quarta-feira, dezembro 31, 2003

Se fui, já estive ou estarei

Isso não é o que me assombra

mas todo o universo

que o meu presente desperta

Contudo, os céus sempre na celebração

desse ir e vir

E nas estrelas claras e reluzentes

Uma seta apontando

para fora do meu ego

É por isso que tenho que partir...

para o Novo...

o Eterno Novo...


Carmen Furukawa, 2003


Feliz 2004!

Mundo em Branco

Nada podiam ver, num manto de branco viviam.
Mas de todas as cores era o mundo,
agora que o rebento recém nascido tão bem os seus olhos viam.
Vivia do quente abraço
e do carinho que a enchia
e tudo o que podiam ter fazia-o ela num traço:
com lápis de cor os céus riscava
um coração vermelho pintava
e tudo o que o pequeno ser queria
hábil como artista, desenhava
e o desenho realidade se tornava.
Só porque, capricho ou desejo, assim o queria.

Tais desvarios não impediam o tempo de passar
E o petiz, na casa fechada, crescia.
Enfim voltou-se para a mãe: "Preciso de respirar.
Como é a luz do dia?"

Pergunta inocente, no coração de mãe doía,
parecia, sem dó, que tudo fora em vão e agora lhe fugia.
Apressou-se a rabiscar um quintal arejado,
onde seu filho pudesse brincar
e se sentisse mais folgado.

Cedo voltou a questão:
"Como é a cor do mar, a luz da lua ao anoitecer...
Gosto muito de ti, mãe, mas assim não posso viver."

Invadida de cólera tal,
apagou tudo o que tivera feito
O comentário fora fatal
Tudo parecia desfeito.
Em súbito momento rabiscou
e dentro de uma redoma o seu filho enclausurou.

Durante anos bem fechado à chave ficou,
muitas, infinitas lágrimas chorou.

Um dia, muito mais tarde,
apanhou a borracha a jeito,
apagou tudo a preceito,
um punhal desenhou,e foi sem dó
que da mãe dilacerou o peito.

Partiu para da memória fugir,
por dentro a rouquidão do mar a bramir.

Uma mulher encontrou,
À memória não escapou.
Com ela para sempre ficou:
Uma casa à beira-mar
janelas lindas, ela desenhou...
...mas sem porta, é de espantar...




"Dancing with Chains", Debbie New

terça-feira, dezembro 30, 2003

Perguntas sem Resposta (III)

Continuar a brincar com o tempo...
Se o futuro fosse o passado...?
O que já vivi desconheço, o que está para vir já o vivi outrora... em tom decrescente - a escala que vai do Dó ao Dó em sentido inverso... Quere-lo-ía assim?
O que é o futuro senão a projecção cíclica e inconsciente do passado?
Tomo consciência. E torno a repetir-me na mesma "pergunta sem resposta": quere-lo-ía assim?...


Tarefa difícil...

... a de suportar no outro a confiança ausente. A de colocar em causa para não se perder e fragmentar em pedaços. Como voltar a juntá-los? Como voltar a juntar-se, a perceber-se Um?...
Só assim explicável o prazer dorido de querer abalar um acreditar e uma esperança...

... a de escrever a dor. Há coisas que só podem ser escritas a sangue fresco.


Fragmentos REM (IV)

Queria festejar o seu aniversário. Todos os anos a mesmíssima situação se repetia. Estava cansada, não dava jeito, não encontrara o local ideal para o fazer. Remendos para colmatar fendas invisíveis, mas sensíveis ao tacto.
Este ano não havia desculpa. Iniciou, a medo, a tarefa que sabia, ainda que remotamente, inglória. Mais inglória se fracassasse e em que acreditar passaria a ser palavra desprovida de significado.
De facto, convidou todos os que representavam uma parte de si. Um a um. E um a um foram peças de puzzle despedaçado. Fazia anos na quadra natalícia - todos a confundiram com Jesus e celebraram apenas o Natal.


domingo, dezembro 28, 2003

A Janela Mal Fechada...

