sexta-feira, novembro 28, 2003

Escondida incontida

Há uma raiva incontida na quietude da noite...
o manto negro que esconde e não revela.
Há uma estrela que arde... e queima, parecendo bela.
Fogosamente incendiada, mostra o brilho que ainda é,
que alcanço com o olhar, e que escapa por já não ser.
Olhos banhados que desaguam nos cantos dos lábios
por algo que parece ser agora,
mas que no entanto já foi, outrora...
Sob o manto da fictícia beleza,
a carne abre-se, transbordante de vermelho sangue,
rara subtileza.
Vem o dia... e a raiva vai-se
Mascarada de riso, por ora.
Mais não espera, desespera, chora...
Chegará com a noite, sem mais demora.

quinta-feira, novembro 27, 2003

Ao Espelho

Indignada, afirmo com força que "Faço tudo por ti, corro por ti, ando por ti... Choro por ti, rio por ti, sinto por ti. Amo por ti, vivo por ti. Morro por ti..."
Perscrutas-me com o olhar. Experimento uma pausa de infindável e expectante silêncio.
Olhas-me e com uma calma assustadora, perguntas-me lentamente, palavra a palavra, letra por letra:
"E por ti? O que fazes por ti?"
Não compreendo as tuas palavras (ou finjo), não quero compreender. Grito. Esperneio. Esbracejo. Zango-me. Barafusto em desespero.
Não tanto por pensar que não soubeste receber o que te dava, mas sim por me fazeres não esquecer de me lembrar de mim.



"Espelho", óleo s/tela Adriana Guimarães

terça-feira, novembro 25, 2003

Parabéns...

Para ti, Wong ( Mel de Lama ) pelos teus 12+11!



Fragmentos REM(II)

Estou numa Igreja, prestes a assitir a um casamento. De facto, a dois - antes da cerimónia para que fui convidada, teria lugar um outro casamento. Para dizer a verdade não sei de quem é o casamento para que fui convidada. Há várias pessoas de diversas famílias, sem aparente coerência entre si.
Decido esperar e ver o que vai acontecer.
O primeiro casal dá entrada. Fico surpreendida - o noivo tem vestido um fato da tropa, com padrão de camuflagem... e a noiva, essa sim, tem um casaco apertado até à cintura, de cor caqui e preta, deixando tudo o resto a nú, à excepção de uma pequena tanga, também ela caqui... O casal chega ao altar, e mais uma vez me surpreendo ao constatar que o padre é uma mulher. Não muito nova, cabelo pelos ombros, cinzento, óculos apoiados a meio do nariz.
Sinto-me bem com esta inovação em que o padre é uma mulher, mas não deixo de me sentir incomodada com as vestes do casal, principalmente a nudez da rapariga. Apesar de me considerar minimamente liberal em muitas das minhas ideias, aquilo parecia-me um pouco demais, mas o que mais me assustava era parecer ser eu a única a reparar.
Ouve-se um discurso sobre filhos, o casal entra em diálogo com o padre, discute mesmo, acho que falam de filhos e que não se importam que sejam criados por outras pessoas... o noivo refere: "Por mim, até podia ser criado pela porquinha!" Se agora esta frase não me faz qualquer sentido, na altura parece ter tido um impacto considerável visto ter sentido que ía contra as minhas ideias.
Então, para finalizar esta sequência de fantástica bizarria a mulher padre chama-me ao altar e pede-me que interceda junto daquele casal, que discurse. Todos parecem ficar redobradamente atentos para me ouvir, é como se eu representasse a voz da Razão. Acho estranho e a início comento que não entendo bem o que esperam de mim...
Após um momento de burburinho, inicio então um discurso inflamado. Dirijo-me aos noivos. Primeiro comento as suas vestes, embora explicando que era algo a que não estava habituada, respeitava a decisão deles. Depois falei-lhes sobre os filhos, elogiei a maneira de verem a vida, mas finalmente critiquei a entrega da educação dos filhos a outrém - "Nem à porquinha!" - finalizei.
E, em manifesto e pleno reconhecimento das minhas sábias palavras, um aplauso sentido ecoou pela Igreja.

