quarta-feira, dezembro 31, 2003

Se fui, já estive ou estarei

Isso não é o que me assombra

mas todo o universo

que o meu presente desperta

Contudo, os céus sempre na celebração

desse ir e vir

E nas estrelas claras e reluzentes

Uma seta apontando

para fora do meu ego

É por isso que tenho que partir...

para o Novo...

o Eterno Novo...


Carmen Furukawa, 2003


Feliz 2004!

Mundo em Branco

Nada podiam ver, num manto de branco viviam.
Mas de todas as cores era o mundo,
agora que o rebento recém nascido tão bem os seus olhos viam.
Vivia do quente abraço
e do carinho que a enchia
e tudo o que podiam ter fazia-o ela num traço:
com lápis de cor os céus riscava
um coração vermelho pintava
e tudo o que o pequeno ser queria
hábil como artista, desenhava
e o desenho realidade se tornava.
Só porque, capricho ou desejo, assim o queria.

Tais desvarios não impediam o tempo de passar
E o petiz, na casa fechada, crescia.
Enfim voltou-se para a mãe: "Preciso de respirar.
Como é a luz do dia?"

Pergunta inocente, no coração de mãe doía,
parecia, sem dó, que tudo fora em vão e agora lhe fugia.
Apressou-se a rabiscar um quintal arejado,
onde seu filho pudesse brincar
e se sentisse mais folgado.

Cedo voltou a questão:
"Como é a cor do mar, a luz da lua ao anoitecer...
Gosto muito de ti, mãe, mas assim não posso viver."

Invadida de cólera tal,
apagou tudo o que tivera feito
O comentário fora fatal
Tudo parecia desfeito.
Em súbito momento rabiscou
e dentro de uma redoma o seu filho enclausurou.

Durante anos bem fechado à chave ficou,
muitas, infinitas lágrimas chorou.

Um dia, muito mais tarde,
apanhou a borracha a jeito,
apagou tudo a preceito,
um punhal desenhou,e foi sem dó
que da mãe dilacerou o peito.

Partiu para da memória fugir,
por dentro a rouquidão do mar a bramir.

Uma mulher encontrou,
À memória não escapou.
Com ela para sempre ficou:
Uma casa à beira-mar
janelas lindas, ela desenhou...
...mas sem porta, é de espantar...




"Dancing with Chains", Debbie New

terça-feira, dezembro 30, 2003

Perguntas sem Resposta (III)

Continuar a brincar com o tempo...
Se o futuro fosse o passado...?
O que já vivi desconheço, o que está para vir já o vivi outrora... em tom decrescente - a escala que vai do Dó ao Dó em sentido inverso... Quere-lo-ía assim?
O que é o futuro senão a projecção cíclica e inconsciente do passado?
Tomo consciência. E torno a repetir-me na mesma "pergunta sem resposta": quere-lo-ía assim?...


Tarefa difícil...

... a de suportar no outro a confiança ausente. A de colocar em causa para não se perder e fragmentar em pedaços. Como voltar a juntá-los? Como voltar a juntar-se, a perceber-se Um?...
Só assim explicável o prazer dorido de querer abalar um acreditar e uma esperança...

... a de escrever a dor. Há coisas que só podem ser escritas a sangue fresco.


Fragmentos REM (IV)

Queria festejar o seu aniversário. Todos os anos a mesmíssima situação se repetia. Estava cansada, não dava jeito, não encontrara o local ideal para o fazer. Remendos para colmatar fendas invisíveis, mas sensíveis ao tacto.
Este ano não havia desculpa. Iniciou, a medo, a tarefa que sabia, ainda que remotamente, inglória. Mais inglória se fracassasse e em que acreditar passaria a ser palavra desprovida de significado.
De facto, convidou todos os que representavam uma parte de si. Um a um. E um a um foram peças de puzzle despedaçado. Fazia anos na quadra natalícia - todos a confundiram com Jesus e celebraram apenas o Natal.


domingo, dezembro 28, 2003

A Janela Mal Fechada...

A janela mal fechada conduz-me a um quadro pintado a sol e nuvens, cores que incendeiam e arrefecem numa mistura sal e doce de calor ameno que se chega a mim neste entardecer... há um raio de sol que penetra, indiscreto na penumbra doce do quarto.

Vejo, então, um mundo ao contrário - o mar por cima, o céu por baixo. Chovem raios de sol e raiam gotas de chuva em arco-íris. Vejo o som. Cheiro o doce, o salgado também. Saboreio imagens impossíveis de ver com os olhos.

Perante tal imagem, estranhamente não me assusto. Solto uma pequena gargalhada de criança que tenho dificuldade em admitir. Suave, a brisa passa, sussurra-me o meu nome, brinca entrelaçando-se no cabelo que oscila em pequenos, breves e ondulantes movimentos. Fecho os olhos para melhor a ouvir sussurrar... essa melodia que vai preenchendo com a lentidão da tarde... esse sussurro, esse nada, porque não vejo... esse tudo, sem o ver... Tudo, para sempre, nem que seja por um instante, por um só momento. Efemeramente, para sempre... Um acreditar, uma vontade que faz com que assim seja. Nem que seja só para mim... e agora...
Sonho... e quero que seja sonho... e quero que hoje seja sonho... este momento, este minuto, este segundo.

Continuo a sentir, não quero abrir os olhos, não quero acordar, não quero parar de sonhar... ou talvez queira... e, nesta antítese, transformar este meu sonho, imaginação, fantasia, em plena realidade...

As diversas sensações fundem-se numa só imagem , persistente, sempre premente que, a medo, não quis deixar entrar em mim, e em que foi doce resistir... e me ir entregando. Que me procura e que eu procuro, em que me sacio, e que em mim se sacia... Mesmo que assim não permanecesse, fechava os olhos e sentia este mundo nos olhos, nos cabelos, nas mãos, dentro de mim... e fazia-o mais uma vez, e outra, e outra ainda... ávida de um pouco mais... sempre um pouco mais... de muito mais... Não sei se poderia, não podia...(ou podia?)... mas quando não pudésse, fecharia os olhos mais uma vez

Entrego-me então e, na mistura dos sentidos, fundo-me com o céu, com as nuvens, com os raios de sol que me tocam o rosto de mansinho... que suavemente me acariciam e me dizem que é doce aqui estar, nesta paz aparente e serena que não é senão um turbilhão de emoções que não se vêm e não existem, a não ser por mim... e para mim... que não deixo ninguém ver, porque cerro os olhos, espelho da alma, que é minha. Porque assim quero, porque assim deixo e quero deixar. Sem resistência me entrego, num espaço sem lugar e sem tempo... me entrego à luz, ao vento, à ilusão que é voar sem asas e sonhar sem dormir...

E, quando quiser voltar, é só fazer o pino. E ficar... ficar... e ficar...


"Dream Window", Georgena Bourgeault

sexta-feira, dezembro 26, 2003

Lágrimas...


Pele da Alma, fina, crescente, que envolve o corpo embuído em felicidade que ele descobre e faz falar com os olhos, humedecidos de Lágrimas, tão serenas, tão meigamente serenas, dificilmente reveladoras da sua nascente, quente, revolta, turbilhão de ideias, cores e formas, ar, terra, água e fogo que se fundem num elemento último... pureza, limpidez, matéria, mas sobretudo espírito... ameno e suave...

Lágrimas... rolam embaladas numa melodia fervilhante e dolente, adivinhando a medo a sua origem... mar que desliza sobre os contornos esbatidos de montanhas do rosto, conhecendo o seu destino, onde como que se espraia na areia...

Lágrimas... persistentes... sempre presentes.

Lágrimas... não sabe já se dele próprio, se dos que estão à sua volta... confusão premente de rostos e de vozes que se condensam num fervilhar intenso e incessante que incendeia e consome, paixão de alma, que brota, ansiosa de destinatário físico, presente aqui e agora, de abolição do longe e da distância, de criação e destruição de recordações e memórias, de futuros e de passados...

Lágrimas... sabia se que se as chorasse era como lançar uma onda sobre o mundo, não saberia como fazer sobreviver os que agarrados a si, impreterivelmente consigo permaneciam fundidos.

Lágrimas... aguentou-as até poder. Mas, o volume surgia-lhe como demasiado. Até que o pingo de água cortou, frio, o silêncio da noite.

Todos feneceram, sem ar, debaixo da água e do sal daquelas Lágrimas. Todos menos ele. E, quando lançou o olhar em redor, encontrou um espelho. Nesse espelho pode ver o encontro absurdo das gotas de água no seu rosto com os cantos da sua boca entreaberta. E aí nasceu um sorriso.


"Tear It Down", Jimmy Cuadra

quarta-feira, dezembro 24, 2003

Partilhar... (III)

...Esta Noite

Noite

Noite de folha em folha murmurada,
Branca de mil silêncios, negra de astros,
Com desertos de sombra e luar, dança
Imperceptível em gestos quietos.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Póética I


Desejo um Feliz Natal e uma noite muito bem passada para todos os que cá passam.


Starry Night, V. Van Gogh

domingo, dezembro 21, 2003

Perguntas sem Resposta (II)
Simples Será...?