A janela mal fechada conduz-me a um quadro pintado a sol e nuvens, cores que incendeiam e arrefecem numa mistura sal e doce de calor ameno que se chega a mim neste entardecer... há um raio de sol que penetra, indiscreto na penumbra doce do quarto.

Vejo, então, um mundo ao contrário - o mar por cima, o céu por baixo. Chovem raios de sol e raiam gotas de chuva em arco-íris. Vejo o som. Cheiro o doce, o salgado também. Saboreio imagens impossíveis de ver com os olhos.

Perante tal imagem, estranhamente não me assusto. Solto uma pequena gargalhada de criança que tenho dificuldade em admitir. Suave, a brisa passa, sussurra-me o meu nome, brinca entrelaçando-se no cabelo que oscila em pequenos, breves e ondulantes movimentos. Fecho os olhos para melhor a ouvir sussurrar... essa melodia que vai preenchendo com a lentidão da tarde... esse sussurro, esse nada, porque não vejo... esse tudo, sem o ver... Tudo, para sempre, nem que seja por um instante, por um só momento. Efemeramente, para sempre... Um acreditar, uma vontade que faz com que assim seja. Nem que seja só para mim... e agora...
Sonho... e quero que seja sonho... e quero que hoje seja sonho... este momento, este minuto, este segundo.

Continuo a sentir, não quero abrir os olhos, não quero acordar, não quero parar de sonhar... ou talvez queira... e, nesta antítese, transformar este meu sonho, imaginação, fantasia, em plena realidade...

As diversas sensações fundem-se numa só imagem , persistente, sempre premente que, a medo, não quis deixar entrar em mim, e em que foi doce resistir... e me ir entregando. Que me procura e que eu procuro, em que me sacio, e que em mim se sacia... Mesmo que assim não permanecesse, fechava os olhos e sentia este mundo nos olhos, nos cabelos, nas mãos, dentro de mim... e fazia-o mais uma vez, e outra, e outra ainda... ávida de um pouco mais... sempre um pouco mais... de muito mais... Não sei se poderia, não podia...(ou podia?)... mas quando não pudésse, fecharia os olhos mais uma vez

Entrego-me então e, na mistura dos sentidos, fundo-me com o céu, com as nuvens, com os raios de sol que me tocam o rosto de mansinho... que suavemente me acariciam e me dizem que é doce aqui estar, nesta paz aparente e serena que não é senão um turbilhão de emoções que não se vêm e não existem, a não ser por mim... e para mim... que não deixo ninguém ver, porque cerro os olhos, espelho da alma, que é minha. Porque assim quero, porque assim deixo e quero deixar. Sem resistência me entrego, num espaço sem lugar e sem tempo... me entrego à luz, ao vento, à ilusão que é voar sem asas e sonhar sem dormir...

E, quando quiser voltar, é só fazer o pino. E ficar... ficar... e ficar...


"Dream Window", Georgena Bourgeault

sexta-feira, dezembro 26, 2003

Lágrimas...


Pele da Alma, fina, crescente, que envolve o corpo embuído em felicidade que ele descobre e faz falar com os olhos, humedecidos de Lágrimas, tão serenas, tão meigamente serenas, dificilmente reveladoras da sua nascente, quente, revolta, turbilhão de ideias, cores e formas, ar, terra, água e fogo que se fundem num elemento último... pureza, limpidez, matéria, mas sobretudo espírito... ameno e suave...

Lágrimas... rolam embaladas numa melodia fervilhante e dolente, adivinhando a medo a sua origem... mar que desliza sobre os contornos esbatidos de montanhas do rosto, conhecendo o seu destino, onde como que se espraia na areia...

Lágrimas... persistentes... sempre presentes.

Lágrimas... não sabe já se dele próprio, se dos que estão à sua volta... confusão premente de rostos e de vozes que se condensam num fervilhar intenso e incessante que incendeia e consome, paixão de alma, que brota, ansiosa de destinatário físico, presente aqui e agora, de abolição do longe e da distância, de criação e destruição de recordações e memórias, de futuros e de passados...

