domingo, maio 15, 2005

O Homem que Vivia numa Roda
Xavier estava cansado. A sua roda parecia andar depressa demais. Sentia-se cansado e sem forças, mesmo exausto quando, chegado a casa, se sentou no sofá. Ainda assim continuando a "pedalar" na sua roda. No entanto, embora naquele dia lhe parecesse mais pesada, esta andava tão depressa quanto a de todos os outros.
Observando de fora, a roda em que todos caminhavam, dia após dia, fazia lembrar as que entretêm os hamsters nas suas gaiolas. Com a diferença que a de Xavier, tal como a de todos os outros, não era uma opção. Rodava sem parar, sempre em direcção única, sem nunca voltar atrás, debaixo de chuva ou de sol, fizesse frio ou calor, estivesse Xavier mais ou menos cansado. A sua vida era precisamente fazer tudo o que todos fazem desde o nascimento até à morte, andando sem parar, na roda gigante. Na verdade, alternativa não existia já que não havia maneira de fazer parar este mecanismo que por vezes parecia monstruoso a este homem. Mecanismo que tinha tanto de curioso como de banal. A rotina tornara-o curriqueiro, mas não deixava de ser intrigante para os que sobre ele reflectiam. Certo dia, Xavier, um pouco cansado de não olhar muito para além da sua própria roda, contiuando a efectuar os mesmos mecânicos passos, dispensou algum tempo para observar as dos outros. E nisto pôde reparar que todas as rodas tinham o mesmo tamanho e andavam precisamente à mesma velocidade. No entanto, nem todas as pessoas caminhavam com a mesma facilidade. Realmente havia quem caminhasse aos empurrões, quem andasse ao sabor do vento, quem rastejasse e mesmo quem corresse. Alguns pareciam relativamente descansados, sonhadores até, não reparando sequer que a roda girava, outros pareciam exaustos carregando objectos e ideias amarrados à roda, tornando-a demasiado pesada para os seus magros corpos.
Xavier não tinha opção senão caminhar dentro da roda. É um facto que poderia sair dela, mas mais nada faria. Assim, dentro da não opção, apercebeu-se por momentos que poderia ter opção. Então olhou bem para a sua roda, depois olhou para as suas pernas, idealizou o ritmo a que teria de andar; antes de retomar desamarrou alguns objectos inúteis das grades da sua roda. Sentiu-a mais leve e, pelo caminho, plantou algumas flores para poder contemplar a sua beleza e sentir o seu cheiro à medida que caminhava.
"Hamster Wheel", Nancy Settle

segunda-feira, maio 09, 2005

As Pedras e os Casacos
Quando nasceu, Alzira trazia já, acabadinha de ver os primeiros raios de luz, um pequeno casaco de Inverno. Um casaquinho com algumas cores, mas um pouco avantajado para a pequena bebé. Rapidamente cresceu e se ajustou na perfeição às suas vestes. Mas à medida que foi crescendo, também o casaco ía ficando maior, com mais cores, mais bordado em detalhes. O número de bolsos ía aumentando, bem como o seu conteúdo ía ficando mais pesado. Alzira tinha um corpo aparentemenre frágil, mas forte como nunca suspeitara. A certa altura, este casaco, cada vez mais cheio de pormenor, em vez de aquecer ou proteger o seu corpo, fazia suar. Tornara-se um fardo que Alzira tinha de carregar. As próprias cores, já desbotadas, conferiam-lhe um aspecto pouco atraente e cansado. Os bolsos íam enchendo, sempre cada vez mais. Tinha pedras dentro deles e todos os dias mais alguém lhe pedia que carregasse mais uma pequena pedra. Apenas mais uma pequena pedra. Alzira arrastava-se com o peso do casaco, cada vez mais pesado, cada vez mais monstruoso, quase impedindo a pobre rapariga de andar. Um casaco cheio. Um casaco cheio de nada que lhe toldava os movimentos e lhe encharcava os olhos, inundados das lágrimas que lhe ocultavam por completo o rosto.
Alzira rastejava e não sabia o que havia de fazer para impedir o seu próprio soterramento pelo peso que colocava em si mesma e que se deixava colocar pelos outros que, habituados a verem-na rastejar achando tal comportamento natural, continuavam a sobrecarregar os seus bolsos.
O casaco ameaçava rasgar-se. O corpo ameaçava sucumbir. Nesse dia, enquanto tomava banho nas próprias lágrimas, Alzira pensou seriamente em despir o casaco.
"Heaviness of Life", Nasrin Afrouz