Será que quando corro sei para onde vou?
Será que quando morro fico onde estou?

Será que o meu nome assim se eternizou...
Ou que cada bater do coração em si mesmo se esgotou?

Será doce ou amargo o ar que respiro...
Ou simplesmente se esvai num suave suspiro?

Será que o sol não se cansa de para sempre brilhar?
Não será toda a vida um eterno procurar?

Será que a vida é simples como a onda que brinca na areia...
Ou se entrelaça, difícil, na complexidade de uma teia?

Pergunto a mim mesma se para sempre assim vai ser...
E perco-me no momento, esperando a dúvida perecer.

Perante tamanha imensidão tudo parece incerto,
Mas a serenidade volta quando te percebo tão perto...

Quando o sol brilha, quando a noite cai,
Quando o vento sopra, quando o mar vem e vai...

Turbilhão de emoções, inconstante mudança,
quando em ti repouso, e o teu corpo no meu dança.

Será que o que sentimos é tudo isso e ainda mais...
Maior que o mundo inteiro e outros tantos que tais.


"Abstraction", Kay Damgaard

sexta-feira, dezembro 19, 2003

Ela...

...Diz que sente um peso agradável no peito que a entrega ao destino. Diz sem palavras, diz com o olhar. Vazia do que foi, cheia do que está para vir, entrega-se a um destino que afinal não precisa de controlar. Deixa-o passar como areia entre os dedos, como brisa por entre o cabelo.
Num instante parece acordar e querer agarrar o vento, prender a onda do mar... mas um entorpecimento apodera-se dela e torna doce o deixar fugir, não prender, não controlar. Suave deslizar que lentamente vai aprendendo... e a dor, e alegria subitamente não parecem tão intensas... Mas logo a sensação lhe dá mais prazer, como a memória de uma brisa, como o cheiro de um fruto, que não se desvanece e sempre volta à memória.
Quer saber o que está para vir, mas quando souber, vai querer saber mais...Assim, deixa-se ficar, deixa-se levar. Não sabe como. Se assim, se de outra maneira qualquer. E agora dorme... desvanece no conforto de saber que está ali, agora, que pode descansar, sem esperar por amanhã.


"Girl in the Window" (1925), S. Dali

quarta-feira, dezembro 17, 2003

Perguntas sem Resposta

E se amanhã fosse sempre hoje...?...
(ainda no rescaldo do post anterior)

terça-feira, dezembro 16, 2003

Fugindo por entre sombras...

Fugindo por entre sombras, encontramo-nos no meio de um nada que não procuramos ...
Braços que se estendem e entrecruzam à frente, aflitos, ocultam quase totalmente a visão, já de si turva. Tropeçar. Cair. Voltar a levantar. Todos os dias. Todos os momentos. Todas as horas.
Insistência neste ciclo semi-fechado, neste ritual quase masoquista, numa vida demasiado curta,... ou demasiado longa para ser esquecida. Somos assim ... descontentes, inconscientes, sonhadores ...
Sempre pensamento ... muito mais do que aquilo que seria necessário para viver... viajar sempre para além de nós próprios, por em perigo a (in)felicidade ... Nós, permanente antítese e paradoxo.
Cegos, numa procura persistente ... insistente ..., mesmo que mais não seja preciso procurar, inventando, por vezes, caminhos tortuosos que não existem ... um desencontro frente ao Outro, que não é senão um Eu, numa outra perspectiva. Frente à imagem reflectida, espelho do meu corpo, encontro em ti a minha alma, um caminho, liso, suavemente macio, rectilíneo ...
Agora ... aqui... vivo num presente sem passado pensado ou futuro reflectido. Sou por já ter sido, serei o que sou hoje ... mas, sobretudo, sou, para não ser um "eternamente fui", ou um longo e esperado (utópico?) "serei" ...
Presente... aqui, agora, faço-o, construo-o, minuto a minuto... segundo a segundo, a cada movimento (des)compassado do relógio. Tornando o meu presente, presente, passado e futuro, serei aqui, agora e sempre Eu ...Nós.
Amplio, assim, um aqui e um agora que são, para além de um aqui e um agora, mais do que nunca, um ontem e um amanhã. Somos o que fomos, seremos o que somos.


"Surprise", Magritte

domingo, dezembro 14, 2003

Partilhar... (II)

...uma história, um autor, uma atmosfera que vem ao meu encontro:

A Morte Melancólica do Rapaz-Ostra

Nas dunas, pediu-lhe casamento,
À  beira mar se casaram.

Na ilha de Capri celebraram
esse tão grande momento.

À ceia jantaram um prato sobejo:
uma bela caldeirada de peixe e marisco.
E, enquanto ele saboreava o petisco,
no seu coração ela pediu um desejo.

O seu desejo tornou-se realidade: teve um bebé.
Mas seria um ser humano?
Pois é,
na verdade,
tinha dez dedos nos pés e nas mãos,
tinha visão e circulação.
Podia ouvir, podia sentir,
mas seria normal?
Isso não.
Este nascimento aberrante, este cancro, esta praga
foi o princípio e o fim de toda uma saga.

Ela zangou-se com o doutor:
"Esta criança não é minha.
Cheira a maresia, a salmoura e a tainha."

"Olhe que tem sorte, ainda a semana passada
tratei de uma miúda com crista e rabo de pescada.
Se o seu filho é meio ostra
não me venha acusar.
... Já pensou por acaso
numa casinha à beira-mar?"

Sem saber que lhe chamar,
chamaram-lhe Alves,
ou, às vezes,
"aquela coisa da espécie dos bivalves."

Toda a gente se perguntava, mas ninguém sabia
quando é que da concha o Rapaz Ostra saía.
Quando os quatro gémeos Lopes um dia o foram ver,
chamaram-lhe uma ameijoa e desataram a correr.

Num dia azarado,
Alves ficou encharcado
À esquina da rua Miramar.
Cabisbaixo,
viu a chuva rodopiar
pela sarjeta abaixo.

Na auto-estrada, a sua mãe,
À beira de um esgotamento,
esmurrava o painel dos instrumentos -
não conseguia conter
a dor crescente,
a frustração
que a fazia sofrer.

"Olha, querido", disse ela,
"isto não é para ter piada,
mas eu já não pesco nada
e acho que é do nosso filho.
Não gosto de o dizer, pois sou a mulher que te ama,
mas tu culpas o nosso filho pelos teus problemas na cama."

Ele bem se esforçou, com todo o denodo;
tentou mezinhas e poções
e tintura de iodo
que lhe fazia comichões.
Coçou-se e esmifrou-se e esfregou-se e sangrou.

Até que o médico diagnosticou:
"Eu não sei de ciência,
mas a cura do seu problema pode ser o que o causou.
Dizem que comer ostras aumenta a potência:
talvez se comer a criança
fique cheio de pujança."

Ele foi pela calada,
estava escuro como breu.
Tinha a testa suada
e nos lábios - uma mentira ensaiada:
"Filho, és feliz? Não me quero intrometer,
mas nunca sonhas com o Céu?
Nunca quiseste morrer?"

Alves pestanejou duas vezes
mas não ripostou.
O pai tacteou o punhal
e a sua gravata aliviou.

Pegando no filho ao colo,
Alves pingou-lhe a lapela.
Levando a concha aos lábios,
despejou-o pela goela.

Depressa o enterraram na areia junto ao mar
- uma prece rezaram, uma lágrima derramaram -
e para casa voltaram à hora do jantar.

A campa do Rapaz Ostra foi marcada com uma cruz.
Palavras escritas na areia
prometiam a salvação de Jesus.

Mas a sua memória perdeu-se numa onde de maré cheia.

De volta à paz do lar, ele beijou-a a arfar:
"Que tal uma rapidinha?"

"Mas desta vez", sussurrou ela, "quero uma rapariguinha."


Tim Burton, "A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias"

sábado, dezembro 13, 2003

Fragmentos REM (III)

Se é possível pensar no sonho como uma realidade paralela ou alternativa em que a vida também vai passando e sendo vivida, o que dizer do sonho dentro do sonho...?

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Viver à superfície

O esforço de respirar fora d'água, pode não ser esforço sequer.
Ignorância, ingenuidade, leveza e preocupação inexistente.
O mergulho dói, quando nada pode ser feito para impedir a carne de abrir. Abre em vermelho sangue, contamina a superfície. Sono encantado que conduz além do que dói...além do que se pode, do que se podia em eterno perene tempo, que fica e não avança. Não corre, não percorre. Tempo suficiente para contemplação do sofrimento. Momento que não passa... impaciência. Impaciência. Impaciência demais.
Devagar, é o retorno à superfície. O vermelho deixa de turvar a vista que se alarga em branco azul. Fiapos, réstias rosadas ficam, apenas o que serve para viver à superfície. Leve de cetim.
Cedo o mergulho voltará, quando o manto da noite estender os seus braços em envolvência aveludada.

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Hoje...