Lágrimas... sabia se que se as chorasse era como lançar uma onda sobre o mundo, não saberia como fazer sobreviver os que agarrados a si, impreterivelmente consigo permaneciam fundidos.

Lágrimas... aguentou-as até poder. Mas, o volume surgia-lhe como demasiado. Até que o pingo de água cortou, frio, o silêncio da noite.

Todos feneceram, sem ar, debaixo da água e do sal daquelas Lágrimas. Todos menos ele. E, quando lançou o olhar em redor, encontrou um espelho. Nesse espelho pode ver o encontro absurdo das gotas de água no seu rosto com os cantos da sua boca entreaberta. E aí nasceu um sorriso.


"Tear It Down", Jimmy Cuadra

quarta-feira, dezembro 24, 2003

Partilhar... (III)

...Esta Noite

Noite

Noite de folha em folha murmurada,
Branca de mil silêncios, negra de astros,
Com desertos de sombra e luar, dança
Imperceptível em gestos quietos.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Póética I


Desejo um Feliz Natal e uma noite muito bem passada para todos os que cá passam.


Starry Night, V. Van Gogh

domingo, dezembro 21, 2003

Perguntas sem Resposta (II)
Simples Será...?


Será que quando corro sei para onde vou?
Será que quando morro fico onde estou?

Será que o meu nome assim se eternizou...
Ou que cada bater do coração em si mesmo se esgotou?

Será doce ou amargo o ar que respiro...
Ou simplesmente se esvai num suave suspiro?

Será que o sol não se cansa de para sempre brilhar?
Não será toda a vida um eterno procurar?

Será que a vida é simples como a onda que brinca na areia...
Ou se entrelaça, difícil, na complexidade de uma teia?

Pergunto a mim mesma se para sempre assim vai ser...
E perco-me no momento, esperando a dúvida perecer.

Perante tamanha imensidão tudo parece incerto,
Mas a serenidade volta quando te percebo tão perto...

Quando o sol brilha, quando a noite cai,
Quando o vento sopra, quando o mar vem e vai...

Turbilhão de emoções, inconstante mudança,
quando em ti repouso, e o teu corpo no meu dança.

Será que o que sentimos é tudo isso e ainda mais...
Maior que o mundo inteiro e outros tantos que tais.


"Abstraction", Kay Damgaard

sexta-feira, dezembro 19, 2003

Ela...

...Diz que sente um peso agradável no peito que a entrega ao destino. Diz sem palavras, diz com o olhar. Vazia do que foi, cheia do que está para vir, entrega-se a um destino que afinal não precisa de controlar. Deixa-o passar como areia entre os dedos, como brisa por entre o cabelo.
Num instante parece acordar e querer agarrar o vento, prender a onda do mar... mas um entorpecimento apodera-se dela e torna doce o deixar fugir, não prender, não controlar. Suave deslizar que lentamente vai aprendendo... e a dor, e alegria subitamente não parecem tão intensas... Mas logo a sensação lhe dá mais prazer, como a memória de uma brisa, como o cheiro de um fruto, que não se desvanece e sempre volta à memória.
Quer saber o que está para vir, mas quando souber, vai querer saber mais...Assim, deixa-se ficar, deixa-se levar. Não sabe como. Se assim, se de outra maneira qualquer. E agora dorme... desvanece no conforto de saber que está ali, agora, que pode descansar, sem esperar por amanhã.


"Girl in the Window" (1925), S. Dali

quarta-feira, dezembro 17, 2003

Perguntas sem Resposta

E se amanhã fosse sempre hoje...?...
(ainda no rescaldo do post anterior)

terça-feira, dezembro 16, 2003

Fugindo por entre sombras...

