanto maior quanto a sua vontade de chegar a algures, sempre potencialmente nenhures.
Nunca pensou em ultrapassá-lo... antes em acompanhá-lo. Mas também nunca lhe passou pela mente deixar-se ultrapassar. Lado a lado, como casal que jurou fidelidade até ao fim da vida. Ela e o mundo. Acelerava o passo para não se deixar ficar para trás, mas nunca abrandava. E percebeu que o mundo não esperava por ela. Sabe, no entanto, que ela, sim, esperaria pelo mundo. E tal como em todas as trocas, quando não se encontram, decidiu parar e deixar-se ultrapassar pelo mundo. Ele passou, sereno, como se nada fosse, ao lado da companheira de sempre, sem se deixar afectar, sem sequer reparar. Ela viu-o afastar-se ao longe. E não se importou.
"Message of Stopped Time", I. Sidorov

domingo, abril 03, 2005

Sabes-me a Eternidade
"Sabes-me a Eternidade" - cantou a música por dentro da pele, levando-a ao canto mais ínfimo do corpo que começava agora a ondular devagarinho na direcção de ninguém. E com a língua percorreu o som que se espalhava na sala e também por dentro. Não havia mais do que aquele som, que se questionava se era efectiva realidade, ou o produto do efeito das vibrações no corpo. Mais um bocado de história, mais um bocado de tempo, inútil mas necessário. E sentiu a experiência do Infinito.
"Blue-Infinity", Ulybka

sexta-feira, abril 01, 2005

Tens para a troca...?
Gostaria de te dizer uma palavra que não sei. Uma palavra que não conheço. Mas é essa, precisamente essa, que preciso de te dizer.
Tal como no dia em que quis sorrir e não pude pois não sabia como se fazia para sorrir. Sobretudo para sorrir a alguém. Não podia dar o que não tinha. Por mais que procurasse a fonte idealisticamente inesgotável. O poço secara... Aliás, desde sempre tivera sido um poço seco, tal e qual ventre estéril e desprovido de vida. Como a mãe que abre o colo em busca da semente que não tem, que não gera vida, que não basta querer semear. Assim como viver todos os dias e encontrar a impossibilidade a cada esquina.
O meu sorriso só pode ser a ausência de sorriso, já que espelho de todos os que me são esboçados diariamente, que são nenhuns. Tento encontrar nos confins da memória o esgar da felicidade, mas as rugas da mente fazem esquecer. Quero esquecer. Na verdade não quero encontrar. O que faria face a tão ilustre desconhecido? Aquele de que todos falam, mas poucos o fazem realmente. Recordo alguns traços do que me parece corresponder ao que descrevem como"sorriso", mas o afecto presente não é aquele de que falam. Recordo azedume, ironia, intriga, e ainda a cor amarela... não o amarelo vivo, mas o amarelo desvanecido, cor de vómito... Não recordo a alegria de que dizem o sorriso ser expressão...
Estou cansada de esperar que me sorriam. Para que possa fazer o mesmo, para que possa retribuir. Contudo, hoje vou fazer algo diferente. Não vou esperar. Vou pensar na primeira pessoa que sorriu no mundo e mais do que reproduzir ou retribuir, vou criar e oferecer. Faço um esforço agora... as linhas do rosto alteram-se, os músculos faciais empurram-se uns contra os outros e oferecem-se a um esforço desconhecido. Um esgar e uma sensação diferente encontram lugar no meu rosto. Sinto algum prazer, agora já não é só esforço. Estou a gostar... mas agora... que fazer com esse prazer...? Acho que sorri... será que alguém percebeu?
"Mona Lisa", L. DaVinci