sexta-feira, janeiro 30, 2004

Fragmentos REM (VII)
Eterno Retorno

A manhã sacode-me para fora do sonho, estremecida.

Momentos antes vivera-se o grande dilema:
Os pais estão perto dela e ajudam-na na sua decisão. Numa sala de hospital, está preparada para a grande operação. Soubera que, por razões a decifrar, dificilmente sobreviveria se não a fizésse. A única maneira de ser salva seria esta intervenção que a devolveria ao início dos inícios - o retorno ao colo da mãe. Uma intervenção clínica tornaria o seu tamanho adequado a passar nove meses no útero materno, permitindo-se nascer outra vez.

Sente-se um súbito nervosismo no ar. Há uma hesitação presente. A angústia. Tem de saber o que acontece depois...
Depois? Depois, dizem os médicos, após o nascimento não se lembrará de nada. Assim como todas as pessoas que nascem não se recordam da sua vida anterior.

Era um pouco como a morte, pensou para si, sentindo um peso maior no peito. Já em lágrimas, pediu aos pais que a relembrassem quando nascesse. Contudo, rapidamente concluíu que esta situação, mesmo contada pelos pais quando tivésse idade para compreender, apareceria aos seus olhos como um facto disparatado, absolutamente inverosímil. E ela tinha que saber. Ela tinha que se lembrar.

A mãe, já de bata, preparava-se para a receber de novo. Uma dádiva que a poucos seria concedida.
No entanto, a angústia cresceu a limites desmesurados quando compreendeu, enfim, que, para além da hipótese ainda que remota de não conseguir nascer, e morrer no processo, nunca seria a mesma pessoa. De facto, seria criada de modo diferente, num espaço diferente, num tempo diferente. Nunca seria ela própria. E pior: nunca poderia recordar como fora. Contudo... quereria fazê-lo?
A dúvida. A incerteza. A ambivalência. Nascer ou morrer, ficar ou partir. Arriscar?
A verdade é que este renascimento, este agradável recolher ao morno colo materno, lhe parecia, ao mesmo tempo, uma morte.

Desperto onde as lágrimas não chegam.


"Woman Reborn", Kay Ekwall

quinta-feira, janeiro 29, 2004

"Porque se Escreve

Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável, em que, exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.(...)
Se há um falar -, porquê o escrever? (...)Pela palavra tornamo-nos livres, livres do momento, da circunstância assediante e instantânea(...). É uma contínua vitória que, por fim, se converte em derrota.
E nessa derrota, derrota íntima, humana, não de um homem particular, mas do ser humano, nasce a exigência de escrever. Escreve-se para reconquistar a derrota sofrida sempre que falámos longamente.
[...]"


"A Metáfora do Coração ( e outros escritos)", María Zambrano

Roubado

Avanças para mim com uma expressão incoerente. O olhar cheio de amor, na mão um machado.
A exressão diz-me uma coisa. O machado diz-me outra. Nesta confusa incompatibilidade, a ambivalência toma conta de mim. Dominada, fico imóvel à espera do destino.

Levantas pesdamante o braço, com violência. Estupefacta, não posso acreditar que chegou a minha hora.

Num só gesto esventras-me o peito e arrancas-me visceralmente o coração. Não tem a forma estereotipada com que nos habituámos a representá-lo. O grande orgão de fogo é vermelho escuro e é trespassado por veias e artérias azuladas.

As lágrimas escapam-me ao ver o buraco no meu peito. Ao ver escorrer o meu sangue em ti.

Contudo, não morro. Pelo contrário, estou mais viva. Segundo atropelado por segundo.
Para meu espanto, o meu coração pulsa nas tuas mãos com mais força. Agora é teu.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

Sentes?