Essência ou mutação?... O tempo corre, mas fica. Leve e sem o ritmo compassado dos dias vulgares.
Dia de beleza e serenidade. Quase eternidade.


terça-feira, dezembro 09, 2003

A Noite depois do Dia

Vivia em viagem, numa fuga quase impossível. Já não se lembrava desde quando, mas parecia-lhe que nunca vivera de noite e que para si tivera sido sempre dia, desde que se conhecia. Adorava o sol e os seus raios, ora doces, ora mais intensos, que lhe bronzeavam a pele dourada.
Não sabia o que era a noite. Não queria saber. Fugia dela com todas as suas forças. O porquê nem se permitia reflectir sobre tal questão.
E assim vivia este homem, em permanente viagem, de país em país, caminhando sempre para Este, onde o sol nunca dormia. Onde a temperatura nunca descia. Onde não podia nunca ficar sozinho. Onde não tinha de dormir e ficar abandonado a si próprio, mergulhado no silêncio de não se poder ouvir sequer a si próprio.
Dia após dia. Dia após dia. Dia após dia...
Após muito vaguear, depois de várias voltas ao mundo, começava a ficar cansado, mas a força vinha de algo muito mais forte que ele, quase visceral.
Até ao dia em que a encontrou a ela, pálida como a Lua, carente de luz própria. Era ela. A mulher que o fascinava era ironicamente a mulher que fugia do dia. Fugia do dia como um vampiro. Escondia-se sob o manto aveludado da noite, salpicado de pequenas efervescentes, frias (mas quentes) estrelas. O porquê não queria pensar, era-lhe demasiado doloroso. E assim caminhava para Oeste, onde o sol nunca se levantava e a lua era companheira de viagem. Companheira do seu lado mais oculto e secreto.
Foi nesta viagem que ambos se encontraram e caíram um pelo outro. Estavam cansados de continuar, não queriam separar-se, como se já se pertencessem desde sempre, mesmo sem o saber.
Durante algum tempo viveram na transição do dia para a noite, da noite para o dia. Ele chamava-lhe aurora... ela chamava-lhe crepúsculo.
Um dia, munidos de coragem, resolveram perguntar um ao outro, questionar-se acerca das razões das suas fugas. Ele respondeu-lhe que a noite era fria e o deixava terrivelmente só; ela disse-lhe que na noite se escondia pois não saberia como se revelar à luz do dia.
Cansados de viver na luz crepuscular arriscaram finalmente. Ela mostrou-lhe como a noite podia ser quente e não solitária; e ele mostrou-lhe como podia ser ela própria sem esconderijos.



domingo, dezembro 07, 2003

Partilhar...

... um poema e um autor de que gosto:

"Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

..........................................................
..........................................................

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém..."


Quasi, Mário de Sá-Carneiro
Paris 1913 - Maio 13


Wings, Angels against addiction

sábado, dezembro 06, 2003

"São rosas..."

A vida corria, plácida como lagoa ao luar. Uma vida normal para um homem normal... Trabalhava durante a semana, passava os fins de semana fora com a mulher e filhos numa qualquer casa de campo.
Sempre saudável, era invejado pelos amigos, que frequentemente lhe gabavam as "cores". Nem uma constipaçãozita para o por de cama.
Até ao dia em que lhe foi diagnosticada uma doença mortal. "Prolongada", segundo alguns. "Crónica", diziam outros. Mas ninguém dizia o seu nome. Como se se tornasse menos mortal por isso. O tempo que restava era pouco, nunca é muito nestas situações. E iria sofrer, iria sofrer terrivelmente, diziam os entendidos.
Passado pesado espaço de introspecção, deu conta de um pequeno relevo por debaixo da camisa. Não... não estava ali antes. Devagar, abriu, botão a botão... e para seu espanto, um outro botão crescia do seu umbigo. Mas este era de rosa. Uma vistosa rosa desabrochou lentamente.
Não muito tempo passou para que de outras partes do seu corpo nascessem lindas flores vermelhas. Em vez de sofrer brotavam rosas, as suas dores eram flores que embelezavam o seu corpo, já de si quase coberto por pétalas cor escarlate.
Em vez de dor, em vez de lágrimas, um suave e doce perfume exalava destas pétalas sobre o corpo deste homem que sorria e fazia sorrir.
E foi assim com o passar do tempo. No dia em que morreu, todo ele era um jardim.


"Meditative Rose", Dali

quinta-feira, dezembro 04, 2003

Transformação

"... O espírito amadurece lenta e silenciosamente para a sua nova forma, desintegra fragmento por fragmento o edifício do seu mundo anterior. O desabamento deste mundo é indicado apenas por sentimentos esporádicos; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido, são os sinais anunciadores de alguma coisa diferente que está em marcha."
Hegel, "La Phenomenologie de L'Esprit"


"Transformation", Robert Pasternak

quarta-feira, dezembro 03, 2003

Numa perspectiva diferente

Foi numa perspectiva diferente... mas eu continuava a sentir-te... junto de mim, afagando a minha alma que doía, ... doía mais do que tivera sido concebida para suportar ... Doía em mim, o que já não doía em ti... O teu corpo inerte sobre os lençóis brancos era uma visão estranha, aterrorizadora, sufocante, mas simultaneamente tranquilizante. Os olhos cerrados, a respiração inexistente, os braços estendidos ao longo de um corpo que já não te pertence ... Chorei, gritei, não pude aceitar o inevitável.
Entrei de mansinho e lancei um olhar demorado ao que tiveras sido, aquele corpo sofrido... parecias adormecido ... serena e tranquilamente adormecido, dormindo o sono de uma criança que ainda não sabe o que é o Mundo... As lágrimas pararam de escorrer pelo rosto, aproximei-me devagar e silenciosamente até chegar a ti. Procurei um teu olhar que já não existia... segurei a tua mão: estava fria... tão fria... a mão que outrora aquecera a minha, que me protegera e que tantas vezes deslizou pelo meu cabelo para me confortar, não mais deslizará, não mais a sentirei em mim... nunca mais.
Doeu... doeu muito. Esse instante doeu como nunca tivera doído antes ... punhal cravado e dilacerante, atingindo um limite que assustadoramente era ultrapassado e desaparecia, como se não tivesse importância, como se a dor que me matava aos poucos brincasse comigo, testando todo o seu poder, pondo à prova toda a minha capacidade de me encontrar, de te encontrar, de não resistir, de ceder e partir junto contigo.
Os olhos deixaram, então, brotar lágrimas em fio, um rio com nascente e sem lugar para desaguar ... expressão insuficiente da falta súbita que me fazes, do vazio repentino que passava agora a existir.
Subitamente, chamo-te, balbuciando algo imperceptível... não respondes... ouves-me? Não me ouves. Responde, por favor... Mas não... os teus ouvidos continuam surdos, a tua boca muda, os teus olhos permanecem cegos, sem saber como naquele momento precisaria do teu olhar. Do teu olhar, da tua voz, do teu calor, da tua sempre presença meiga e calma, mesmo quando sofreste... quando não me dizias que sofrias só para não me fazer sofrer. Não quero ficar sem ti, quero esconder-me, ir contigo, trazer-te de volta de onde não podes voltar mais, dizer-te tudo o que não disse, dar-te mais um abraço, mais um beijo... nem que fosse... um "adeus". Foste-te embora sem avisar, sem perguntares se podias, sem te despedires... Onde estás? - oiço gritos lancinantes dentro de mim que insistem em me mergulhar cada vez mais numa espécie de túnel negro sem saída e sem caminho de volta, não me deixam ver-te, tocar-te, sentir-te mais uma vez, que me afastam de ti, que me sufocam. Está tudo turvo... escuro... demasiado... Não sei... procuro-te, mais uma vez... persistentemente... ansiosamente... mas não te vejo... por mais desesperadamente. A escuridão envolve-me como se um manto de veludo negro me levasse.
Mas... agora... sim... sinto-te. Gradualmente, sinto-te em mim. Olhando mais uma vez para o teu corpo, apercebo-me, num repente, que já ali não estás, a tua alma não anima mais o teu corpo... e este torna-se meramente matéria... Mas..., sinto-te em mim, à minha volta, nos meus olhos, nas minha mãos. Foges-me e soltas pequenas gargalhadas de criança. A tua essência, a tua alma, sorri para mim ... agora sem sinal de sofrimento, sem lágrimas, sem aquele olhar triste e sofrido de há tanto tempo e agora, sim, sei que onde quer que estejas, sei que estás bem, que estás comigo, e que eu estarei sempre contigo. Vejo-te como sempre foste, como sempre serás para mim, como te guardarei para sempre dentro de mim. Como para sempre te amarei... para sempre... Numa outra perspectiva, ... mas sabes que para sempre.




segunda-feira, dezembro 01, 2003

Chamava-lhe amor

Existe um dado biológico segundo o qual quanto mais diferente geneticamente for o homem da mulher, maior a probabilidade do filho de ambos ser também diferente, gerando uma maior solidez da placenta que impede que as células maternas invadam o espaço do bebé e provoquem o aborto.
E assim me recordo da história desta mulher, e das células que atravessaram a placenta. A história desta mulher, Moria de nome, em redor da qual o mundo girava. Tinha tudo, mas não tinha nada. De tanto ter, nunca estava satisfeita. Se a sua vida fosse uma manta, teria um grande buraco no centro. Por onde tudo caía, por onde tudo resvalava. Onde nada ficava. E assim a sua vida passava-se, sedenta de algo que a preenchesse, ávida de sempre mais alguma coisa que, por muito que fosse, nunca era suficiente.
Levava uma vida triste e dolente, sem ligar ao lesto tempo que corria, passando por ela, deixando-a para trás, sem que com isso se importasse. E pedia mais, e mais... e mais. Sempre mais. Sempre de menos.

