quinta-feira, outubro 30, 2003

Perdido no (in)consciente

O dia de hoje fez-me lembrar e sentir o carinho que tenho pelo meu cão, companheiro de há quase dez anos... Obrigada.

E agora embarco nessa viagem que é o sono, em que nunca sei onde poderei ir parar. Aguardo com expectativa.
Delírios Metropolitanos


18 horas. Metro Baixa-Chiado. Entro. Uma fila de pessoas sentadas, a gare começa a ancher, os meus passos parecem chicotadas à medida que ando lentamente perante a audiência silenciosa. Espero que o metro chegue antes de ter de parar. Se parar não sei o que poderá acontecer.

Campainha estridente... não vou ter de parar. O metro chega, atordoante. Cotovelos, ninguém me vai deixar passar.
Entro finalmente. Suficientemente cheio para não ter lugar onde sentar. Algumas pessoas em pé. Todos me olham. Estão deformados, os seus rostos são meros resquícios do que alguma vez foram, parecem todos iguais, parecem derreter-se. Só os olhos são nítidos, como balas que me atingem.

Não sei o que fazer, olhar mais do que um, dois segundos para a mesma pessoa poderia ter consequências catastróficas... Saco o meu livro do saco, esperando algum alívio. Mas a tensão nitidamente aumenta: uma multidão de olhos se debruça, olhos aumentados, monstruosos, sobre mim. Todos são bem mais altos e debruçam-se sobre mim. Oprimem-me.

Rotunda. Marquês de Pombal. O dilúvio. Um segundo antes consigo arrumar o livro na mala. Uma torrente arrasta-me, deixando-me sem forças para ter controlo sobre o meu próprio corpo.
Um homem gordo encosta-se deixando cair as suas ávidas banhas sobre mim. "Cabrão", é só o que consigo pensar. Ergo o cotovelo, tenho de conseguir sobreviver. Uma mulher sem dentes exala um hálito fedorento sobre a minha cara. Consigo mesmo adivinhar a podridão das suas entranhas em toda a riqueza visual que tal imagem pode oferecer. O hálito mistura-se com o cheiro nauseabundo do saco que uma velha esmaga contra a minha barriga.
O gordo deixa cair umas gotas de suor sobre o meu pescoço. Todo aquele sebo atrás, o saco à frente, o hálito esverdeado, de lado. Sinto-me desfalecer.
Campainha. A carruagem anda. Tudo se transforma num ruído ensurdecedor, insuportável, as veias latejam na minha fronte, vai explodir e enfeitar com miolos toda a superfície metropolitana.

Entra um senhor, intitula-se "deficiente" e vai atingir-me com a sua vara. Um segundo homem vem na minha direcção. Tem uma faca, de certeza. Tem a mão no bolso para a tirar. A qualquer momento.
Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro. INSPIRO. EXPIRO. Vem veloz. Sons lancinantes. Cheiros fétidos. Vómitos. O som da porta a fechar e a abrir, como a lâmina de uma guilhotina.

TEnhhooo... de ... sair...DAAQQUUIII...

Chega a estação, saio a correr. Fá-lo-ía do mesmo modo, se não fosse perseguida.

Corro. Corro. Corro. CORRO.

Saio da estação

Respiro fundo.

Nova corrida vai começar.