"Não sentes o cheiro do fim do dia...?" - perguntavas, com o olhar de quem só agora se apercebe. Dizias que o fim do dia tinha um cheiro diferente. Que te fazia sentir mais desperto. Mais atento e entusiasta.
Tinha dificuldade em compreender o teu entusiasmo ébrio. E dava por mim fechada sobre mim mesma, numa hibernação fora de tempo. O difícil era perceber.
Falavas. Falavas. Falavas mais ainda. E querias ficar nas palavras. Morar nelas. Mordê-las às trincas, e deixando sempre o melhor para o fim. Finalizavas sempre grandiosamente...
De súbito, olhavas para mim, na minha incompreensão, no desespero de quem fala uma língua sem língua. E dizias-me que não tinha de compreender, que não tinha de perceber. Há palavras que não são para perceber. São para sentir. Era o que me dizias. Olhava para ti mais uma vez e de, facto as palavras que dizias surgiam desconexas. Faziam-me lembrar carrinhos de choque desgovernados.
Tentava racionalizar toda aquela informação para mim incoerente. Carregava a angústia e a dor no peito apertado de quem quer saber sempre mais.
Afinal, o difícil era sentir... Pediste-me que fechasse os olhos e sentisse apenas a entoação das palavras.
Curioso, como nessa altura pude sentir o cheiro do fim do dia.


"Kiss", G. Klimt

terça-feira, janeiro 27, 2004

Partilhar... (V)

...vozes daqui e dali...

"A beleza é a roupa com que tu me vestes.
E há sempre uma medida para todas as medidas"


(citação na rádio de artigo sobre associação para crianças com Trissomia XXI, revista "Umbigo")
Dúvida

Semicerro os olhos no escuro,
infinito que me prende.
Carrego no colo o peso do tempo
e das roldanas imperturbáveis.
Uma voz sussura baixinho o meu nome
Misto de doçura e terror...

Morro ou sonho?



segunda-feira, janeiro 26, 2004

Sem Sentido

Na cabeça o peso do mundo,
no peito, o espasmo da distância.
Pulsa a força da indiferença
do quem passa, de negro
e arrasta a foice.

Invisibilidade
Irreversibilidade
Incompreensível fragilidade.
Harmonia e imperfeição,
acabar o infinito.

Momentos fugitivos
Sem sentido...
Sem sentido...

Aproximo-me um pouco mais
e vejo:
o menino com a bola de sabão.
A vida... o mundo... e o menino com a bola de sabão.
E de repente, tudo faz um caótico sentido.


"Soap Bubble", Federico Mena-Quintero

sábado, janeiro 24, 2004

A Identidade d'Ela

De uma forma simplista, poderia dizer-se que a Identidade é aquilo que permite a cada um reconhecer-se como si próprio, o constructo mais ou menos permanente que vai sendo construído ao longo da vida. Pressupõe continuidade. E pressupõe memória.

Mas Ela achava que Identidade era prisão. E, por isso, desde cedo recusou-se a ter um nome, lutando arduamente contra todas as alcunhas que lhe foram sendo atribuídas ao longo da vida, à falta de um que quisésse chamar seu. Este existira e, por muito que negasse, ainda olhava em redor, a medo, quando alguém pronunciava o nome que seus pais lhe haviam dado e que tinha recusado fazia já tantos anos...

Tinha uma profissão que lhe permitia sobreviver, mas negava a todo o custo toda e qualquer atribuição que lhe pudésse ser feita a partir do que fazia.
Tinha coisas que gostava de fazer, mas não as fazia. Pessoas de quem gostava, mas com quem nunca estava e a quem nunca dissera que amava. Sexo que desejava, mas que chegou a ter a tentação de mutilar. De facto, não queria mesmo era amar. Não gostar, não sentir, sem dúvida facilitar-lhe-ía em muito a sua tarefa - a de ser ninguém com morada em parte nenhuma
Negava com tanta força que chegava a querer desaparecer, para evitar qualquer estereótipo que pudesse advir do simples acto de existir.