Fugindo por entre sombras, encontramo-nos no meio de um nada que não procuramos ...
Braços que se estendem e entrecruzam à frente, aflitos, ocultam quase totalmente a visão, já de si turva. Tropeçar. Cair. Voltar a levantar. Todos os dias. Todos os momentos. Todas as horas.
Insistência neste ciclo semi-fechado, neste ritual quase masoquista, numa vida demasiado curta,... ou demasiado longa para ser esquecida. Somos assim ... descontentes, inconscientes, sonhadores ...
Sempre pensamento ... muito mais do que aquilo que seria necessário para viver... viajar sempre para além de nós próprios, por em perigo a (in)felicidade ... Nós, permanente antítese e paradoxo.
Cegos, numa procura persistente ... insistente ..., mesmo que mais não seja preciso procurar, inventando, por vezes, caminhos tortuosos que não existem ... um desencontro frente ao Outro, que não é senão um Eu, numa outra perspectiva. Frente à imagem reflectida, espelho do meu corpo, encontro em ti a minha alma, um caminho, liso, suavemente macio, rectilíneo ...
Agora ... aqui... vivo num presente sem passado pensado ou futuro reflectido. Sou por já ter sido, serei o que sou hoje ... mas, sobretudo, sou, para não ser um "eternamente fui", ou um longo e esperado (utópico?) "serei" ...
Presente... aqui, agora, faço-o, construo-o, minuto a minuto... segundo a segundo, a cada movimento (des)compassado do relógio. Tornando o meu presente, presente, passado e futuro, serei aqui, agora e sempre Eu ...Nós.
Amplio, assim, um aqui e um agora que são, para além de um aqui e um agora, mais do que nunca, um ontem e um amanhã. Somos o que fomos, seremos o que somos.


"Surprise", Magritte

domingo, dezembro 14, 2003

Partilhar... (II)

...uma história, um autor, uma atmosfera que vem ao meu encontro:

A Morte Melancólica do Rapaz-Ostra

Nas dunas, pediu-lhe casamento,
À  beira mar se casaram.

Na ilha de Capri celebraram
esse tão grande momento.

À ceia jantaram um prato sobejo:
uma bela caldeirada de peixe e marisco.
E, enquanto ele saboreava o petisco,
no seu coração ela pediu um desejo.

O seu desejo tornou-se realidade: teve um bebé.
Mas seria um ser humano?
Pois é,
na verdade,
tinha dez dedos nos pés e nas mãos,
tinha visão e circulação.
Podia ouvir, podia sentir,
mas seria normal?
Isso não.
Este nascimento aberrante, este cancro, esta praga
foi o princípio e o fim de toda uma saga.

Ela zangou-se com o doutor:
"Esta criança não é minha.
Cheira a maresia, a salmoura e a tainha."

"Olhe que tem sorte, ainda a semana passada
tratei de uma miúda com crista e rabo de pescada.
Se o seu filho é meio ostra
não me venha acusar.
... Já pensou por acaso
numa casinha à beira-mar?"

Sem saber que lhe chamar,
chamaram-lhe Alves,
ou, às vezes,
"aquela coisa da espécie dos bivalves."

Toda a gente se perguntava, mas ninguém sabia
quando é que da concha o Rapaz Ostra saía.
Quando os quatro gémeos Lopes um dia o foram ver,
chamaram-lhe uma ameijoa e desataram a correr.

Num dia azarado,
Alves ficou encharcado
À esquina da rua Miramar.
Cabisbaixo,
viu a chuva rodopiar
pela sarjeta abaixo.

Na auto-estrada, a sua mãe,
À beira de um esgotamento,
esmurrava o painel dos instrumentos -
não conseguia conter
a dor crescente,
a frustração
que a fazia sofrer.

"Olha, querido", disse ela,
"isto não é para ter piada,
mas eu já não pesco nada
e acho que é do nosso filho.
Não gosto de o dizer, pois sou a mulher que te ama,
mas tu culpas o nosso filho pelos teus problemas na cama."

Ele bem se esforçou, com todo o denodo;
tentou mezinhas e poções
e tintura de iodo
que lhe fazia comichões.
Coçou-se e esmifrou-se e esfregou-se e sangrou.

Até que o médico diagnosticou:
"Eu não sei de ciência,
mas a cura do seu problema pode ser o que o causou.
Dizem que comer ostras aumenta a potência:
talvez se comer a criança
fique cheio de pujança."