Ele há coisas do Inconsciente...

domingo, novembro 23, 2003

Encontro

Alguém me chama. Transformo-me em expressão de emoção que não decifro... Encontro-me, contra todas as minhas expectativas, defronte do meu Eu de criança. Parada no tempo, os cabelos escuros e longos, rebeldes sobre os ombros, desaguantes nas costas... os olhos do tamanho do Mundo olham-me com curiosidade, ansiedade, admiração mesmo.
Ela chega-se, a medo, junto de mim... um mundo cheio de esperanças, o peito cheio de lágrimas. Emoção transbordante de quem quer tudo e não quer nada no mesmo momento que não passa, e que corre sem se dar conta. Aquele mesmo cheiro doce a gomas e pastilha elástica.
"Os meus sonhos, os meus planos... conseguiste resolver tudo o que querias resolver? Estás bem, agora? Vale a pena? Estás feliz?" - corrente indagadora de ansiedade, corpo frágil de menina, sedento de segurança e conforto. Procuro-o em mim, não sei bem onde está, onde está o meu Eu de quarenta anos para encontrar aí a segurança que imaginei ter nesta altura, há muito tempo atrás?...
Quero responder... Necessidade premente de sossegar a criança dentro de mim. Fiz tudo e não fiz nada... feliz e tão infeliz... olho ao espelho este meu sorriso de lágrimas.
Olho-a. Pouso a minha Alma na sua. Abraço com o olhar.
Há perguntas que ainda não têm resposta.

sexta-feira, novembro 21, 2003

Curiosidade


Anuncio publicado no
Jornal "Novo Tempo" de
10 de Outubro de 1889 e
reproduzido no Semanário de
31 de Janeiro de 1997.

quinta-feira, novembro 20, 2003

Manhã

Manhã embriagada das imagens nocturnas. Despertar com uma imagem que perdura na memória:
Numa floresta verde há no centro um lago num tanque que mal se diferencia do que o envolve. As paredes exteriores são de azulejo tosco, antigo... Em cada canto há um pilar, e outros tantos ao longo dessas paredes, deixando subir trepadeiras até formarem um tecto de folhas e ramos que se abraçam. Em redor, paira uma imensidão de campaínhas brancas, deixando no ar um odor adocicado suave, inebriante.
A riqueza das cores, as matizes de verde, laranja ferrugem, amarelado e mesmo vermelho deixam-me zonza... e reflectem na água perene e intacta uma nova manta de retalhos de natureza. Acordo ainda sorrindo. Serenidade...

terça-feira, novembro 18, 2003

Fragmentos REM

Uma festa enorme num local desconhecido. Era preciso ir para a mesa, a refeição estava próxima, e o meu nome era chamado obsessivamente. Mas primeiro tinha de encontrar as essências e as velas. Fui ao quarto, várias pessoas se espalhavam, um monstro enrolado numa manta em cima da cama. Não se mexia. Ignorei-o, e continuei na minha busca.
Aparece Catarina, uma "amiga" de infância que me fazia a vida negra na escola. Traz uma mini-saia mínima. Está mais gorda e apercebo-me da celulite nas suas coxas.
Apercebo-me que é o dia do meu aniversário. Resolvo refugiar-me na casa de banho e oiço excertos de conversas. Catarina conta que está assim, gorda, pois começou a tomar uma pílula não receitada pela médica e só toma quando lhe apetece. Chovem conselhos para não o fazer...
Volto a entrar no quarto, cumprimentando-a vagamente. Encontro finalmente o que procurava.
Com as velas na mão volto novamente à sala. Parece diferente, maior, mais barulhenta. Há mais gente, a maior parte não conheço e pergunto-me o que fazem lá. A sala parece uma adega, há vinho nos copos.
Em cima da mesa de pedra, está um pequeno búzio pintado de dourado.
Segue-se uma algazarra. Alguém vem ter comigo e com o amigo ao meu lado e diz-nos que temos de matar duas pessoas que estão na festa. Não percebo, a confusão é muita, somos empurrados até ao lado direito da sala. Na verdade, um homem e uma mulher estão já lá, em pé, com as mãos amarradas. Atiram uma caçadeira a cada um de nós, o meu amigo tem de matar o homem, eu a mulher. Não percebo porque tenho de o fazer, mas dizem-me que fez algo de imperdoável. Estranhamente o meu amigo acede prontamente e dispara um tiro na cabeça, esfacelando a face ao pobre homem. Era agora a minha vez. Não o queria fazer, a mulher exibia o rosto de sofrimento e um outro homem, que já não era o mesmo, implorava-me pela vida desta senhora.
Sou cada vez mais impelida a disparar um tiro na cabeça da mulher, era o mais certo, dizia-me o meu amigo. Num último esforço, aponto à cabeça e disparo o fatídico tiro. Missão cumprida.
Os momentos seguintes decorreram como se nada se tivesse passado.
Já junto à mesa de pedra, algumas pessoas ofereceram-se para nos levar no nosso caminho de volta, uma delas olha para mim com um aspecto suspeito, para a minha camisa. Olho e em vez de um dos botões que a abotoava, estava o pequeno búzio dourado. Senti-me estranha e suspeita, como tinha o búzio sido cosido à camisa sem eu perceber?...
No caminho de volta, passámos por prados e montanhas verdes. Seguíamos como que planando. Ouvia-se uma cantilena acerca do "Paraíso" e de "paz para sempre". Ao chegar a um precipício, os nossos acompanhantes apontam-nos as caçadeiras. Temos de morrer. Desesperada, quero saber porquê, nada fizéramos. Era a nossa vez de morrer, tínhamos bebido daquele vinho, era a justificação. Sem perceber, contorço-me de desespero em frente às armas. Uma longa espera sádica até o tiro atingir certeiro a cabeça do meu amigo, que logo se silenciou. A dor era imensa, um peso no peito deixava-me descomposta no chão, as lágrimas rolavam pela minha face, aquela arma apontada era o terror em pessoa.
O desespero foi inútil. O vermelho do sangue espalhou-se sobre o verde das colinas.