Mas o que Ela não sabia é que, não querendo fazer parte de nada, fazia parte de alguma coisa. Não querendo escolher, acabava por fazê-lo - a não escolha também é uma escolha.

O que Ela não sabia é que, tão sedenta de fugir a algo permanente que a identificasse, acabava por construir, pouco e pouco, alguma coisa de estável, de coerente e de contínuo - o facto de não querer escolher, a vontade de ser sempre outra, o medo do julgamento dos outros, o medo dos estereótipos, o medo da limitação que a Identidade podia trazer, afinal uma prisão para ela.

Não sabia que, não querendo modelos e estereótipos, ela própria era um. Não se querendo limitar, ela própria era uma prisão. Não sabia que ao tentar viver... morria.

A memória revelava-se, não no facto lembrado, mas em tudo o que fazia, nas palavras que balbuciava, nas relações que estabelecia. No ar que respirava.
A memória morava na pele. E Ela não sabia.
Sobretudo, não sabia que "Ela" já era um nome.


"Egomania", Viktor Koen
Fragmentos REM (VI)

Noite passada entre lençóis quentes de algodão. Lembro-me de acordar a sorrir. Sorriso tão quente como a cama. Um sorriso tão contente de si, que gostei de o sentir durante uns instantes, mesmo sem conseguir saber porque sorria. Será que tinha de pensar nisso? Será que tinha de perceber porquê?...
Se tinha, não percebi. Nem quis. Limitei-me a ficar assim, naquele misto de prazer e alegria contida em mim. Calor e conforto. Almofadas de murmúrios. Pequenas gargalhadas internas que transformaram o meu corpo num grande sorriso de olhos fechados.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Demorar-me

Não posso demorar-me. Tudo parece mais urgente que a vida.
E só por sentir essa pressão... por ser do contra, ou outra coisa qualquer... apetece-me demorar-me nas palavras.
Começar no início. Acabar no fim. Mas de um ao outro, uma estranha, sinuosa, aberrante lentidão de quem adora ir ficando.
Viajar em cada letra, acariciar cada traço de tinta... amar os intervalos entre as palavras... ironizar nas entrelinhas.
Inteira me derramo em cima da frase. Final da frase e tropeço num ponto negro e minúsculo. Quase caio no salto sem rede do parágrafo. Mas logo ganho a segurança volúvel de nova sequência. Porque hoje não escrevo. Sinto. Sinto demais e, dengosa, fico para sempre a suspirar nas reticências.
Hoje posso escrever o Paraíso.

...

quinta-feira, janeiro 22, 2004

Antes de Partir

Atravesso o dia, mergulho em cada hora
Agora sei que tudo já foi...
Quero ficar neste momento singular
Quero partir.

Mas tu não me deixas,
Inquietude.

Mas tu não me soltas,
Desasossego.

Plácida, canto o nome de Morfeu,
Que não vem.
Quero que me enlaces com o manto negro da noite.

Mas não vens,
e fico nesta tormenta.

Mas não chegas,
e deixas-me nesta luta sem memória.

Arranca-me do meu corpo,
Deixa-me partir.
Leva-me num abraço.
Enlaça-me,
Contém-me.

Mas antes,
deixa-me serena.

Deixa-me escrever o Inferno dentro de mim.


"Morpheus", Zdzislaw Beksinski

terça-feira, janeiro 20, 2004

Dança lenta

Gosto de ser a sombra que me lembra que, apesar de noite, ainda há luz por apagar.
A sombra de mim, recolhida no silêncio e na penumbra das horas que não contam.
Permanente doce ficar,
Dança lenta que não consome...
Dança lenta, roubada ao olhar.
Tumulto de espírito fugidio
No encontro da luz com a pele.

A sombra que me beija,
A luz que me engole.
Dança lenta...
Dança lenta...