Insatisfeita Moria, chegou o dia em que um raio de sol lhe bateu à porta. Soubera nessa mesma manhã que um novo ser crescia dentro dela. Sentia-se finalmente preenchida, havia algo por que viver. Riu, dançou, pulou, até ficar exausta. No final, deitou-se nas almofadas espalhadas pelo soalho, acariciando o seu ventre, raíz de vida.

Dentro dela algo de diferente se passava. Sensação de bem estar e conforto. Era como nadar, seguro e morno, dentro da barriga da mãe. Harmonia e perfeição.

Cedo a contínua insatisfação de Moria se fez sentir, e a sensação de preenchimento se esfumara. e era aquele novo ser que gerava dentro dela o culpado. De facto, irada, sentia que não era suficientemente bom, suficientemente grande para que se sentisse bem. Sentia-se castigada pelos pontapés do bebé em crescimento. Agredida mesmo. os pensamentos sucediam-se. Tudo faria para voltar a ter aquela sensação de harmonia. E uma longa sequência de tentativas para alimentar um saco sem fundo, se sucedeu.

Por esta altura, sentimentos ambivalentes tomavam conta deste bebé. Sentindo-se bem no conforto do útero, tinha por outro lado súbitas necessidades de se separar, de ser diferente. Queria nascer.

No entanto, Moria não queria que ele nascesse, queria que permanecesse para sempre dentro dela. Não podia agora ser confrontada com o seu imenso buraco narcísico. Dizia em voz alta às pessoas que aquele filho seria para sempre devoto à sua mãe, poria as necessidades à frente das suas próprias. Seria como ela, pensaria como ela. Sob pena de não ter o seu amor. Chamava-lhe amor.

Dentro da barriga havia uma estranha sensação de peso. O peso de toda uma vida, sem sequer a ter vivido. O peso das culpas que não eram suas. O peso da responsabilidade e do medo que sentia sem saber porquê. O peso das lágrimas que sobre o ventre vivo desmaiavam.
Um dia apercebeu-se de uma pressão sobre a placenta. Contrato por assinar que invadia o seu espaço. Que sem querer assinava com o próprio sangue. O sangue derramado de promessas que nunca fizera e o compremetiam para sempre. Não mais aguentava. O espaço era demasiado pequeno, não conseguia mexer-se, sufocava. Sofria. Doía.

Apercebendo-se da perturbação iminente de Moria, as pessoas à volta tentaram trazê-la à Razão. Ela mais se isolou, fugiu de quem queria à força expô-la às suas maiores fragilidades. Não aguentava ver as suas fraquezas expostas depois de tanto ter dado, de tão bem ter alimentado aquele pedaço de carne e que já mal tapava o poço que era a sua vida... Chamava-lhe amor.

Em último desespero, deitou-se na cama, enrolou-se em posição fetal, ela própria desejava voltar ao útero materno. Voltar. Dormir. Ou rasgá-lo.
Chorando, pensava que aquela criança teria de fazer como ela, pensar como ela, viver como ela. Senão... não poderia existir. Nem ela nem a criança. Chamava-lhe amor...

O bebé sufocava, fazendo força para sair.
Não podia sair. Moria gritava, enfurecida, cega por aquilo a que chamava amor. Aquele bebé não podia nascer, não poderia ser igual a ela, como diziam as pessoas.

De súbito, o olhar marejado de lágrimas, a fúria no seu olhar enraivecido, o rosto da loucura. Curvada sobre a própria barriga, sobre o seu ventre de morte, cambaleou até à cozinha. Abriu a gaveta, de onde tirou, triunfante e dolorosamente uma faca.

Um sentimento de alívio invadiu aquele bebé, que viu finalmente as células da mãe invadirem a placenta, num movimento fatal.
Com um grito lancinante, Moria cravara, lenta e dolorosamente, a lâmina no ventre que se abria, dilacerado sobre o chão branco da cozinha.

sexta-feira, novembro 28, 2003

Escondida incontida

Há uma raiva incontida na quietude da noite...
o manto negro que esconde e não revela.
Há uma estrela que arde... e queima, parecendo bela.
Fogosamente incendiada, mostra o brilho que ainda é,
que alcanço com o olhar, e que escapa por já não ser.
Olhos banhados que desaguam nos cantos dos lábios
por algo que parece ser agora,
mas que no entanto já foi, outrora...
Sob o manto da fictícia beleza,
a carne abre-se, transbordante de vermelho sangue,
rara subtileza.
Vem o dia... e a raiva vai-se
Mascarada de riso, por ora.
Mais não espera, desespera, chora...
Chegará com a noite, sem mais demora.

quinta-feira, novembro 27, 2003

Ao Espelho

Indignada, afirmo com força que "Faço tudo por ti, corro por ti, ando por ti... Choro por ti, rio por ti, sinto por ti. Amo por ti, vivo por ti. Morro por ti..."
Perscrutas-me com o olhar. Experimento uma pausa de infindável e expectante silêncio.
Olhas-me e com uma calma assustadora, perguntas-me lentamente, palavra a palavra, letra por letra:
"E por ti? O que fazes por ti?"
Não compreendo as tuas palavras (ou finjo), não quero compreender. Grito. Esperneio. Esbracejo. Zango-me. Barafusto em desespero.
Não tanto por pensar que não soubeste receber o que te dava, mas sim por me fazeres não esquecer de me lembrar de mim.



"Espelho", óleo s/tela Adriana Guimarães

terça-feira, novembro 25, 2003

Parabéns...

Para ti, Wong ( Mel de Lama ) pelos teus 12+11!



Fragmentos REM(II)

Estou numa Igreja, prestes a assitir a um casamento. De facto, a dois - antes da cerimónia para que fui convidada, teria lugar um outro casamento. Para dizer a verdade não sei de quem é o casamento para que fui convidada. Há várias pessoas de diversas famílias, sem aparente coerência entre si.
Decido esperar e ver o que vai acontecer.
O primeiro casal dá entrada. Fico surpreendida - o noivo tem vestido um fato da tropa, com padrão de camuflagem... e a noiva, essa sim, tem um casaco apertado até à cintura, de cor caqui e preta, deixando tudo o resto a nú, à excepção de uma pequena tanga, também ela caqui... O casal chega ao altar, e mais uma vez me surpreendo ao constatar que o padre é uma mulher. Não muito nova, cabelo pelos ombros, cinzento, óculos apoiados a meio do nariz.
Sinto-me bem com esta inovação em que o padre é uma mulher, mas não deixo de me sentir incomodada com as vestes do casal, principalmente a nudez da rapariga. Apesar de me considerar minimamente liberal em muitas das minhas ideias, aquilo parecia-me um pouco demais, mas o que mais me assustava era parecer ser eu a única a reparar.
Ouve-se um discurso sobre filhos, o casal entra em diálogo com o padre, discute mesmo, acho que falam de filhos e que não se importam que sejam criados por outras pessoas... o noivo refere: "Por mim, até podia ser criado pela porquinha!" Se agora esta frase não me faz qualquer sentido, na altura parece ter tido um impacto considerável visto ter sentido que ía contra as minhas ideias.
Então, para finalizar esta sequência de fantástica bizarria a mulher padre chama-me ao altar e pede-me que interceda junto daquele casal, que discurse. Todos parecem ficar redobradamente atentos para me ouvir, é como se eu representasse a voz da Razão. Acho estranho e a início comento que não entendo bem o que esperam de mim...
Após um momento de burburinho, inicio então um discurso inflamado. Dirijo-me aos noivos. Primeiro comento as suas vestes, embora explicando que era algo a que não estava habituada, respeitava a decisão deles. Depois falei-lhes sobre os filhos, elogiei a maneira de verem a vida, mas finalmente critiquei a entrega da educação dos filhos a outrém - "Nem à porquinha!" - finalizei.
E, em manifesto e pleno reconhecimento das minhas sábias palavras, um aplauso sentido ecoou pela Igreja.

