domingo, setembro 03, 2006

Janela para Fora

O dia já ía longo, quando se sentou na velha cadeira de madeira junto à janela baixa. Sem se inclinar no parapeito ou sequer se chegar muito ao vidro, do lugar onde se sentava via apenas o azul do céu e também uma pequena parcela do topo da folhagem das árvores. A vidraça estava semi-aberta e por isso o som entrava como fazendo parte do corpo que, sem querer, ondulava ao som da quase-melodia. A mulher semi-cerrava os olhos e fingia não saber que som ouvia. Eram as folhas roçantes, um som de fundo indefinível, as vozes que se misturavam até não parecerem mais vozes. As que se aproximavam. As que se afastavam. Os choros e os cantos, os cantos e os choros. Juntos. Até não serem mais tristeza ou alegria. Rancor ou mágoa. Ou sequer arrependimento ou culpa. Não eram nenhum e, contudo, todos simultaneamente. Com os olhos semi-cerrados, tal como as cortinas das janelas dos desenhos das crianças, imaginava uma nova língua, inventava palavras, sons e entoações. Transformava o som metálico em instrumento musical. Gostava de compartimentar a realidade. Ou então misturá-la até se tornar indecifrável.
As pálpebras ficaram mais pesadas como se fossem puxadas pelo sol que insistia em descair na direcção do horizonte. E com eles, todo o corpo que vergava mais um pouco na direcção da janela. O sono vencia, as pálpebras desciam. Mas ainda a tempo de, com a inclinação, conseguir ver mais um pouco do outro lado da janela, e os homens que se afastavam com as enxadas nas mãos, depois de semearem mais um corpo. Lembra-se ainda de ver as mulheres de negro junto ao chão da terra revolta em esgar de dor. E a mulher à janela preferiu adormecer. Preferiu sonhar e amanhã continuar a imaginar, a inventar músicas indecifráveis da realidade que não o era. A mulher inventava, porque não compreendia. Não compreendia como se podia morrer como se nunca se tivesse vivido.


quinta-feira, agosto 24, 2006

Esquecimentos

Esqueci o sonho, o relâmpago, o trovão,
a chuva, o vento assobiante até mais não.

Esqueci o sol, o vento, os passos,
as lutas por dentro, as letras em laços.

Esqueci o prazer, a viola, a melodia,
e também o sempre eterno presente que se adia.

Numerosas noites adormeci sem pensar
que a Alma e o dentro poderiam perdurar.

Assim esqueci tudo aquilo que me rodeia
Fugindo, perspicaz, à complexidade de uma teia.

Esqueci hoje o dia, esqueci-me de olhar.

Esqueci de escrever, esqueci de respirar.

E assim, aflita, para que continuasse a viver
Foi preciso que chegasses e não me fizesses esquecer.

sábado, agosto 19, 2006

Pés"Floating Feet", M.Bannet


Olho para os pés... a curva acentuada, filha dos passos desnecessários que persistem na memória, torna-os curvos e esguios, conferindo-lhes um aspecto quase frágil. É aqui que persisto, que a luta contra a gravidade se torna a luta incessável dos dias que morrem em fila, ordenados. Olho os pés como quem olha uma escultura. A forma da carne, dada pela maneira como se veste nos ossos, parece esculpida por uma história de passos. Os que foram dados, e tantos que ficaram por dar. Contemplo. É quase como se o olhar pudesse quebrar tanta fragilidade... E no entanto é a fragilidade que segura e suporta, a fragilidade de um pilar. Gostarias de aparentar fragilidade e, ainda assim, ser pilar?...

quarta-feira, julho 26, 2006

Ritmos



Há quanto tempo não ouvia a música. E agora soltava-se por entre os cabelos e sentia as notas cravadas no coração aberto. Não o coração aberto metafórico, mas sim o coração aberto visceral. Com muito sangue e pausas de dor. Por isso é que as pausas têm tempo. Por se poderem transformar numa solidão interior, num eterno e ritmado dilacerar da carne rasgada.

Dantes a música ía e vinha... ía e vinha... Até que um dia foi, e o caminho enrolou-se atrás da última pegada. Agora não era um mero ondular, não era suave. A música chegava violentamente, atacando o corpo despido de qualquer defesa, que a cada nota, a cada som, a cada timbre, se entregava, sem se importar em saber qual seria o toque final. E o toque final não vinha. E o corpo quase terminava antes da música, em luta com o ritmo, em cópula com a vibração do som.