"Dance", Alun Ward
Partilhar... (IV)

... uma polémica:

" Não me oponho ao amor mas oponho-me à fidelidade. Se o amor se baseia na fidelidade, eu não escolho o amor."

por Muzimei
(Li Li, jornalista autora do blog "Cartas de Amor Perdidas" alojado em blogcn.com, já encerrado)

"Aos 25 anos, Li Li chocou a China. Criou um blogue onde contava as suas aventuras sexuais, usando nomes verdadeiros. O site foi bisbilhotado por 10 milhões de visitantes. Ela quis passar o diário a livro mas o Governo não deixou. Mesmo assim, há quem fale dela como o símbolo da revolução sexual na China."

in Pública, nº 399, 18 de janeiro de 2004

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Fragmentos REM (V)

Um cão com asas percorre a sala em voo picado. Preto e branco, lembra-me um cavalo alado, pela elegância do trajecto. Procura o saco de milho que guardo, receosa, entre as duas mãos. Tenta pousar-me nas mãos. Tenho medo, recolho-me. Este cão pássaro não me larga. Não entendo se quer carinho, se quer vingança. Fujo para a casa de banho, onde tudo o que é vómito abandona a minha mente em convulsivos soluços dos esgotos.

domingo, janeiro 18, 2004

O Encontro

Difério e Laboria encontram-se casualmente. Observam-se mutuamente. Difério é observado pelas sua aparência um pouco diferente. Laboria, pelo vazio que era possível perceber de fora. O vazio branco por preencher.
O tempo pára. A permuta é proposta. É possível trocar.
Depois de longamente se olharem, prescrutarem, observarem, tudo sem uma só palavra trocada... apesar do momento em que se sentiram expostos, ambos não quiseram trocar.
Laboria não aguentaria viver a vida de Difério, a diferença que poderia fazer com se afastassem dela.
Difério preferiu continuar diferente, mas tendo-se a si próprio e vivendo a sua própria vida, que soubera colorir.


"Wonders of Nature", Magritte

sábado, janeiro 17, 2004

Para Não Viver a Sua

Laboria, rapariga de tez morena e longos cabelos pretos. Não possuía nada a que pudesse chamar seu. Nem a sua própria vida... vivida por quem amava.
Seu coração batia na mãe. Sua mente pensava-a o pai. Seus pulmões respirava-os o irmão. Porquê, nem o sabia bem...
A memória ficava, mas queria esquecer. Como se a vida fosse outra, e não pertencesse ao seu início. Persistência dos traços mnésicos, apenas afastados por um "não querer".

Laboria não falava as suas palavras. Tentava balbuciar... mas a voz saía do corpo dos seus familiares. Quando sorria, ninguém via. Quando chorava, todos fingiam não ver. Tingidos de negra vergonha de nunca a deixarem ser. E ela deixava... e nem queria saber a razão desse deixar. Desse lânguido deixar.
Deixara de viver a sua vida ao tentar dar vida aos outros. Presunçosamente assumindo que não sabiam vivê-la. Encheu-os de dicas, de dizer como fazer. Contudo, constatando a dificuldade em fazer cumprir nos outros o que talvez não conseguira em si, passou a fazer por eles.
Viciados no trabalho, esqueciam o que de mais íntimo tinham, já que Laboria vivia por eles a sua vida pessoal. E trabalhavam . Trabalhavam. E Trabalhavam.
Cedo deixaram de sair, desenhando um curioso ciclo que variava entre a casa e o trabalho. Deixaram de dormir. Deixaram de comer. Laboria vivia por eles. Foi então que Laboria começou a ter os amigos deles, a manter as relações sociais dos outros, iniciou uma relação amorosa com a namorada do irmão. Dormia e comia por eles. Três pratos de comida por dia. Três camas onde dormir por noite... Sexo promíscuo, que chegava a ser incestuoso.
O hábito, o comodismo da família, a necessidade de Laboria, fizeram o resto. A implementação de um paradigma. Que assim é porque sempre assim foi.