Ele foi pela calada,
estava escuro como breu.
Tinha a testa suada
e nos lábios - uma mentira ensaiada:
"Filho, és feliz? Não me quero intrometer,
mas nunca sonhas com o Céu?
Nunca quiseste morrer?"

Alves pestanejou duas vezes
mas não ripostou.
O pai tacteou o punhal
e a sua gravata aliviou.

Pegando no filho ao colo,
Alves pingou-lhe a lapela.
Levando a concha aos lábios,
despejou-o pela goela.

Depressa o enterraram na areia junto ao mar
- uma prece rezaram, uma lágrima derramaram -
e para casa voltaram à hora do jantar.

A campa do Rapaz Ostra foi marcada com uma cruz.
Palavras escritas na areia
prometiam a salvação de Jesus.

Mas a sua memória perdeu-se numa onde de maré cheia.

De volta à paz do lar, ele beijou-a a arfar:
"Que tal uma rapidinha?"

"Mas desta vez", sussurrou ela, "quero uma rapariguinha."


Tim Burton, "A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias"

sábado, dezembro 13, 2003

Fragmentos REM (III)

Se é possível pensar no sonho como uma realidade paralela ou alternativa em que a vida também vai passando e sendo vivida, o que dizer do sonho dentro do sonho...?

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Viver à superfície

O esforço de respirar fora d'água, pode não ser esforço sequer.
Ignorância, ingenuidade, leveza e preocupação inexistente.
O mergulho dói, quando nada pode ser feito para impedir a carne de abrir. Abre em vermelho sangue, contamina a superfície. Sono encantado que conduz além do que dói...além do que se pode, do que se podia em eterno perene tempo, que fica e não avança. Não corre, não percorre. Tempo suficiente para contemplação do sofrimento. Momento que não passa... impaciência. Impaciência. Impaciência demais.
Devagar, é o retorno à superfície. O vermelho deixa de turvar a vista que se alarga em branco azul. Fiapos, réstias rosadas ficam, apenas o que serve para viver à superfície. Leve de cetim.
Cedo o mergulho voltará, quando o manto da noite estender os seus braços em envolvência aveludada.

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Hoje...

Essência ou mutação?... O tempo corre, mas fica. Leve e sem o ritmo compassado dos dias vulgares.
Dia de beleza e serenidade. Quase eternidade.


terça-feira, dezembro 09, 2003

A Noite depois do Dia

Vivia em viagem, numa fuga quase impossível. Já não se lembrava desde quando, mas parecia-lhe que nunca vivera de noite e que para si tivera sido sempre dia, desde que se conhecia. Adorava o sol e os seus raios, ora doces, ora mais intensos, que lhe bronzeavam a pele dourada.
Não sabia o que era a noite. Não queria saber. Fugia dela com todas as suas forças. O porquê nem se permitia reflectir sobre tal questão.
E assim vivia este homem, em permanente viagem, de país em país, caminhando sempre para Este, onde o sol nunca dormia. Onde a temperatura nunca descia. Onde não podia nunca ficar sozinho. Onde não tinha de dormir e ficar abandonado a si próprio, mergulhado no silêncio de não se poder ouvir sequer a si próprio.
Dia após dia. Dia após dia. Dia após dia...
Após muito vaguear, depois de várias voltas ao mundo, começava a ficar cansado, mas a força vinha de algo muito mais forte que ele, quase visceral.
Até ao dia em que a encontrou a ela, pálida como a Lua, carente de luz própria. Era ela. A mulher que o fascinava era ironicamente a mulher que fugia do dia. Fugia do dia como um vampiro. Escondia-se sob o manto aveludado da noite, salpicado de pequenas efervescentes, frias (mas quentes) estrelas. O porquê não queria pensar, era-lhe demasiado doloroso. E assim caminhava para Oeste, onde o sol nunca se levantava e a lua era companheira de viagem. Companheira do seu lado mais oculto e secreto.
Foi nesta viagem que ambos se encontraram e caíram um pelo outro. Estavam cansados de continuar, não queriam separar-se, como se já se pertencessem desde sempre, mesmo sem o saber.
Durante algum tempo viveram na transição do dia para a noite, da noite para o dia. Ele chamava-lhe aurora... ela chamava-lhe crepúsculo.
Um dia, munidos de coragem, resolveram perguntar um ao outro, questionar-se acerca das razões das suas fugas. Ele respondeu-lhe que a noite era fria e o deixava terrivelmente só; ela disse-lhe que na noite se escondia pois não saberia como se revelar à luz do dia.
Cansados de viver na luz crepuscular arriscaram finalmente. Ela mostrou-lhe como a noite podia ser quente e não solitária; e ele mostrou-lhe como podia ser ela própria sem esconderijos.