A música chegava agora de modo insuportável. Sobrepunha-se aos gritos mudos. Até que agarrou a cabeça com força, rodou sobre si mesmo em esgar de dor, e arrancou, finalmente as orelhas.

quinta-feira, abril 13, 2006

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"O Prazer da Síntese

Era uma vez um Imperador que gostava muito de borboletas. Um dia mandou chamar o pintor mais conhecido e admirado do Império e ordenou-lhe que pintasse uma borboleta. O pintor disse que para para a pintar necessitava de uma casa grande e confortável, que estivesse situada no lugar mais bonito do reino, alguns criados e um prazo de três anos. O Imperador concedeu os pedidos. Ao fim de três anos o Imperador mandou chamar o pintor ao palácio e quis saber se ele já tinha pintado a borboleta. O pintor pediu ao Imperador que lhe fossem concedidos mais três anos de prazo, os mesmos criados e a mesma casa. O Imperador voltou a conceder os pedidos.
Ao fim de três anos o pintor chegou novamente ao palácio e, em frente do Imperador, em alguns segundos, com traço firme e sem levantar o pincel, pintou uma borboleta, tão bonita que nunca o Império tinha visto outra igual. O Imperador, contente, mas surpreendido, perguntou ao pintor para que tinham servido os seis anos se ele fora capaz de pintar a borboleta em alguns segundos. O pintor respondeu que foram os seis anos de conforto e reflexão que tinham permitido a síntese, em alguns segundos, de uma multiplicidade de gestos.
[...]"

Alfredo Saramago, in Os Prazeres de Alfredo Saramago



G.Mertens

domingo, fevereiro 12, 2006

Das Portas Que Se Abrem

Já lhe tinham dito várias vezes que quando uma porta se fecha, outra mais adiante se abre (há também a versão da janela). Mesmo assim, era difícil manter-se quieto e em silêncio perante a enormidade, o peso e a solidão de uma porta fechada. Com muitas chaves. Sete, talvez. Também já alguém comentara, de passagem, enquanto continuava com o olhar fixo na madeira que não faz ricochete, que para encontrar uma nova porta aberta, havia que aceitar a solidez da porta fechada e andar um pouco mais à frente no corredor... Apesar dos conselhos sábios dos eternos buscadores de uma saída, o rapaz continuava olhando aquela entrada interdita. Uma coisa era certa - os seus olhos não eram olhos de quem via madeira. Não. Os seus olhos eram olhos de quem via lindas cores, fabulosas matizes, criadas pelas pinceladas da esperança mas também do medo. Com medo paralisara. E só esboçou alguns breves movimentos quando deu por si a esboçar largos riscos de tinta, com as cores do arco-íris, na pesada porta, que era de todas as cores, de muitos bateres de coração, mas que já não era de madeira.
"Closed Door", Jens43

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Fragmentos REM ...

... é assim o turbilhão da vida, aquele que alenta e consome...
... a respiração ofegante que se torna apneia...
... enredo-me no ciclone visível pelos olhos da alma... Sei que não poderei resistir.
Apneia... taquicardia... agitação a chegar ao limite... mais ainda...
... até ao súbito silêncio e novamente o negro da noite. Respiro fundo.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Branco sobre Branco

O corpo, curvo e sem pele, permanece sentado. Imerso na alvura que consome, no branco insistente. Talvez infinito. Ou ainda cheio de nada. O branco pode ser insistente. É assim a dor. Branca.
Os pés não têm asas, as que pediu outrora emprestadas há muito se foram, incrédulas, desiludidas e desrespeitantes.
O tempo consome o branco. E o branco consome o tempo. A dor é como o sempre tempo presente. Nunca passa, ao mesmo tempo que já passou.
Penso no que restará quando terminar o processo mútuofágico. O tempo pára quando se inventam palavras. Mas não o suficiente.
Passado o tempo infindável, o branco torna-se então cada vez menos branco, apesar da luz ser a mesma e o espaço ser identicamente o mesmo. A tonalidade escurece.
Talvez seja a figura curva e em carne viva, ensaguentada, que não é a mesma. As órbitas onde outrora moraram olhos, já não são as mesmas. Os sentidos não são os mesmos e então podem enfim captar uma superfície menos alva através da podridão interna que tolda os sentidos e os torna sempre mais turvos.
Por momentos há também o azul. E tudo se torna azul e frio. Até o branco se tornou azul.
O corpo sem pele é consumido pelo frio. Pelo branco. Pelo frio. Pelo branco. Pelo frio...



"Whiteness in Decay", Regina Frank




domingo, janeiro 08, 2006

Domingo(s)
A manhã era clara e lânguida. Clara e silenciosa, como só a manhã de Domingo. Salvo imprevistos acontecimentos, as manhãs de Domingo são sempre assim.
Amarela de sol, quieta e amena, apesar do frio de Janeiro. Como o gato espreguiçante que se oferece ao sol e com ele se deixa ficar num misto de ternura e de preguiça.
Era bom passar as mãos pelo cabelo, como se cada gesto não constituísse um antes ou um depois... Os ramos das árvores, pela janela, eram como dedos longos e curvilíneos de uma velha. Parados, mas significantes. Nada faria lembrar que o tempo existe na manhã de Domingo. Como se soubesse que nunca acabaria, que o tempo fosse perene e para sempre existisse continuamente o presente. Nao é preciso respirar fundo para se saber que se está vivo. As imagens entram pelos olhos como sonhos ainda por sonhar e as cores desvanecem-se e esbatem-se como num quadro impressionista. Assim se vive o sonho ao Domingo.
Só daqui a pouco, o tempo começará a correr...
Feliz Ano.
"Sunny Sunday", Zondag