Foi quando, avançado este processo, Laboria deixara de viver. Criticava com veemência o vício do trabalho que, a seu ver, consumia a família. Sem perceber que, trago a trago, era ela quem era consumida. Pedaço a pedaço. Até deixar de existir.
Não tardaram as recriminações... a vitimização... a auto-flagelação. A auto-eleição como mártir que sangra da alma cheia, que transborda.
Porque lhe pediam tanto? Questionava-se.

Um dia, ouvindo mais uma vez as suas lamentações, pais e irmão saíram inesperada e repentinamente do seu torpor habitual, ripostando - "Quem te pediu?" E Laboria ouviu a resposta gritante dentro de si. Sabia que culpava os outros pelas suas próprias necessidades, que precisava de ser precisa. Não era ela, afinal, tão diferente de todos os outros, vivendo as vidas alheias. Afinal talvez fosse ela que não sabia viver a sua. Trabalhando viciadamente as emoções dos outros, só para não perceber as suas.

A ferida foi escavada longe demais. Fundo demais. Até ao ponto sem retorno. Num tempo sem tempo, derramou lágrimas negras de tinta que reescreveu a sua vida na memória.

De repente, tornou-se um nada branco. Sem princípio, nem fim. Sem ponto de referência.

Nada melhor que um espaço em branco para começar.


"She Is Everywhere"Nan Deressa

sexta-feira, janeiro 16, 2004

kafkiano é...

... quando o pingo de chuva raia,
e o sol chove lá fora.

... quando me procuro dentro de mim,
mas só te encontro a ti.

... quando quero construir uma ponte e as margens não deixam.
... quando sou uma margem e deixo,

...quando se está sozinho entre a multidão...
... se alguém vem ter comigo nessa solidão.

... quando a onda do mar é rasto de cometa,
e as conchas cintilam porque afinal são estrelas.

...quando os gritos saem como pedras
que caem em charcos de silêncio.

... quando o sal das tuas lágrimas
me torna irremediavelmente doce.

... ou ainda se me vejo ao espelho,
mas não existo inteira,

... quando me deixo ficar,
quando afinal quero é ir, não deixar.

...quando a tinta brota das veias
e o aparo rabisca palavras de sangue.

... quando sei que nada é real,
mas não acordo afinal.

Kafkiano é questão, pergunta, interrogação.
É ponto de exclamação, reticência, por vezes talvez ilusão.

Kafkiano é o que se quiser, aqui, ali e mais além
é omnipresença, fusão, é nunca ficar aquém.

É sonho dentro do sonho,
é possibilidade aberta

É escrever uma palavra. Uma outra. Outra ainda.
Esta rima... a outra não.
Não precisa. Vai escrevendo
sem sentido, sem coerência,
na unidade contínua do branco e da entrega.

Por isso sempre aqui volto.
Por isso aqui vou ficando
São raízes que me deixam ir vendo para além do espelho,
é espaço momento, onde vou encontrando cada uma de mim
é calendário sem tempo.
Folhas de serenidade, branco preenchido devagar, entendimento comum.
Partilha para dentro e para fora.
E vou ficando.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

A Opção

...o Homem vivia a sua vida terrena e pacífica.
Calma e serena. Tranquilo, não muito dado ao pensamento.
Um dia a luz foi-se embora, agora tinha de arrastar um pouco mais de peso atrás de si. Mais um pouco. Sempre mais um pouco. Em busca de um limite, continuava a arriscar. Certa altura, sem muito mais força para agir e apenas agir, lembrou-se de pensar. E pensou que melhor seria viver arriscando, do que morrer desconhecendo o limite. Fim do planalto verde. Início do precipício vermelhante.
Achou-se digno de escolha. Podia viver ou morrer. Podia optar por não viver. Podia optar por morrer.
Mas já estava condenado. Como os outros homens que esperavam no corredor da morte, também ele esperava nesta corredor gigante global. Foi então que reparou que a opção não era sua.
Desde que nascera, estava condenado a morrer.