Ele há coisas do Inconsciente...

domingo, novembro 23, 2003

Encontro

Alguém me chama. Transformo-me em expressão de emoção que não decifro... Encontro-me, contra todas as minhas expectativas, defronte do meu Eu de criança. Parada no tempo, os cabelos escuros e longos, rebeldes sobre os ombros, desaguantes nas costas... os olhos do tamanho do Mundo olham-me com curiosidade, ansiedade, admiração mesmo.
Ela chega-se, a medo, junto de mim... um mundo cheio de esperanças, o peito cheio de lágrimas. Emoção transbordante de quem quer tudo e não quer nada no mesmo momento que não passa, e que corre sem se dar conta. Aquele mesmo cheiro doce a gomas e pastilha elástica.
"Os meus sonhos, os meus planos... conseguiste resolver tudo o que querias resolver? Estás bem, agora? Vale a pena? Estás feliz?" - corrente indagadora de ansiedade, corpo frágil de menina, sedento de segurança e conforto. Procuro-o em mim, não sei bem onde está, onde está o meu Eu de quarenta anos para encontrar aí a segurança que imaginei ter nesta altura, há muito tempo atrás?...
Quero responder... Necessidade premente de sossegar a criança dentro de mim. Fiz tudo e não fiz nada... feliz e tão infeliz... olho ao espelho este meu sorriso de lágrimas.
Olho-a. Pouso a minha Alma na sua. Abraço com o olhar.
Há perguntas que ainda não têm resposta.

sexta-feira, novembro 21, 2003

Curiosidade


Anuncio publicado no
Jornal "Novo Tempo" de
10 de Outubro de 1889 e
reproduzido no Semanário de
31 de Janeiro de 1997.

quinta-feira, novembro 20, 2003

Manhã

Manhã embriagada das imagens nocturnas. Despertar com uma imagem que perdura na memória:
Numa floresta verde há no centro um lago num tanque que mal se diferencia do que o envolve. As paredes exteriores são de azulejo tosco, antigo... Em cada canto há um pilar, e outros tantos ao longo dessas paredes, deixando subir trepadeiras até formarem um tecto de folhas e ramos que se abraçam. Em redor, paira uma imensidão de campaínhas brancas, deixando no ar um odor adocicado suave, inebriante.
A riqueza das cores, as matizes de verde, laranja ferrugem, amarelado e mesmo vermelho deixam-me zonza... e reflectem na água perene e intacta uma nova manta de retalhos de natureza. Acordo ainda sorrindo. Serenidade...

terça-feira, novembro 18, 2003

Fragmentos REM

Uma festa enorme num local desconhecido. Era preciso ir para a mesa, a refeição estava próxima, e o meu nome era chamado obsessivamente. Mas primeiro tinha de encontrar as essências e as velas. Fui ao quarto, várias pessoas se espalhavam, um monstro enrolado numa manta em cima da cama. Não se mexia. Ignorei-o, e continuei na minha busca.
Aparece Catarina, uma "amiga" de infância que me fazia a vida negra na escola. Traz uma mini-saia mínima. Está mais gorda e apercebo-me da celulite nas suas coxas.
Apercebo-me que é o dia do meu aniversário. Resolvo refugiar-me na casa de banho e oiço excertos de conversas. Catarina conta que está assim, gorda, pois começou a tomar uma pílula não receitada pela médica e só toma quando lhe apetece. Chovem conselhos para não o fazer...
Volto a entrar no quarto, cumprimentando-a vagamente. Encontro finalmente o que procurava.
Com as velas na mão volto novamente à sala. Parece diferente, maior, mais barulhenta. Há mais gente, a maior parte não conheço e pergunto-me o que fazem lá. A sala parece uma adega, há vinho nos copos.
Em cima da mesa de pedra, está um pequeno búzio pintado de dourado.
Segue-se uma algazarra. Alguém vem ter comigo e com o amigo ao meu lado e diz-nos que temos de matar duas pessoas que estão na festa. Não percebo, a confusão é muita, somos empurrados até ao lado direito da sala. Na verdade, um homem e uma mulher estão já lá, em pé, com as mãos amarradas. Atiram uma caçadeira a cada um de nós, o meu amigo tem de matar o homem, eu a mulher. Não percebo porque tenho de o fazer, mas dizem-me que fez algo de imperdoável. Estranhamente o meu amigo acede prontamente e dispara um tiro na cabeça, esfacelando a face ao pobre homem. Era agora a minha vez. Não o queria fazer, a mulher exibia o rosto de sofrimento e um outro homem, que já não era o mesmo, implorava-me pela vida desta senhora.
Sou cada vez mais impelida a disparar um tiro na cabeça da mulher, era o mais certo, dizia-me o meu amigo. Num último esforço, aponto à cabeça e disparo o fatídico tiro. Missão cumprida.
Os momentos seguintes decorreram como se nada se tivesse passado.
Já junto à mesa de pedra, algumas pessoas ofereceram-se para nos levar no nosso caminho de volta, uma delas olha para mim com um aspecto suspeito, para a minha camisa. Olho e em vez de um dos botões que a abotoava, estava o pequeno búzio dourado. Senti-me estranha e suspeita, como tinha o búzio sido cosido à camisa sem eu perceber?...
No caminho de volta, passámos por prados e montanhas verdes. Seguíamos como que planando. Ouvia-se uma cantilena acerca do "Paraíso" e de "paz para sempre". Ao chegar a um precipício, os nossos acompanhantes apontam-nos as caçadeiras. Temos de morrer. Desesperada, quero saber porquê, nada fizéramos. Era a nossa vez de morrer, tínhamos bebido daquele vinho, era a justificação. Sem perceber, contorço-me de desespero em frente às armas. Uma longa espera sádica até o tiro atingir certeiro a cabeça do meu amigo, que logo se silenciou. A dor era imensa, um peso no peito deixava-me descomposta no chão, as lágrimas rolavam pela minha face, aquela arma apontada era o terror em pessoa.
O desespero foi inútil. O vermelho do sangue espalhou-se sobre o verde das colinas.

domingo, novembro 16, 2003

Ar em movimento

O vento sopra, arrasta, engole, consome... rodopia e brinca...
Leva tudo, de dentro e de fora... leva também o que não era suposto levar.

quinta-feira, novembro 13, 2003

Atemporal ou A Mulher que Corria Atrás do Tempo

Em vez de viver as horas, corria atrás delas. O ponteiro, esse, sempre um passo à frente. Por muito esforçadamente, por muito desesperadamente. Era preciso cuidado para não se distrair para não o perder de vista e correr o risco de não poder jamais ultrapassá-lo.

No início, o tempo era algo imenso, um ano era muito tempo, o Natal vinha lá de quando em quando, assim como o dia do aniversário, sempre tão esperado. A árvore de Natal era enorme... nela cabiam todos os sonhos e todas as fantasias.

Cedo começou a sentir um medo inexplicável de que um dia acordasse e não restasse ninguém... e todas as noites se despedia obsessivamente da mãe, dizendo-lhe que não queria que morresse, vivendo nessa esperança de que um dia, de facto, ninguém morresse e a vida fosse eterna. Achava mesmo que se pedisse muito um dia conseguiria que tal acontecesse e mais nenhum mal viria ao mundo...

Com o tempo - esse monstro que não parava de avançar - este medo foi assumindo diferentes formas e sendo alastrado a todos os domínios da sua vida. Já não vivia. Esperava. A sua vida resumia-se a um mero esperar. Da hora da morte. Esse monstro inevitável que via no final da recta que era a sua vida, devastador, por ela aguardando, cada vez mais perto, compassadamente, ao ritmo do relógio. Implacável.

A início começou por tentar ignorar aquela terrível visão que se apoderava dela o tempo inteiro, a toda a hora, sem descanso. Os dias tornaram-se negros e não demorou muito até que esta angústia dominasse também as suas noites. Imaginava um espaço perene, sem tempo, permanente, em que tudo existisse num só momento, um tempo sem passado, presente ou futuro. Uma simultaneidade de acontecimentos, em que a ideia de ordem cronológica seria inexistente.

Mas cedo desistiu, a angústia impunha-se com cada vez mais força. Partiu as ampulhetas, livrou-se de todos os relógios que tinha em casa, apostou com o próprio tempo que seria mais rápida do que ele. Achou que se corresse mais rapidamente do que a própria vida conseguira, enfim, alcançar a dimensão para além do tempo, dimensão atemporal, atingiria a tão esperada e desejada Eternidade.
Perdia-se frequentemente em pensamentos. Pensava que ainda há pouco ontem era hoje. Brevemente hoje iria ser ontem. Tinha que aproveitar. Apanhar o hoje antes que se tornasse ontem. Fazê-lo ficar o máximo tempo possível.
A aflição era desmedida quando iniciava novo rol de pensamentos em que tentava descobrir qual seria a melhor maneira de aproveitar o hoje e impedir que se tornasse ontem sem antes lhe ter dado significado. Nunca conseguia decidir, e afinal o tempo continuava a passar nesta angústia dilacerada da decisão que nunca chegava.

Assim os anos se tornaram meses, os meses semanas, as semanas dias e estes, rapidamente pareceram minutos. Tão escassos. Sempre tão escassos para tudo o que desejava fazer. Mesmo quando imaginava que tivera decidido, depressa caía noutro ciclo vicioso - se escolhesse fazer determinada coisa, não poderia fazer a outra. O tempo surgia sempre como uma limitação destruidoramente implacável. Deixar de fazer alguma coisa era algo que não poderia acontecer, pois nada poderia ficar por fazer. No entanto, à força de nada decidir com medo de perder, tudo ficava mesmo por fazer...