quarta-feira, outubro 29, 2003

Ensaio de um Sonho


Por vezes, dou por mim perdida em rios de pensamentos que vão surgindo, primeiro bem devagarinho, depois mais depressa, mais...até que sem os controlar, correm em catadupa. É sobretudo o gozo de pensar. De criar pensando. É aí­ que nos apercebemos desta infinita e espantosa capacidade de criar algo a partir do nada. Ou transformar continuamente alguma coisa, numa outra sempre nova. São estas as tais coisas que tanto prazer me dão, enquanto as penso, ou sonho. Mas que correm o risco de se tornarem bizarras, sem sentido, quando transpostas e colocadas na relação. Gosto, no entanto, de as partilhar, correndo o risco, muitas vezes concretizado, de a mensagem se perder pelo caminho e surgir aos olhos dos outros como inútil. Pena haver tão pouca gente interessada nessa partilha, deixando-me, não raras vezes, com um sentimento de frustração de quem iniciou um caminho e por lá ficou. Aqui, esta materialização de pensamentos (apesar de tudo, infalivelmente virtual) não corre o risco de maçar ninguém. Ou, pelo menos, ninguém que não queira ser maçado. Abertas as excepções para os masoquistas, no extremo (e mesmo assim esses teriam prazer em sofrer, enfim...).
Enfim, uma dessas bizarrias com que adoro passar o pouco tempo que tenho para mim própria, é pensar nesta nossa realidade como um sonho... e no sonho como realidade. Isto é, porque será aquela a que chamamos realidade, mais real do que o tempo e o espaço vividos oniricamente? Porque não é o mundo em que vivemos um sonho? (ou um pesadelo, por vezes). Deve haver alguma teoria filosófica sobre isto.
Poder-se-ia argumentar que, sim senhor, é óbvio que o mundo é a realidade, pois é o mais coerente em termos de sequência temporal linear. Mas... e se sempre vivemos na incoerência e o nosso inconsciente criou um mundo aparentemente mais coerente para compensar esta desorganização interior que é a nossa realidade? Enfim, bem mais bizarra é ainda, de vez em quando, a "nossa realidade" face a bem mais "arrumados sonhos". (Os meus sonhos bizarros ficarão para uma próxima oportunidade).
E, no fim de contas, o que é realidade e verdade senão a realidade e a verdade para cada um de nós, que a vai construindo e que, num esforço ou num prazer colectivo, a tornamos mais ou menos comum, de quando em vez um pouco mais partilhada com alguém diferente, mais próximo?
São ideias que vão correndo, brincadeiras com o pensamento, jogos interiores, que com certeza, como é visível, nos levam a lado nenhum. Pelo menos é do que se queixam as pessoas quando inicio uma "tertúlia" deste género. Mas aí pergunto a mim mesma - ir para onde? chegar onde? onde quer toda a gente chegar? Ainda agora partimos...! Apetece-me acordar, e dormir, e acordar, e dormir, e acordar... Sorrir e dizer "não", pequenos luxos, ou simples prazeres...

Ouço gotas de chuva na minha janela. Sinto-me filosófica.

Perfeita divagação de início de madrugada chuvosa.

segunda-feira, outubro 27, 2003

"Kafkiano adj 1-relativo a Franz Kafka (1883-1924), escritor judeu de língua alemã nascido na cidade de Praga(...) ou à sua obra 1.1. que de forma semelhante à obra de kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo,(...) que escapa a qualquer lógica ou racionalidade (diz-se de situação, obra artística, narração, etc...)"
(Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

E agora, diz-se também de Blog...

Para sonhos, pesadelos, fantasias, devaneios... Expressões.
Fagulhas de sentimentos, estilhaços de emoções.
Cheiros, sabores, amores... perdidos no tempo, reinventados na memória.
Tudo e Nada. Sempre e Nunca... Quando apetecer.
Para a realidade (ou sonho?), ela própria tão kafkiana. Toda ela com sentido.
Muito...
Pouco...
Ou nenhum.

« ...Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, (...) viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto. Estava deitado de costas, umas costas tão duras como uma carapaça, e, ao levantar um pouco a cabeça, viu o seu ventre acastanhado, inchado e arredondado em anéis mais rígidos, sobre o qual o cobertor, quase a escorregar, dificilmente se mantinha. As suas numerosas patas, lamentavelmente raquíticas, comparadas com a sua corpulência, remexiam-se desesperadamente diante dos seus olhos.
"O que me aconteceu?"...»

(F. Kafka, in A Metamorfose)



Saudações neste novo espaço e tempo.