"Life and Death", G. Klimt

quarta-feira, janeiro 14, 2004

Outra Vez

No momento em que desço bem de cima, percorro um túnel infindável de luz branca encadeante. Sou um turbilhão de quente, sou onda devastante.
Não sei para onde desço, mas sinto-me regressar.
Num regresso diminuto e repentino, como se o que ficasse para trás, tivesse sido um sonho meramente efémero, tão somente fugaz.
Regresso à vida amarelada. Amarelo sem sentido. Castanho, ao entardecer.
Vejo-me, assim, neste padrão, como se a vida fosse ciclo (e não é?), onde não mando, e quebrá-lo tem um preço.
Desencontrada, fragmentada em duas de mim, giramos em redor de uma esfera, sempre no lado oposto ao da outra metade, sem nunca nos podermos ver, sem nunca nos podermos encontrar. Em oito horizontal, o número sem princípio onde começar, e sem fim para acabar.
E é assim que me enlouqueço, num regresso sem passado, futuro não imaginado.
Pó de estrelas.
Um dia poderei cansar-me e despir as minhas asas. Esse dia ainda não chegou.


Goddess Projects

terça-feira, janeiro 13, 2004

A Propósito da Diferença...

Mãe Diferente

Sou diferente, não porque tenha algum problema e tenhas de cuidar de mim,
mas porque sou teu filho, sou teu espelho,
Mãe toxicodependente, e sou eu que tenho de cuidar de ti...

Mãe Medo...
Quero alcançar teu olhar fugidio
Atrás das cortinas de tédio.

Mãe Mágoa...
Quem és?..., que conhecer-te não consigo.



" Minha mãe que não tenho
inventa-me primeiro:
Constrói a casa
a lenha e um jardim
E deixa que o teu fumo
que o teu cheiro te façam conceber dentro de mim."

Ary dos Santos, in A Mãe na Literatura Portuguesa. Maria Teresa Horta, 1999.



"Dead Mother", Edvard Munch

domingo, janeiro 11, 2004

Desideal Mundo Igual

Difério era um menino que, como tantos outros, num dia são bebés, no outro já andam e querem explorar para além do seu próprio quarto... Tudo normal, numa infância normal. Feliz. Sempre feliz.
Desde cedo todos o rodearam de todos os carinhos, todo o afecto e ternura. Quase todas as vontades lhe eram feitas, já que também não pedia muito.

Era o pequeno "Di", como lhe chamavam. Di passeava-se por entre todos, com aquele sorriso tão característico, tão rasgado, que mal lhe cabia na face rosada, de tanto rir, de tanto gozo e prazer que sentia por ser assim amado e acarinhado. Como se o sol morasse na sua barriga e estendesse raios que irradiavam por todo o seu corpo e chegasse aos que o rodeavam.
Era uma criança feliz. Mesmo na escola, todos gostavam dele. Uma escola igual, para meninos iguais.

Havia apenas um pequeno pormenor que não conseguia perceber, que era o facto de os seus pais e familiares pouco o levarem a sair de casa, pouco o deixarem aceder ao mundo exterior. Mesmo quando ía para a escola, nunca se deslocava a pé, era sempre o pai ou a mãe que o faziam. Apressados.

Singelo pormenor. Mero detalhe. Tão ignorável, que Difério nunca deixou que a sua mente, ainda tão tenra, se ocupasse de tal ideia. O mundo era cor pastel, como nos desenhos que criava no mundo fantástico de fantasia e irrealidade que criava nos seus sonhos. Na verdade, não havia grande diferença entre o seus sonhos e o que era real, de tal maneira era cor de rosa o mundo que para ele tivera sido criado.