domingo, dezembro 07, 2003

Partilhar...

... um poema e um autor de que gosto:

"Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

..........................................................
..........................................................

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém..."


Quasi, Mário de Sá-Carneiro
Paris 1913 - Maio 13


Wings, Angels against addiction

sábado, dezembro 06, 2003

"São rosas..."

A vida corria, plácida como lagoa ao luar. Uma vida normal para um homem normal... Trabalhava durante a semana, passava os fins de semana fora com a mulher e filhos numa qualquer casa de campo.
Sempre saudável, era invejado pelos amigos, que frequentemente lhe gabavam as "cores". Nem uma constipaçãozita para o por de cama.
Até ao dia em que lhe foi diagnosticada uma doença mortal. "Prolongada", segundo alguns. "Crónica", diziam outros. Mas ninguém dizia o seu nome. Como se se tornasse menos mortal por isso. O tempo que restava era pouco, nunca é muito nestas situações. E iria sofrer, iria sofrer terrivelmente, diziam os entendidos.
Passado pesado espaço de introspecção, deu conta de um pequeno relevo por debaixo da camisa. Não... não estava ali antes. Devagar, abriu, botão a botão... e para seu espanto, um outro botão crescia do seu umbigo. Mas este era de rosa. Uma vistosa rosa desabrochou lentamente.
Não muito tempo passou para que de outras partes do seu corpo nascessem lindas flores vermelhas. Em vez de sofrer brotavam rosas, as suas dores eram flores que embelezavam o seu corpo, já de si quase coberto por pétalas cor escarlate.
Em vez de dor, em vez de lágrimas, um suave e doce perfume exalava destas pétalas sobre o corpo deste homem que sorria e fazia sorrir.
E foi assim com o passar do tempo. No dia em que morreu, todo ele era um jardim.


"Meditative Rose", Dali

quinta-feira, dezembro 04, 2003

Transformação

"... O espírito amadurece lenta e silenciosamente para a sua nova forma, desintegra fragmento por fragmento o edifício do seu mundo anterior. O desabamento deste mundo é indicado apenas por sentimentos esporádicos; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido, são os sinais anunciadores de alguma coisa diferente que está em marcha."
Hegel, "La Phenomenologie de L'Esprit"