domingo, novembro 16, 2003

Ar em movimento

O vento sopra, arrasta, engole, consome... rodopia e brinca...
Leva tudo, de dentro e de fora... leva também o que não era suposto levar.

quinta-feira, novembro 13, 2003

Atemporal ou A Mulher que Corria Atrás do Tempo

Em vez de viver as horas, corria atrás delas. O ponteiro, esse, sempre um passo à frente. Por muito esforçadamente, por muito desesperadamente. Era preciso cuidado para não se distrair para não o perder de vista e correr o risco de não poder jamais ultrapassá-lo.

No início, o tempo era algo imenso, um ano era muito tempo, o Natal vinha lá de quando em quando, assim como o dia do aniversário, sempre tão esperado. A árvore de Natal era enorme... nela cabiam todos os sonhos e todas as fantasias.

Cedo começou a sentir um medo inexplicável de que um dia acordasse e não restasse ninguém... e todas as noites se despedia obsessivamente da mãe, dizendo-lhe que não queria que morresse, vivendo nessa esperança de que um dia, de facto, ninguém morresse e a vida fosse eterna. Achava mesmo que se pedisse muito um dia conseguiria que tal acontecesse e mais nenhum mal viria ao mundo...

Com o tempo - esse monstro que não parava de avançar - este medo foi assumindo diferentes formas e sendo alastrado a todos os domínios da sua vida. Já não vivia. Esperava. A sua vida resumia-se a um mero esperar. Da hora da morte. Esse monstro inevitável que via no final da recta que era a sua vida, devastador, por ela aguardando, cada vez mais perto, compassadamente, ao ritmo do relógio. Implacável.

A início começou por tentar ignorar aquela terrível visão que se apoderava dela o tempo inteiro, a toda a hora, sem descanso. Os dias tornaram-se negros e não demorou muito até que esta angústia dominasse também as suas noites. Imaginava um espaço perene, sem tempo, permanente, em que tudo existisse num só momento, um tempo sem passado, presente ou futuro. Uma simultaneidade de acontecimentos, em que a ideia de ordem cronológica seria inexistente.