O tempo parecia cavalo a galope. Convenceu-se que depressa morreria, vítima de doença mortal, acidente, qualquer acaso que a levasse... e vivia preparada e com medo, a todas as horas, de que esse momento chegasse. Cada dia que passava, doía terminar. Dia após dia, a noite era uma pequena morte. Por várias vezes pensou em terminar voluntariamente aquela tormenta de não poder controlar a hora do seu trágico e inevitável fim... mas depois pensava em tudo o que ficaria por fazer. Nova corrida se iniciava.

E voltava a apressar o passo, agarrada ao ponteiro grande do relógio, balançava em esforço, projectando-se para a frente. Por vezes agarrava as horas, outras vezes os minutos e até mesmo os segundos. Só não percebeu que a força que fazia, o esforço que dispendia, o peso do seu corpo pendurado, faziam com que o tempo avançasse bem mais depressa. E as mãos, já feridas, escorregavam ao longo ds ponteiros do relógio. Era como querer segurar o luar em noite sem nuvens.

Mais tarde, muito mais tarde... morreu de facto. Morte natural. Contava já mais de cem anos. Tanto tempo, onde tanta coisa caberia... No entanto, enquanto exalava o último suspiro, sentiu que tinha vivido tão pouco. Estranha a sensação de ter passado ao lado de qualquer coisa.
Tanto para fazer.
E, no entanto, nada feito.
Voltando ao pó da terra. Agora areia de ampulheta.

terça-feira, novembro 11, 2003

Destino?

Fica um momento de reflexão:

"Esta vida tal como a vives actualmente e tal como a viveste terás que vivê-la uma vez mais e inúmeras vezes mais, nela nada haverá de novo; pelo contrário cada dor, cada prazer, cada pensamento e cada gemido e tudo o que há de indizivelmente pequeno e grande na tua vida deverá ter que voltar outra vez na mesma ordem e na mesma sucessão (...)
A eterna clepsidra da vida inverte-se sem cessar e a ti - grão de poeira da poeira - também acontecerá como acontece com ela."
(Nietzsche)

Destino ou livre arbítrio? Condenação a viver numa circularidade viciosa e assustadora... ou capacidade e poder de promover a mudança, transformar, melhorar, nesse eterno retorno ao ponto de partida?
Ou trata-se, antes, de uma referência propensão à repetição de um mesmo padrão, incessantemente, ao longo da vida?
Se pudermos mudar, vamos mesmo querer fazê-lo?
E se nada pudermos mudar? Se cada dor, cada prazer voltar "na mesma ordem e na mesma sucessão"?

Quereríamos voltar a viver uma vez mais esta vida que amamos e odiamos?

Espaço e tempo de silêncio. Abertura ao pensamento.

segunda-feira, novembro 10, 2003

Alvorada

Tenho os cabelos ondulados de chuva e um pouco crespos do vento.
Os olhos semicerrados de constantemente se encontrarem numa superfície próxima.
A escuridão... agora que não há luz.
Tudo é branco (ou tudo é negro...), agora que não vejo a cor.
Em redor é noite,
Agora que o dia se foi, e o sol se parece ter posto
Há muitas horas,
Muitos dias,
Muito tempo...


Surge agora o pequeno mundo do imediato
Ou o grande mundo do pensamento.

As nuvens choram
Agora que o suave e rebelde raio de sol não acaricia o corpo...
Ameno e Doce.
Vazio de sensações, que não se sente tocar...

Alvorada que não amanheceu
A noite que não escureceu
A estrela que nunca brilhou

Sou o sol que jamais raiou.

sexta-feira, novembro 07, 2003

Uma

O casal vivia numa pequena aldeia isolada do mundo, numa casa de madeira, frente à praia. O filho tão esperado da família Torres finalmente chegara. E não era um filho, era uma filha... ou melhor, duas! Ao início não se percebia bem, mas num último folego a mãe dava à luz dois bebés unidos pelas suas cabeças, que estavam lado a lado, e pelos seus braços que eram, afinal um só. Ambos emudeceram perante as crianças acabadas de nascer, que nesse momento puderam o sentir o peso do olhar da diferença sobre si próprias. Repletos de medo e de terror, decidiram manter segredo sobre aquela que era para eles uma verdadeira aberração, sem nunca lhes ter ocorrido resolver tal situação, tal era o pavor que sentiam por ter de expor aos olhares e comentários alheios aquele que tinha sido, aos seus olhos, a sua verdadeira falha... As crianças eram escondidas, passavam a maior parte do tempo num porão escuro, e quando choravam o som procurava ser imediatamente abafado, para que nunca ninguém descobrisse, debaixo daquele tecto, a prova do pecado.

Toda a aldeia estranhava o súbito recolhimento dos Torres, vivendo estes cada vez mais isolados do mundo exterior.

Durante estes longos períodos de clausura, Júlia e Fábia aprenderam a viver uma com a outra. Ou melhor a não viverem uma sem a outra. O mais notório é que num esforço de diferenciação e após tentativas menos saudáveis de separação em que se tentavam separar-se à força rasgando a própria carne, como se os corpos se expulsassem mutuamente, a diferença no que se refere à personalidade de ambas acentuava-se cada vez mais. Júlia era a mais passiva. Quieta, aceitava as coisas sem discutir ou se opor. Muito dependente da irmã aceitava aquela coabitação no mesmo corpo com naturalidade, enquanto que Fábia se revoltava frequentemente contra aquela situação que se tornava para ela opressora (não eram raras as vezes em que eram encontradas feridas no braço e na cara), e contra os próprios pais que pareciam alimentar aquela situação ano após ano. Sem nunca tê-las deixado sair de casa, acomodaram-se e habituaram-se a viver assim. Já sem qualquer contacto social, promoviam um estado de dependência nas filhas com o único intuito, inconsciente, claro está, de as manter junto deles e se sentirem úteis junto de alguém. Mais dependente, Julia aceitava esta situação facilmente pois era garante do amor dos pais que ameaçavam não raras vezes a irmã quando esta, já jovem, queria sair de casa e falava na possibilidade de se separarem. Chegou mesmo a ser ameaçada de nunca mais poder ver a família.

De carácter marcadamente decidido, um dia Fábia arrastou Júlia para fora de casa, onde ficaram expostas aos olhares dos conterraneos que ora fugiam aterrorizados, ora as tentavam afugentar com pedras. Correram, correram, até ultrapassar os limites da terra. Os pais não ousaram durante dias sair à rua.
Até ao dia em que ambas voltaram... juntas... mas não no mesmo corpo. Fábia saíra perfeitamente da intervenção, mas Júlia, nitidamente mais frágil, ficara sem braço e metade da sua face parecia como que esfacelada.
Em desespero, lançava-se aos pés dos pais na ânsia de não os perder, seguidamente abraçava a irmã, sem a qual sentia não poder viver.
Irados e expostos em toda a sua fragilidade, os pais Torres não suportaram tal golpe. Olharam, enraivecidos, uma última vez para Fábia e arrastaram Júlia pelo seu unico braço, jurando que quem se separou um dia jamais se poderia voltar a juntar. E partiram para sempre.

Júlia, a mais frágil, sabia que não suportaria a dor de tal separação e daí em diante, numa terra diferente, e proíbida pelos pais de qualquer espécie de contacto com a irmã, deixou de falar. Sentada em frente ao mar, as suas lágrimas misturavam-se com a água salgada, que se tornou amarga no dia em que pé ante pé seguiu rumo ao horizonte e se deixou submergir até não mais se poder ver.

No outro canto, na antiga aldeia, Fábia banhava-se no mesmo mar, que sentiu mais amargo. E nesse momento soube que a irmã deixara de existir. Ficou nua, deitada na areia... e assim se deixou ficar até ao anoitecer, encostada a uma rocha que com ela se confundia.

O vento levantou-se,a chuva caíu, devastadora, as ondas pareciam monstros côncavos, o som era ensurdecedor.
Tinha chegado o momento da fusão. Numa última luta consigo própria ergueu-se devagarinho. Atingida por um raio que rasgava os céus, soltou um grito lancinante e fundiu-se com a rocha. Nesse momento o mar tingiu-se de sangue.

Diz-se que ainda hoje, em dias de tempestade, junto a essa rocha feminina, é possível ouvir esse grito ao longe. E o mar tinge-se da cor escarlate.

terça-feira, novembro 04, 2003

Acreditar?

A Espiritualidade é uma das dimensões mais importantes e ricas do ser humano, seja sob a forma de religião, meditação, oração ou simplesmente o prazer de estar só consigo próprio, espiritualmente falando.

Um facto que tem chamado a minha atenção é precisamente as regras que têm vindo a surgir no contexto da Igreja Católica...

Isto lembra-me um episódio decorrido o Verão passado, numa Igreja no Algarve onde fui para ver uma familiar minha ainda novinha tocar piano, a convite da família.

Foi a primeira vez que entrei nessa Igreja e, quando cheguei - era Domingo - estava já cheia, havendo apenas dois lugares à frente, onde me dirigi com outros familiares. Uma missa muito participativa, interessante até, não fosse o padre convidado ter dito coisas que a mim verdadeiramente me chocaram.