"Transformation", Robert Pasternak

quarta-feira, dezembro 03, 2003

Numa perspectiva diferente

Foi numa perspectiva diferente... mas eu continuava a sentir-te... junto de mim, afagando a minha alma que doía, ... doía mais do que tivera sido concebida para suportar ... Doía em mim, o que já não doía em ti... O teu corpo inerte sobre os lençóis brancos era uma visão estranha, aterrorizadora, sufocante, mas simultaneamente tranquilizante. Os olhos cerrados, a respiração inexistente, os braços estendidos ao longo de um corpo que já não te pertence ... Chorei, gritei, não pude aceitar o inevitável.
Entrei de mansinho e lancei um olhar demorado ao que tiveras sido, aquele corpo sofrido... parecias adormecido ... serena e tranquilamente adormecido, dormindo o sono de uma criança que ainda não sabe o que é o Mundo... As lágrimas pararam de escorrer pelo rosto, aproximei-me devagar e silenciosamente até chegar a ti. Procurei um teu olhar que já não existia... segurei a tua mão: estava fria... tão fria... a mão que outrora aquecera a minha, que me protegera e que tantas vezes deslizou pelo meu cabelo para me confortar, não mais deslizará, não mais a sentirei em mim... nunca mais.
Doeu... doeu muito. Esse instante doeu como nunca tivera doído antes ... punhal cravado e dilacerante, atingindo um limite que assustadoramente era ultrapassado e desaparecia, como se não tivesse importância, como se a dor que me matava aos poucos brincasse comigo, testando todo o seu poder, pondo à prova toda a minha capacidade de me encontrar, de te encontrar, de não resistir, de ceder e partir junto contigo.
Os olhos deixaram, então, brotar lágrimas em fio, um rio com nascente e sem lugar para desaguar ... expressão insuficiente da falta súbita que me fazes, do vazio repentino que passava agora a existir.
Subitamente, chamo-te, balbuciando algo imperceptível... não respondes... ouves-me? Não me ouves. Responde, por favor... Mas não... os teus ouvidos continuam surdos, a tua boca muda, os teus olhos permanecem cegos, sem saber como naquele momento precisaria do teu olhar. Do teu olhar, da tua voz, do teu calor, da tua sempre presença meiga e calma, mesmo quando sofreste... quando não me dizias que sofrias só para não me fazer sofrer. Não quero ficar sem ti, quero esconder-me, ir contigo, trazer-te de volta de onde não podes voltar mais, dizer-te tudo o que não disse, dar-te mais um abraço, mais um beijo... nem que fosse... um "adeus". Foste-te embora sem avisar, sem perguntares se podias, sem te despedires... Onde estás? - oiço gritos lancinantes dentro de mim que insistem em me mergulhar cada vez mais numa espécie de túnel negro sem saída e sem caminho de volta, não me deixam ver-te, tocar-te, sentir-te mais uma vez, que me afastam de ti, que me sufocam. Está tudo turvo... escuro... demasiado... Não sei... procuro-te, mais uma vez... persistentemente... ansiosamente... mas não te vejo... por mais desesperadamente. A escuridão envolve-me como se um manto de veludo negro me levasse.
Mas... agora... sim... sinto-te. Gradualmente, sinto-te em mim. Olhando mais uma vez para o teu corpo, apercebo-me, num repente, que já ali não estás, a tua alma não anima mais o teu corpo... e este torna-se meramente matéria... Mas..., sinto-te em mim, à minha volta, nos meus olhos, nas minha mãos. Foges-me e soltas pequenas gargalhadas de criança. A tua essência, a tua alma, sorri para mim ... agora sem sinal de sofrimento, sem lágrimas, sem aquele olhar triste e sofrido de há tanto tempo e agora, sim, sei que onde quer que estejas, sei que estás bem, que estás comigo, e que eu estarei sempre contigo. Vejo-te como sempre foste, como sempre serás para mim, como te guardarei para sempre dentro de mim. Como para sempre te amarei... para sempre... Numa outra perspectiva, ... mas sabes que para sempre.




segunda-feira, dezembro 01, 2003

Chamava-lhe amor

Existe um dado biológico segundo o qual quanto mais diferente geneticamente for o homem da mulher, maior a probabilidade do filho de ambos ser também diferente, gerando uma maior solidez da placenta que impede que as células maternas invadam o espaço do bebé e provoquem o aborto.
E assim me recordo da história desta mulher, e das células que atravessaram a placenta. A história desta mulher, Moria de nome, em redor da qual o mundo girava. Tinha tudo, mas não tinha nada. De tanto ter, nunca estava satisfeita. Se a sua vida fosse uma manta, teria um grande buraco no centro. Por onde tudo caía, por onde tudo resvalava. Onde nada ficava. E assim a sua vida passava-se, sedenta de algo que a preenchesse, ávida de sempre mais alguma coisa que, por muito que fosse, nunca era suficiente.
Levava uma vida triste e dolente, sem ligar ao lesto tempo que corria, passando por ela, deixando-a para trás, sem que com isso se importasse. E pedia mais, e mais... e mais. Sempre mais. Sempre de menos.