Mas cedo desistiu, a angústia impunha-se com cada vez mais força. Partiu as ampulhetas, livrou-se de todos os relógios que tinha em casa, apostou com o próprio tempo que seria mais rápida do que ele. Achou que se corresse mais rapidamente do que a própria vida conseguira, enfim, alcançar a dimensão para além do tempo, dimensão atemporal, atingiria a tão esperada e desejada Eternidade.
Perdia-se frequentemente em pensamentos. Pensava que ainda há pouco ontem era hoje. Brevemente hoje iria ser ontem. Tinha que aproveitar. Apanhar o hoje antes que se tornasse ontem. Fazê-lo ficar o máximo tempo possível.
A aflição era desmedida quando iniciava novo rol de pensamentos em que tentava descobrir qual seria a melhor maneira de aproveitar o hoje e impedir que se tornasse ontem sem antes lhe ter dado significado. Nunca conseguia decidir, e afinal o tempo continuava a passar nesta angústia dilacerada da decisão que nunca chegava.

Assim os anos se tornaram meses, os meses semanas, as semanas dias e estes, rapidamente pareceram minutos. Tão escassos. Sempre tão escassos para tudo o que desejava fazer. Mesmo quando imaginava que tivera decidido, depressa caía noutro ciclo vicioso - se escolhesse fazer determinada coisa, não poderia fazer a outra. O tempo surgia sempre como uma limitação destruidoramente implacável. Deixar de fazer alguma coisa era algo que não poderia acontecer, pois nada poderia ficar por fazer. No entanto, à força de nada decidir com medo de perder, tudo ficava mesmo por fazer...

O tempo parecia cavalo a galope. Convenceu-se que depressa morreria, vítima de doença mortal, acidente, qualquer acaso que a levasse... e vivia preparada e com medo, a todas as horas, de que esse momento chegasse. Cada dia que passava, doía terminar. Dia após dia, a noite era uma pequena morte. Por várias vezes pensou em terminar voluntariamente aquela tormenta de não poder controlar a hora do seu trágico e inevitável fim... mas depois pensava em tudo o que ficaria por fazer. Nova corrida se iniciava.

E voltava a apressar o passo, agarrada ao ponteiro grande do relógio, balançava em esforço, projectando-se para a frente. Por vezes agarrava as horas, outras vezes os minutos e até mesmo os segundos. Só não percebeu que a força que fazia, o esforço que dispendia, o peso do seu corpo pendurado, faziam com que o tempo avançasse bem mais depressa. E as mãos, já feridas, escorregavam ao longo ds ponteiros do relógio. Era como querer segurar o luar em noite sem nuvens.

Mais tarde, muito mais tarde... morreu de facto. Morte natural. Contava já mais de cem anos. Tanto tempo, onde tanta coisa caberia... No entanto, enquanto exalava o último suspiro, sentiu que tinha vivido tão pouco. Estranha a sensação de ter passado ao lado de qualquer coisa.
Tanto para fazer.
E, no entanto, nada feito.
Voltando ao pó da terra. Agora areia de ampulheta.

terça-feira, novembro 11, 2003

Destino?

Fica um momento de reflexão:

"Esta vida tal como a vives actualmente e tal como a viveste terás que vivê-la uma vez mais e inúmeras vezes mais, nela nada haverá de novo; pelo contrário cada dor, cada prazer, cada pensamento e cada gemido e tudo o que há de indizivelmente pequeno e grande na tua vida deverá ter que voltar outra vez na mesma ordem e na mesma sucessão (...)
A eterna clepsidra da vida inverte-se sem cessar e a ti - grão de poeira da poeira - também acontecerá como acontece com ela."
(Nietzsche)

Destino ou livre arbítrio? Condenação a viver numa circularidade viciosa e assustadora... ou capacidade e poder de promover a mudança, transformar, melhorar, nesse eterno retorno ao ponto de partida?
Ou trata-se, antes, de uma referência propensão à repetição de um mesmo padrão, incessantemente, ao longo da vida?
Se pudermos mudar, vamos mesmo querer fazê-lo?
E se nada pudermos mudar? Se cada dor, cada prazer voltar "na mesma ordem e na mesma sucessão"?

Quereríamos voltar a viver uma vez mais esta vida que amamos e odiamos?

Espaço e tempo de silêncio. Abertura ao pensamento.

segunda-feira, novembro 10, 2003

Alvorada

Tenho os cabelos ondulados de chuva e um pouco crespos do vento.
Os olhos semicerrados de constantemente se encontrarem numa superfície próxima.
A escuridão... agora que não há luz.
Tudo é branco (ou tudo é negro...), agora que não vejo a cor.
Em redor é noite,
Agora que o dia se foi, e o sol se parece ter posto
Há muitas horas,
Muitos dias,
Muito tempo...