Mas o tempo passou. As folhas do calendário foram rasgadas. Irretornavelmente. E as questões começaram a sua escalada. Inevitavelmente.
Vendo a aflição dos pais que cada vez mais tinham dificuldade em arranjar uma desculpa para o manter em casa, certo dia encontrou um buraco na malha e por ele fugiu.

Passou um dia fora de casa. E num só dia pode conhecer-se a si e ao mundo. Tudo era diferente. Nada de cor de rosa. Nada de carinho, nem de afecto. Só uma amálgama cinzenta de caras e de corpos, de ora em ora, manchada de vermelho de sangue. Caras e corpos que, afinal, não eram nem iguais à dele, nem às dos seus colegas da escola. Caras e corpos que o olharam e ignoraram. "Anormal", "mongolóide", "atrasado" - foram as palavras que mais vezes lhe abriram o peito ensanguentado. Sentiu a lâmina fria da diferença trespassar o seu corpo diferente.

Ao retornar a casa, o seu rosto espelhava o espasmo da dor que o consumia, e a frieza e amargura do engano desiludido. Não sabendo o que lhe dizer, a mãe não sabia que pensar - na ânsia de o fazer igual, fazia-o agora ainda mais diferente num mundo que só poderia vomitar aquela criança, porque nunca poderia assimilá-la. Na melhor das intenções acabara por torná-lo vítima do contraste entre o mundo que criara para o filho e o mundo em que o mesmo teria de viver...

O dia passou, encerrado sobre si próprio, no seu quarto.
À noitinha, aproximou-se de mansinho da mãe, num refúgio inconsolável.
Foi então que fez a pergunta: "Mãe, a diferença vem de dentro ou de fora?..." A mãe observou-o demoradamente. Quis falar, mas o desejo da palavra ficou embaraçado algures dentro de si. E respondeu com uma lágrima de silêncio.

sábado, janeiro 10, 2004

"Caleidoscópio

Não fales... Aconteces demasiado... Tenho pena de te estar vendo... Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa... A vida é isto.(...)"

Bernardo Soares, O Livro do Desassossego




Silence, Lunaea Weatherstone

quinta-feira, janeiro 08, 2004

Uma Vez Invasão... Para Sempre Fusão

Que fazer?... Já não te quero em mim,
Na minha pele, no meu sangue, no meu remorso.
Anular esta fusão sem retorno que me atormenta...
Mas... sou terra molhada...
E tu... as flores que de mim florescerão na Primavera.

terça-feira, janeiro 06, 2004

Ainda Fusão - Invasão

Contudo... passada a volupiosa cólera cor escarlate,
do mesmo tom tingi o lençol branco onde te bebia, nua, despida do teu sangue.
Vivo nas tuas vísceras, sem mais demora, sem mais arrasto...
Não tenho outra opção senão tornar-me anjo.

Blood Angel, JamesMyrold

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Perguntas sem Resposta (IV)

Primeira Noite

"... o céu estava tão estrelado, tão límpido que, olhando para ele, nos podia escapar a pergunta: será possível viver sob este céu gente zangada e injusta? Jovem é também esta pergunta, querido leitor, muito jovem, mas oxalá Deus a mande mais vezes à tua alma!..."

F. Dostoiévski, Noites Brancas
Fusão - Invasão

Quem me diz que não és minha? Quem?
Quero-te aqui. Agora. E vais deixar com a candura de quem não quer.
Encho o meu cálice do teu sangue... devagar. Bebo até ao fim... mais devagar ainda.
Como vais distinguir agora o meu sangue do teu...?...


Arcobaleno, Studio Progetto

domingo, janeiro 04, 2004

A Persistência do Agora

Não vivia. Recordava.
Recordava apenas... como se esta sua viagem fosse composta por um manto de retalhos que estabeleciam conexões lógicas... e outras vezes se apresentavam desprovidas de todo o sentido, quando de tempos mais longínquos se tratava. Era quase como viver no tempo onírico. O privilégio de viver o tempo fora do tempo. O sonho no real. Mas sem condensações ou elaborações típicas de quem sonha.
Era um sonho, demasiado real para parecer sonhado, demasiado sonho para ser vivido.
Vivia nesta intemporalidade permanente.