A Homília rezava excertos do género: "Mulheres, servi os vossos Homens...", "inclinai-vos perante eles...", etc etc e uma série de outras referências a uma base de sociedade nitidamente machista, mas que, para ser sincera, não levei muito a sério. Afinal são escritos com milhares de anos (contudo escolhidos para aquela missa).

No entanto o que mais me chocou foi o senhor padre ter resolvido dar uma verdadeira lição de moral (qual?) a todos quantos ali estavam. Explicou durante largo espaço de tempo (a missa durou cerca de uma hora, quarenta e cinco minutos) como eram falsas as pessoas que não iam à Igreja todos os dias. Estas procuravam muitas vezes a Igreja apenas para fazer casamentos ou baptizados, e estas pessoas que apenas gostam da festa, iam à Igreja "como se fossem ao supermercado". Quando com elas falava, pessoas que são "como o demónio", dizia, elas respondiam "Eu cá tenho a minha Fé". E este padre, vestido de verde (não me esqueço da sua imagem), continuou este maravilhoso discurso, dizendo que não sabe o que são "católicos não praticantes", pondo em causa a Fé destas pessoas. Segundo ele a Fé é uma profissão e não conhece nenhum advogado "não praticante", nenhum médico "não praticante", e por aí adiante. O que poderíamos dizer de um professor que não exerce a sua profissão e se intitula professor? Só pode ser um diabo vestido de vermelho com tridente, cauda em seta, cornos e tudo.

A este ponto já a minha incredulidade ía alta. Reconheço e identifico-me com estas pessoas de quem este senhor padre falava. Sempre me considerei uma cristã, no sentido de ter tido essa educação, se bem que tenho um conceito criado por mim própria que faz uma recolha das várias ideias que vou encontrando pelo caminho, tenho ido como que construindo o meu próprio percurso. Não vou à igreja com frequência, nem pouco mais ou menos, mas de tempos a tempos sabe bem ir aquele espaço e estar em silêncio com a essência mais divina de nós próprios.
Isto não querendo defender que se vá à igreja como ao supermercado, apenas penso que não é o facto de não ir todos os dias, ou dia sim, dia não, ou mesmo nunca, que fa dez alguém melhor ou pior cristão, melhor ou pior pessoa...

A certa altura, este padre diz que quem pensa assim deveria sair do espaço sagrado que é Igreja... e não voltar. Acrescentou ainda qualquer coisa negativa acerca de outras religiões. Tive vontade de ir embora, virar as costas, bater o pé, fazer uma cena à filme. Que Igreja é esta, que moral é esta que não respeita crenças diferentes, modos de destar e modos de acreditar?
Fiquei... por respeito aos meus familiares que lá estavam... talvez por cobardia... por pensar também que aquele homem não tinha o direito de me expulsar daquele espaço, de por a minha Espiritualidade em causa.

Olhei em volta e uma multidão continuava sorridente, como se num delírio ou em qualquer realidade alternativa, apenas eu estivesse a ouvir aquelas palavras. Cantavam, repetiam, seguiam. Respeito, mas inversamente sinto falta de respeito pela minha Espiritualidade, pelas minhas ideias e pelas minha crenças. Se ser católico implica colocar umas belas dumas pálas nos olhos, desrespeitar crenças e religiões diferentes, então não o sou.

Não paro de me espantar com as brilhantes interpretações que a Igreja Católica vai fazendo de alguma coisa que até podia ser bela.

Acreditar, sim, sobretudo que não temos certezas e que a vida toda aprendemos.

Cristo morreu pelos seus ideais e era comunista, não lhe sendo retirado qualquer valor por isso, muito pelo contrário.
7ª Arte

Tenho visto vários comentários sobre filmes e cinema em diferentes blogs, incluindo ao filme que fui ver hoje:
"Dogville" foi de encontro e superou as minhas expectativas, sem margem para dúvidas. Nota 10 no imdb.com, onde apenas atribui a nota máxima ao "meu" outro filme - "Magnolia" (P.T.Anderson).
Lars von Trier volta a provocar, chocar e fazer pensar. Há que ser humano na resposta ao que é humano, há que tomar responsabilidade pelos próprios actos, a pessoa não é reduzida à sua "natureza".

É, assim provado, que é possível fazer bom cinema e de modo criativo com poucos recursos. Destaca-se a qualidade do argumento e dos actores.

Em que definição de bom cinema é também para mim aquele que acrescenta algo ao meu dia e talvez à minha vida, e este sem dúvida que o fez.

E mais não digo, vale a pena ir e ver com os próprios olhos. Ideias esvoaçantes, de encontro a realidades sociais e pessoais.

segunda-feira, novembro 03, 2003

Momentos

Naquele dia, quando acordou, deu por si sem braços nem pernas. Só mesmo o corpo, o tronco, alimentado de alguma maneira que nem ele próprio percebia. Os próprios sentidos estavam como que embotados: a visão era turva, vivia à custa de quem o quisesse abraçar, tocar, dos odores e sons, esses sim, muito intensos.

Não era preciso mexer-se pois tudo, sem perceber muito bem como, aparecia feito e à sua inteira disposição. Acomodou-se facilmente... e nem pedia ou chorava por mais, estava ali tudo o que queria, tudo o que precisava.

Com o tempo, pequenas estruturas se foram salientando através dos pedaços de pele cicatrizadas no lugar onde deveriam estar os seus membros, tendo daí nascido os seus braços e pernas. Conseguia já andar, mas não o fazia muito, pois tudo estava feito. Para quê deslocar-se ou esforçar-se sequer? Por se ter acomodado desta maneira, tanto braços como pernas não se desenvolveram na totalidade e como deveriam, dando uma sensação de desequilíbrio cada vez que tentava mover-se um pouco mais. Na realidade, pés e mãos não eram mais que amontoados de carne deformados.

Não sabia bem o que era esperado de si, o que era preciso para sentir que dele gostavam... sentia-se bem assim, parecia ser o que estava certo, mas outras vezes havia no ar uma vontade de ser contrariado, como se de farpas instigadoras se tratassem. Sensação ambivalente, como touro em tourada vil e sangrenta.

Um dia, quando arrastava um dos seus pés deformados, estranhamente mais esquartejados de dia para dia, largando rastos de memórias ensanguentadas atrás de si, decidiu sair do quadrado onde vivia e donde nunca tivera saído. Assim que transpôs esse limite, parecia arrastar atrás de si toneladas e, embora olhasse em redor, nada via. Com o peso, acabou por tropeçar num pedaço de corda que se estendia no caminho. Mal conseguindo suster o peso do corpo, foi impossível libertar-se de tal fardo. Na verdade, quanto mais tentava fazê-lo, mais enrolado e apertado ficava... Rebolava sobre si próprio em angústia desmedida, a corda que agora era corrente apertava com força a garganta, fazendo-o emitir silvos para respirar.

Assim arrastou o seu corpo, o seu tronco, dobrado, enrolado sobre si próprio, na busca desesperada de voltar ao quadrado inicial, seguro, donde tivera saído. E nisto passaram-se dias... meses... anos...

Ao longo do caminho encontrou muitas pessoas, todas diferentes. Algumas olhavam com visível repugnância para aquele corpo em carne viva que se esfolava no chão, numa espécie de masoquismo, sem possibilidade de quebrar as correntes que o atormentavam; outras tentavam ajudá-lo, estendendo-lhe os braços, tentando cortar aquelas amarras na qual se sufocava. No entanto, quando via estas pessoas com facas e objectos cortantes nas mãos pronto para cortar as cordas e correntes, num último fôlego, arrastava-se com todas as suas forças, pois sabia que agora cortar as amarras seria muito mais doloroso, visto estas já serem um prolongamento em carne viva do seu próprio corpo. Com o tempo, aprendeu a ignorar estas pessoas, pelo sofrimento maior ainda que lhe causavam, e criou um mundo seu, onde vivia e pensou poder fingir que não doía a dor deveras sentida.

Dias... Meses... Anos...

Um dia, sem saber para onde se dirigia, do que fugia, para onde corria, e no entanto achando ter chegado ao fim das suas forças, percebeu que não havia quadrado, o porto seguro esfumara-se. Parecia ter corrido o mundo inteiro nesta busca. Num último desespero, tentou arrastar o corpo pesado para trás de si, procurar as pessoas atrás de si... a maior parte não estava lá, os que restavam caminhavam através dele como se invisível fosse. Momentos de escolha... não verdadeiramente escolhida.

Sentiu o que era estar sozinho... e afinal não além do seu próprio quarto.

Mais do que isso, sentiu a solidão de não estar sequer consigo próprio.

sábado, novembro 01, 2003

Para Quê?