Surge agora o pequeno mundo do imediato
Ou o grande mundo do pensamento.

As nuvens choram
Agora que o suave e rebelde raio de sol não acaricia o corpo...
Ameno e Doce.
Vazio de sensações, que não se sente tocar...

Alvorada que não amanheceu
A noite que não escureceu
A estrela que nunca brilhou

Sou o sol que jamais raiou.

sexta-feira, novembro 07, 2003

Uma

O casal vivia numa pequena aldeia isolada do mundo, numa casa de madeira, frente à praia. O filho tão esperado da família Torres finalmente chegara. E não era um filho, era uma filha... ou melhor, duas! Ao início não se percebia bem, mas num último folego a mãe dava à luz dois bebés unidos pelas suas cabeças, que estavam lado a lado, e pelos seus braços que eram, afinal um só. Ambos emudeceram perante as crianças acabadas de nascer, que nesse momento puderam o sentir o peso do olhar da diferença sobre si próprias. Repletos de medo e de terror, decidiram manter segredo sobre aquela que era para eles uma verdadeira aberração, sem nunca lhes ter ocorrido resolver tal situação, tal era o pavor que sentiam por ter de expor aos olhares e comentários alheios aquele que tinha sido, aos seus olhos, a sua verdadeira falha... As crianças eram escondidas, passavam a maior parte do tempo num porão escuro, e quando choravam o som procurava ser imediatamente abafado, para que nunca ninguém descobrisse, debaixo daquele tecto, a prova do pecado.

Toda a aldeia estranhava o súbito recolhimento dos Torres, vivendo estes cada vez mais isolados do mundo exterior.

Durante estes longos períodos de clausura, Júlia e Fábia aprenderam a viver uma com a outra. Ou melhor a não viverem uma sem a outra. O mais notório é que num esforço de diferenciação e após tentativas menos saudáveis de separação em que se tentavam separar-se à força rasgando a própria carne, como se os corpos se expulsassem mutuamente, a diferença no que se refere à personalidade de ambas acentuava-se cada vez mais. Júlia era a mais passiva. Quieta, aceitava as coisas sem discutir ou se opor. Muito dependente da irmã aceitava aquela coabitação no mesmo corpo com naturalidade, enquanto que Fábia se revoltava frequentemente contra aquela situação que se tornava para ela opressora (não eram raras as vezes em que eram encontradas feridas no braço e na cara), e contra os próprios pais que pareciam alimentar aquela situação ano após ano. Sem nunca tê-las deixado sair de casa, acomodaram-se e habituaram-se a viver assim. Já sem qualquer contacto social, promoviam um estado de dependência nas filhas com o único intuito, inconsciente, claro está, de as manter junto deles e se sentirem úteis junto de alguém. Mais dependente, Julia aceitava esta situação facilmente pois era garante do amor dos pais que ameaçavam não raras vezes a irmã quando esta, já jovem, queria sair de casa e falava na possibilidade de se separarem. Chegou mesmo a ser ameaçada de nunca mais poder ver a família.

De carácter marcadamente decidido, um dia Fábia arrastou Júlia para fora de casa, onde ficaram expostas aos olhares dos conterraneos que ora fugiam aterrorizados, ora as tentavam afugentar com pedras. Correram, correram, até ultrapassar os limites da terra. Os pais não ousaram durante dias sair à rua.
Até ao dia em que ambas voltaram... juntas... mas não no mesmo corpo. Fábia saíra perfeitamente da intervenção, mas Júlia, nitidamente mais frágil, ficara sem braço e metade da sua face parecia como que esfacelada.
Em desespero, lançava-se aos pés dos pais na ânsia de não os perder, seguidamente abraçava a irmã, sem a qual sentia não poder viver.
Irados e expostos em toda a sua fragilidade, os pais Torres não suportaram tal golpe. Olharam, enraivecidos, uma última vez para Fábia e arrastaram Júlia pelo seu unico braço, jurando que quem se separou um dia jamais se poderia voltar a juntar. E partiram para sempre.