Não vivia. Recordava.
Neste espaço sem horas mantinha a ilusão de matar o tempo e reinventar a ampulheta. Aquela em que a areia não escorre e não enche a vida de surpresas. Segurança esta, a de tornar a areia uma sequência cíclica de formas que não muda nunca. Que se sucede sem cessar. Sequência sempre igual do inconsciente que não deixa emergir e transformar.
Capricho, extravagância ou rígida defesa?... Um pouco de cada um, talvez.

Não vivia. Recordava.
Todo o momento mais ínfimo, toda a alegria... mas também toda a dor mais sentida, todo o espasmo doído. Tudo o que era infinitamente sofrido sentia repetido, pois mais fácil era do que arriscar o salto.
O salto foi forçado no que dia em que, ironicamente, foi obrigado a uma intervenção cirúrgica que lhe tirou parte do cérebro. Precisamente daquela parte minúscula que precisava para viver, a que lhe garantia o viver o sonho do reiterar eterno. Perdera a memória, de curto e longo prazo.
Não vivia. Não recordava.
Como empurrão na beira do precipício. Porque se aproximara tanto? Que fazer? Como acordar, como viver...? A areia começara a escorrer devagar, apesar de a tentar reter nas mãos em concha, sofregamente. Mas escorria. E doía escorrer...
E escorria... mas agora areia sempre diferente, forma sempre diferente por cima do tempo que não era nunca o mesmo... a experiência de sentir, de sorrir, de doer ou de sofrer passou a ser experiência sempre nova. Nunca gostara de surpresas e agora que alternativa senão viver na surpresa...? Na surpresa que invade o tempo e as formas. Constantemente. Permanentemente.
Ciclo a que já não pode chamar ciclo. Beijo sempre beijado na sua forma primitiva. Sede sempre saciada, fome jamais sentida.
Das necessidades não se recordava, não memorizava a alegria nem tão pouco a dor. Mas assim mais as vivia. Nunca as vivera e sentira com tamanha intensidade. Como se fora sempra a primeira vez. Afinal nada havia temer. Só que agora já não o sabia. Não se recorda de que antes... Não vivia. Recordava. Agora não sabe que venceu o capricho... extravagância... ou rígida defesa...

A persistência do Agora... Valeria a pena viver sem memória...? Nem nisso conseguia pensar pois nao se recordava do que era lembrar.
Conhecia todos os dia os mesmos amigos, não podia viver a amizade ou o amor. O coração estava sempre na mesma iminência de pulsar, sem dar nunca a primeira batida. Como se nunca tivera nascido e houvesse lugar nenhum para morrer.

Não recordava. Vivia. E no momento contínuo, sem vida nem morte, morria também.


sexta-feira, janeiro 02, 2004

Pensei que num dia...

Pensei que num dia podia colocar o mundo direito. Virá-lo às avessas. Equilibrá-lo ao contrário.

Pensei que um dia, singelo dia, bastaria para conferir ordem ao turbilhão premente.

Pensei que bastaria para encontrar agulhas em palheiros. Desejos e esperanças em mundos negros... ou brancos que cegam.

... Que era só estender o braço e chegar ao lado de lá do espelho. Passear com Alice num mundo diferente.

... Que um dia chegaria para tudo conhecer. Fazer parar o tempo antes deste dia fenecer.

Num e só num dia, poder impedir o caos e matar a entropia.

Fazer crescer raízes. Cortá-las. Arrancá-las. Num dia.

Mas o dia passou. E um dia é tão pouco...

Porque afinal tudo é tanto, tudo é demais.

E assim me encontro, entre o demais e o saber a pouco.


"Daphne", Sarah Krank