Insatisfeita Moria, chegou o dia em que um raio de sol lhe bateu à porta. Soubera nessa mesma manhã que um novo ser crescia dentro dela. Sentia-se finalmente preenchida, havia algo por que viver. Riu, dançou, pulou, até ficar exausta. No final, deitou-se nas almofadas espalhadas pelo soalho, acariciando o seu ventre, raíz de vida.

Dentro dela algo de diferente se passava. Sensação de bem estar e conforto. Era como nadar, seguro e morno, dentro da barriga da mãe. Harmonia e perfeição.

Cedo a contínua insatisfação de Moria se fez sentir, e a sensação de preenchimento se esfumara. e era aquele novo ser que gerava dentro dela o culpado. De facto, irada, sentia que não era suficientemente bom, suficientemente grande para que se sentisse bem. Sentia-se castigada pelos pontapés do bebé em crescimento. Agredida mesmo. os pensamentos sucediam-se. Tudo faria para voltar a ter aquela sensação de harmonia. E uma longa sequência de tentativas para alimentar um saco sem fundo, se sucedeu.

Por esta altura, sentimentos ambivalentes tomavam conta deste bebé. Sentindo-se bem no conforto do útero, tinha por outro lado súbitas necessidades de se separar, de ser diferente. Queria nascer.

No entanto, Moria não queria que ele nascesse, queria que permanecesse para sempre dentro dela. Não podia agora ser confrontada com o seu imenso buraco narcísico. Dizia em voz alta às pessoas que aquele filho seria para sempre devoto à sua mãe, poria as necessidades à frente das suas próprias. Seria como ela, pensaria como ela. Sob pena de não ter o seu amor. Chamava-lhe amor.

Dentro da barriga havia uma estranha sensação de peso. O peso de toda uma vida, sem sequer a ter vivido. O peso das culpas que não eram suas. O peso da responsabilidade e do medo que sentia sem saber porquê. O peso das lágrimas que sobre o ventre vivo desmaiavam.
Um dia apercebeu-se de uma pressão sobre a placenta. Contrato por assinar que invadia o seu espaço. Que sem querer assinava com o próprio sangue. O sangue derramado de promessas que nunca fizera e o compremetiam para sempre. Não mais aguentava. O espaço era demasiado pequeno, não conseguia mexer-se, sufocava. Sofria. Doía.

Apercebendo-se da perturbação iminente de Moria, as pessoas à volta tentaram trazê-la à Razão. Ela mais se isolou, fugiu de quem queria à força expô-la às suas maiores fragilidades. Não aguentava ver as suas fraquezas expostas depois de tanto ter dado, de tão bem ter alimentado aquele pedaço de carne e que já mal tapava o poço que era a sua vida... Chamava-lhe amor.

Em último desespero, deitou-se na cama, enrolou-se em posição fetal, ela própria desejava voltar ao útero materno. Voltar. Dormir. Ou rasgá-lo.
Chorando, pensava que aquela criança teria de fazer como ela, pensar como ela, viver como ela. Senão... não poderia existir. Nem ela nem a criança. Chamava-lhe amor...

O bebé sufocava, fazendo força para sair.
Não podia sair. Moria gritava, enfurecida, cega por aquilo a que chamava amor. Aquele bebé não podia nascer, não poderia ser igual a ela, como diziam as pessoas.

De súbito, o olhar marejado de lágrimas, a fúria no seu olhar enraivecido, o rosto da loucura. Curvada sobre a própria barriga, sobre o seu ventre de morte, cambaleou até à cozinha. Abriu a gaveta, de onde tirou, triunfante e dolorosamente uma faca.

Um sentimento de alívio invadiu aquele bebé, que viu finalmente as células da mãe invadirem a placenta, num movimento fatal.
Com um grito lancinante, Moria cravara, lenta e dolorosamente, a lâmina no ventre que se abria, dilacerado sobre o chão branco da cozinha.