Júlia, a mais frágil, sabia que não suportaria a dor de tal separação e daí em diante, numa terra diferente, e proíbida pelos pais de qualquer espécie de contacto com a irmã, deixou de falar. Sentada em frente ao mar, as suas lágrimas misturavam-se com a água salgada, que se tornou amarga no dia em que pé ante pé seguiu rumo ao horizonte e se deixou submergir até não mais se poder ver.

No outro canto, na antiga aldeia, Fábia banhava-se no mesmo mar, que sentiu mais amargo. E nesse momento soube que a irmã deixara de existir. Ficou nua, deitada na areia... e assim se deixou ficar até ao anoitecer, encostada a uma rocha que com ela se confundia.

O vento levantou-se,a chuva caíu, devastadora, as ondas pareciam monstros côncavos, o som era ensurdecedor.
Tinha chegado o momento da fusão. Numa última luta consigo própria ergueu-se devagarinho. Atingida por um raio que rasgava os céus, soltou um grito lancinante e fundiu-se com a rocha. Nesse momento o mar tingiu-se de sangue.

Diz-se que ainda hoje, em dias de tempestade, junto a essa rocha feminina, é possível ouvir esse grito ao longe. E o mar tinge-se da cor escarlate.

terça-feira, novembro 04, 2003

Acreditar?

A Espiritualidade é uma das dimensões mais importantes e ricas do ser humano, seja sob a forma de religião, meditação, oração ou simplesmente o prazer de estar só consigo próprio, espiritualmente falando.

Um facto que tem chamado a minha atenção é precisamente as regras que têm vindo a surgir no contexto da Igreja Católica...

Isto lembra-me um episódio decorrido o Verão passado, numa Igreja no Algarve onde fui para ver uma familiar minha ainda novinha tocar piano, a convite da família.

Foi a primeira vez que entrei nessa Igreja e, quando cheguei - era Domingo - estava já cheia, havendo apenas dois lugares à frente, onde me dirigi com outros familiares. Uma missa muito participativa, interessante até, não fosse o padre convidado ter dito coisas que a mim verdadeiramente me chocaram.

A Homília rezava excertos do género: "Mulheres, servi os vossos Homens...", "inclinai-vos perante eles...", etc etc e uma série de outras referências a uma base de sociedade nitidamente machista, mas que, para ser sincera, não levei muito a sério. Afinal são escritos com milhares de anos (contudo escolhidos para aquela missa).

No entanto o que mais me chocou foi o senhor padre ter resolvido dar uma verdadeira lição de moral (qual?) a todos quantos ali estavam. Explicou durante largo espaço de tempo (a missa durou cerca de uma hora, quarenta e cinco minutos) como eram falsas as pessoas que não iam à Igreja todos os dias. Estas procuravam muitas vezes a Igreja apenas para fazer casamentos ou baptizados, e estas pessoas que apenas gostam da festa, iam à Igreja "como se fossem ao supermercado". Quando com elas falava, pessoas que são "como o demónio", dizia, elas respondiam "Eu cá tenho a minha Fé". E este padre, vestido de verde (não me esqueço da sua imagem), continuou este maravilhoso discurso, dizendo que não sabe o que são "católicos não praticantes", pondo em causa a Fé destas pessoas. Segundo ele a Fé é uma profissão e não conhece nenhum advogado "não praticante", nenhum médico "não praticante", e por aí adiante. O que poderíamos dizer de um professor que não exerce a sua profissão e se intitula professor? Só pode ser um diabo vestido de vermelho com tridente, cauda em seta, cornos e tudo.

A este ponto já a minha incredulidade ía alta. Reconheço e identifico-me com estas pessoas de quem este senhor padre falava. Sempre me considerei uma cristã, no sentido de ter tido essa educação, se bem que tenho um conceito criado por mim própria que faz uma recolha das várias ideias que vou encontrando pelo caminho, tenho ido como que construindo o meu próprio percurso. Não vou à igreja com frequência, nem pouco mais ou menos, mas de tempos a tempos sabe bem ir aquele espaço e estar em silêncio com a essência mais divina de nós próprios.
Isto não querendo defender que se vá à igreja como ao supermercado, apenas penso que não é o facto de não ir todos os dias, ou dia sim, dia não, ou mesmo nunca, que fa dez alguém melhor ou pior cristão, melhor ou pior pessoa...