Há que mudar. Há alturas em que é preciso mudar . Sempre aquele processo custoso, doloroso e difícil de abandonar um percurso que nos é familiar. Quando nos é pedido mais do que temos para dar. Quando pedimos a nós próprios essa megalomania. Há que sair dessa teia que vai envolvendo até oprimir.
O dia de hoje é um dia de mudança.
"Metamorfose", mesmo que não sejamos aceites, como o próprio Kafka nos ensina.
A Descoberta

Oiço, não raras vezes, comentários dos mais variados no que se refere aos psicólogos. Parece haver um leque de opiniões vastíssimo no que se refere a esta profissão. No entanto, sempre contextualizado num sentimento de fascínio, traduzido quer positiva, quer negativamente. A ideia do "mágico" parece estar sempre presente, é no mínimo alguém que sabe mais do funcionamento psicológico, do comportamento e relações do ser humano do que qualquer outra pessoa.
Este leque de opiniões vai desde o psicólogo como "aproveitador das desgraças alheias" a alguém que é venerado. Na minha humilde opinião, os defensores da primeira opinião, não querendo generalizar, parecem, mais do que opinar, que se defendem de algo que muito os ameaça - reconhecer que até poderiam fazer alguma coisa por si próprios. Como pensar no psicólogo como um aproveitador se, no meio das muitas profissões que poderia escolher, optou precisamente por aquela que consiste em ajudar outras pessoas? Há quem receba dinheiro por vender produtos, por fazer arte, por fazer comida, por passar papeis. O psicólogo ganha a sua vida a ajudar outras pessoas a encontrarem o seu caminho (o que nunca tiveram, ou o que perderam, algures no seu percurso).
Li numa qualquer revista, um qualquer artigo em que alguém, referindo-se ao psicólogo dizia: "Dar dinheiro para ir a consultas de Psicologia é como te venderes a ti próprio".
Eu diria, antes: Se me perdi e se para me obter de volta tiver de pagar, então será esse o mais bem empregue dinheiro do mundo. Pois também é esse o maior valor do mundo.

quinta-feira, outubro 30, 2003

Perdido no (in)consciente

O dia de hoje fez-me lembrar e sentir o carinho que tenho pelo meu cão, companheiro de há quase dez anos... Obrigada.

E agora embarco nessa viagem que é o sono, em que nunca sei onde poderei ir parar. Aguardo com expectativa.
Delírios Metropolitanos


18 horas. Metro Baixa-Chiado. Entro. Uma fila de pessoas sentadas, a gare começa a ancher, os meus passos parecem chicotadas à medida que ando lentamente perante a audiência silenciosa. Espero que o metro chegue antes de ter de parar. Se parar não sei o que poderá acontecer.

Campainha estridente... não vou ter de parar. O metro chega, atordoante. Cotovelos, ninguém me vai deixar passar.
Entro finalmente. Suficientemente cheio para não ter lugar onde sentar. Algumas pessoas em pé. Todos me olham. Estão deformados, os seus rostos são meros resquícios do que alguma vez foram, parecem todos iguais, parecem derreter-se. Só os olhos são nítidos, como balas que me atingem.

Não sei o que fazer, olhar mais do que um, dois segundos para a mesma pessoa poderia ter consequências catastróficas... Saco o meu livro do saco, esperando algum alívio. Mas a tensão nitidamente aumenta: uma multidão de olhos se debruça, olhos aumentados, monstruosos, sobre mim. Todos são bem mais altos e debruçam-se sobre mim. Oprimem-me.

Rotunda. Marquês de Pombal. O dilúvio. Um segundo antes consigo arrumar o livro na mala. Uma torrente arrasta-me, deixando-me sem forças para ter controlo sobre o meu próprio corpo.
Um homem gordo encosta-se deixando cair as suas ávidas banhas sobre mim. "Cabrão", é só o que consigo pensar. Ergo o cotovelo, tenho de conseguir sobreviver. Uma mulher sem dentes exala um hálito fedorento sobre a minha cara. Consigo mesmo adivinhar a podridão das suas entranhas em toda a riqueza visual que tal imagem pode oferecer. O hálito mistura-se com o cheiro nauseabundo do saco que uma velha esmaga contra a minha barriga.
O gordo deixa cair umas gotas de suor sobre o meu pescoço. Todo aquele sebo atrás, o saco à frente, o hálito esverdeado, de lado. Sinto-me desfalecer.
Campainha. A carruagem anda. Tudo se transforma num ruído ensurdecedor, insuportável, as veias latejam na minha fronte, vai explodir e enfeitar com miolos toda a superfície metropolitana.

Entra um senhor, intitula-se "deficiente" e vai atingir-me com a sua vara. Um segundo homem vem na minha direcção. Tem uma faca, de certeza. Tem a mão no bolso para a tirar. A qualquer momento.
Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro. INSPIRO. EXPIRO. Vem veloz. Sons lancinantes. Cheiros fétidos. Vómitos. O som da porta a fechar e a abrir, como a lâmina de uma guilhotina.

TEnhhooo... de ... sair...DAAQQUUIII...

Chega a estação, saio a correr. Fá-lo-ía do mesmo modo, se não fosse perseguida.

Corro. Corro. Corro. CORRO.

Saio da estação

Respiro fundo.

Nova corrida vai começar.

quarta-feira, outubro 29, 2003

Ensaio de um Sonho


Por vezes, dou por mim perdida em rios de pensamentos que vão surgindo, primeiro bem devagarinho, depois mais depressa, mais...até que sem os controlar, correm em catadupa. É sobretudo o gozo de pensar. De criar pensando. É aí­ que nos apercebemos desta infinita e espantosa capacidade de criar algo a partir do nada. Ou transformar continuamente alguma coisa, numa outra sempre nova. São estas as tais coisas que tanto prazer me dão, enquanto as penso, ou sonho. Mas que correm o risco de se tornarem bizarras, sem sentido, quando transpostas e colocadas na relação. Gosto, no entanto, de as partilhar, correndo o risco, muitas vezes concretizado, de a mensagem se perder pelo caminho e surgir aos olhos dos outros como inútil. Pena haver tão pouca gente interessada nessa partilha, deixando-me, não raras vezes, com um sentimento de frustração de quem iniciou um caminho e por lá ficou. Aqui, esta materialização de pensamentos (apesar de tudo, infalivelmente virtual) não corre o risco de maçar ninguém. Ou, pelo menos, ninguém que não queira ser maçado. Abertas as excepções para os masoquistas, no extremo (e mesmo assim esses teriam prazer em sofrer, enfim...).
Enfim, uma dessas bizarrias com que adoro passar o pouco tempo que tenho para mim própria, é pensar nesta nossa realidade como um sonho... e no sonho como realidade. Isto é, porque será aquela a que chamamos realidade, mais real do que o tempo e o espaço vividos oniricamente? Porque não é o mundo em que vivemos um sonho? (ou um pesadelo, por vezes). Deve haver alguma teoria filosófica sobre isto.
Poder-se-ia argumentar que, sim senhor, é óbvio que o mundo é a realidade, pois é o mais coerente em termos de sequência temporal linear. Mas... e se sempre vivemos na incoerência e o nosso inconsciente criou um mundo aparentemente mais coerente para compensar esta desorganização interior que é a nossa realidade? Enfim, bem mais bizarra é ainda, de vez em quando, a "nossa realidade" face a bem mais "arrumados sonhos". (Os meus sonhos bizarros ficarão para uma próxima oportunidade).
E, no fim de contas, o que é realidade e verdade senão a realidade e a verdade para cada um de nós, que a vai construindo e que, num esforço ou num prazer colectivo, a tornamos mais ou menos comum, de quando em vez um pouco mais partilhada com alguém diferente, mais próximo?
São ideias que vão correndo, brincadeiras com o pensamento, jogos interiores, que com certeza, como é visível, nos levam a lado nenhum. Pelo menos é do que se queixam as pessoas quando inicio uma "tertúlia" deste género. Mas aí pergunto a mim mesma - ir para onde? chegar onde? onde quer toda a gente chegar? Ainda agora partimos...! Apetece-me acordar, e dormir, e acordar, e dormir, e acordar... Sorrir e dizer "não", pequenos luxos, ou simples prazeres...

Ouço gotas de chuva na minha janela. Sinto-me filosófica.

Perfeita divagação de início de madrugada chuvosa.

segunda-feira, outubro 27, 2003

"Kafkiano adj 1-relativo a Franz Kafka (1883-1924), escritor judeu de língua alemã nascido na cidade de Praga(...) ou à sua obra 1.1. que de forma semelhante à obra de kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo,(...) que escapa a qualquer lógica ou racionalidade (diz-se de situação, obra artística, narração, etc...)"
(Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

E agora, diz-se também de Blog...

Para sonhos, pesadelos, fantasias, devaneios... Expressões.
Fagulhas de sentimentos, estilhaços de emoções.
Cheiros, sabores, amores... perdidos no tempo, reinventados na memória.
Tudo e Nada. Sempre e Nunca... Quando apetecer.
Para a realidade (ou sonho?), ela própria tão kafkiana. Toda ela com sentido.
Muito...
Pouco...
Ou nenhum.

« ...Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, (...) viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto. Estava deitado de costas, umas costas tão duras como uma carapaça, e, ao levantar um pouco a cabeça, viu o seu ventre acastanhado, inchado e arredondado em anéis mais rígidos, sobre o qual o cobertor, quase a escorregar, dificilmente se mantinha. As suas numerosas patas, lamentavelmente raquíticas, comparadas com a sua corpulência, remexiam-se desesperadamente diante dos seus olhos.
"O que me aconteceu?"...»

(F. Kafka, in A Metamorfose)



Saudações neste novo espaço e tempo.