A certa altura, este padre diz que quem pensa assim deveria sair do espaço sagrado que é Igreja... e não voltar. Acrescentou ainda qualquer coisa negativa acerca de outras religiões. Tive vontade de ir embora, virar as costas, bater o pé, fazer uma cena à filme. Que Igreja é esta, que moral é esta que não respeita crenças diferentes, modos de destar e modos de acreditar?
Fiquei... por respeito aos meus familiares que lá estavam... talvez por cobardia... por pensar também que aquele homem não tinha o direito de me expulsar daquele espaço, de por a minha Espiritualidade em causa.

Olhei em volta e uma multidão continuava sorridente, como se num delírio ou em qualquer realidade alternativa, apenas eu estivesse a ouvir aquelas palavras. Cantavam, repetiam, seguiam. Respeito, mas inversamente sinto falta de respeito pela minha Espiritualidade, pelas minhas ideias e pelas minha crenças. Se ser católico implica colocar umas belas dumas pálas nos olhos, desrespeitar crenças e religiões diferentes, então não o sou.

Não paro de me espantar com as brilhantes interpretações que a Igreja Católica vai fazendo de alguma coisa que até podia ser bela.

Acreditar, sim, sobretudo que não temos certezas e que a vida toda aprendemos.

Cristo morreu pelos seus ideais e era comunista, não lhe sendo retirado qualquer valor por isso, muito pelo contrário.
7ª Arte

Tenho visto vários comentários sobre filmes e cinema em diferentes blogs, incluindo ao filme que fui ver hoje:
"Dogville" foi de encontro e superou as minhas expectativas, sem margem para dúvidas. Nota 10 no imdb.com, onde apenas atribui a nota máxima ao "meu" outro filme - "Magnolia" (P.T.Anderson).
Lars von Trier volta a provocar, chocar e fazer pensar. Há que ser humano na resposta ao que é humano, há que tomar responsabilidade pelos próprios actos, a pessoa não é reduzida à sua "natureza".

É, assim provado, que é possível fazer bom cinema e de modo criativo com poucos recursos. Destaca-se a qualidade do argumento e dos actores.

Em que definição de bom cinema é também para mim aquele que acrescenta algo ao meu dia e talvez à minha vida, e este sem dúvida que o fez.

E mais não digo, vale a pena ir e ver com os próprios olhos. Ideias esvoaçantes, de encontro a realidades sociais e pessoais.

segunda-feira, novembro 03, 2003

Momentos

Naquele dia, quando acordou, deu por si sem braços nem pernas. Só mesmo o corpo, o tronco, alimentado de alguma maneira que nem ele próprio percebia. Os próprios sentidos estavam como que embotados: a visão era turva, vivia à custa de quem o quisesse abraçar, tocar, dos odores e sons, esses sim, muito intensos.

Não era preciso mexer-se pois tudo, sem perceber muito bem como, aparecia feito e à sua inteira disposição. Acomodou-se facilmente... e nem pedia ou chorava por mais, estava ali tudo o que queria, tudo o que precisava.

Com o tempo, pequenas estruturas se foram salientando através dos pedaços de pele cicatrizadas no lugar onde deveriam estar os seus membros, tendo daí nascido os seus braços e pernas. Conseguia já andar, mas não o fazia muito, pois tudo estava feito. Para quê deslocar-se ou esforçar-se sequer? Por se ter acomodado desta maneira, tanto braços como pernas não se desenvolveram na totalidade e como deveriam, dando uma sensação de desequilíbrio cada vez que tentava mover-se um pouco mais. Na realidade, pés e mãos não eram mais que amontoados de carne deformados.

Não sabia bem o que era esperado de si, o que era preciso para sentir que dele gostavam... sentia-se bem assim, parecia ser o que estava certo, mas outras vezes havia no ar uma vontade de ser contrariado, como se de farpas instigadoras se tratassem. Sensação ambivalente, como touro em tourada vil e sangrenta.

Um dia, quando arrastava um dos seus pés deformados, estranhamente mais esquartejados de dia para dia, largando rastos de memórias ensanguentadas atrás de si, decidiu sair do quadrado onde vivia e donde nunca tivera saído. Assim que transpôs esse limite, parecia arrastar atrás de si toneladas e, embora olhasse em redor, nada via. Com o peso, acabou por tropeçar num pedaço de corda que se estendia no caminho. Mal conseguindo suster o peso do corpo, foi impossível libertar-se de tal fardo. Na verdade, quanto mais tentava fazê-lo, mais enrolado e apertado ficava... Rebolava sobre si próprio em angústia desmedida, a corda que agora era corrente apertava com força a garganta, fazendo-o emitir silvos para respirar.

Assim arrastou o seu corpo, o seu tronco, dobrado, enrolado sobre si próprio, na busca desesperada de voltar ao quadrado inicial, seguro, donde tivera saído. E nisto passaram-se dias... meses... anos...

Ao longo do caminho encontrou muitas pessoas, todas diferentes. Algumas olhavam com visível repugnância para aquele corpo em carne viva que se esfolava no chão, numa espécie de masoquismo, sem possibilidade de quebrar as correntes que o atormentavam; outras tentavam ajudá-lo, estendendo-lhe os braços, tentando cortar aquelas amarras na qual se sufocava. No entanto, quando via estas pessoas com facas e objectos cortantes nas mãos pronto para cortar as cordas e correntes, num último fôlego, arrastava-se com todas as suas forças, pois sabia que agora cortar as amarras seria muito mais doloroso, visto estas já serem um prolongamento em carne viva do seu próprio corpo. Com o tempo, aprendeu a ignorar estas pessoas, pelo sofrimento maior ainda que lhe causavam, e criou um mundo seu, onde vivia e pensou poder fingir que não doía a dor deveras sentida.

Dias... Meses... Anos...

Um dia, sem saber para onde se dirigia, do que fugia, para onde corria, e no entanto achando ter chegado ao fim das suas forças, percebeu que não havia quadrado, o porto seguro esfumara-se. Parecia ter corrido o mundo inteiro nesta busca. Num último desespero, tentou arrastar o corpo pesado para trás de si, procurar as pessoas atrás de si... a maior parte não estava lá, os que restavam caminhavam através dele como se invisível fosse. Momentos de escolha... não verdadeiramente escolhida.

Sentiu o que era estar sozinho... e afinal não além do seu próprio quarto.

Mais do que isso, sentiu a solidão de não estar sequer consigo próprio.

sábado, novembro 01, 2003

Para Quê?

Há que mudar. Há alturas em que é preciso mudar . Sempre aquele processo custoso, doloroso e difícil de abandonar um percurso que nos é familiar. Quando nos é pedido mais do que temos para dar. Quando pedimos a nós próprios essa megalomania. Há que sair dessa teia que vai envolvendo até oprimir.
O dia de hoje é um dia de mudança.
"Metamorfose", mesmo que não sejamos aceites, como o próprio Kafka nos ensina.
A Descoberta

Oiço, não raras vezes, comentários dos mais variados no que se refere aos psicólogos. Parece haver um leque de opiniões vastíssimo no que se refere a esta profissão. No entanto, sempre contextualizado num sentimento de fascínio, traduzido quer positiva, quer negativamente. A ideia do "mágico" parece estar sempre presente, é no mínimo alguém que sabe mais do funcionamento psicológico, do comportamento e relações do ser humano do que qualquer outra pessoa.
Este leque de opiniões vai desde o psicólogo como "aproveitador das desgraças alheias" a alguém que é venerado. Na minha humilde opinião, os defensores da primeira opinião, não querendo generalizar, parecem, mais do que opinar, que se defendem de algo que muito os ameaça - reconhecer que até poderiam fazer alguma coisa por si próprios. Como pensar no psicólogo como um aproveitador se, no meio das muitas profissões que poderia escolher, optou precisamente por aquela que consiste em ajudar outras pessoas? Há quem receba dinheiro por vender produtos, por fazer arte, por fazer comida, por passar papeis. O psicólogo ganha a sua vida a ajudar outras pessoas a encontrarem o seu caminho (o que nunca tiveram, ou o que perderam, algures no seu percurso).
Li numa qualquer revista, um qualquer artigo em que alguém, referindo-se ao psicólogo dizia: "Dar dinheiro para ir a consultas de Psicologia é como te venderes a ti próprio".
Eu diria, antes: Se me perdi e se para me obter de volta tiver de pagar, então será esse o mais bem empregue dinheiro do mundo. Pois também é esse o maior valor do mundo.