sábado, fevereiro 28, 2004

Vento Norte

Vou correndo, saltando cada pedra no caminho
Mas os grãos de areia vêm comigo
Emprestando-me cheiro a praia...
Oferecem-me raios de sol,
Pintam-me de verde e azul.
E vem outra vez aquela música
A que me transporta ao grande oceano
Cubro-me de algas e confundo-me com o mar
Vislumbrado ao longe, atrás da neblina
Imaginado e roubado aos sonhos.
Corro, desço a rua cheia de areia,
Chego à praia que é manhã
O sol é irís e as ondas são as lágrimas
indecisas, não sabem se hão-de ser a calma
ou o fervilhar turbulento.
Neste olhar, giro sobre mim mesma
até ter o som dos búzios dentro de mim
e correr, correr junto do som profundo.
Vou agora neste sentido sem sentido,
Há um lugar de onde partir,
Há um lugar onde chegar,
Sussurra baixinho, mas grita por dentro,
o Vento Norte chama por mim.



"North Wind", Eastern Sierra

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Labirintos ou Perguntas sem Resposta (VI)

Embaraça-se entre caminhos e labirintos.
Volta à direita, contorna a rotunda, volta à esquerda.
Caminhos infindos sem lugar onde acabar
A pressa, a pressa.
Sem resistir, volta ao início, perdido.
Encontra alguém, é o seu espelho onde esbarra.
Se tiver mais força, talvez possa partir o seu reflexo.
A pressa, a pressa.
Oportunidades, escolhas, liberdades acorrentadas.
Anda direito sobre terra batida
Será a liberdade de escolher a sua eterna masmorra?
Ai a pressa, a pressa...



"Labirint", Vincze János

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Luz

Há um foco de luz
Incidente
Invasivo e inundante
Encandeada, cego.
Cego e sigo. Dentro de mim.
Não posso seguir fora
Pois não vejo.
Sinto a luz.
E a luz incendeia
Danço nos feixes de luz
Entrecruzados como teias.
Dança por fora
Com as partículas de fogo
Com o que não vejo
E não conheço
Dança ébria
Sonolenta
Anestesiada
Sentir o não sentir.

Porém, a luz suaviza
E deixa ver mais claro.
Vejo que a luz vem do céu
E que és tu
Que me iluminas.



"Ray of Light", Christine Cavana
(Upper Antelope Canyon,Page, Arizona)

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Laço

Sento-me agora, confortável, neste espaço em branco e espero que as palavras fluam.
A espera não é longa, elas surgem devagar, embora desordenadas. A entropia dos sentimentos gera a entropia das palavras. O sentido está lá, mas é incomunicável.
Um pouco como a chuva. Acredito que todas as lágrimas das nuvens antes de choverem fazem um sentido, uma qualquer coerência que só muito de vez em quando vou sentindo. São os momentos, raros, em que espero que a chuva se derrame sobre mim. Na maior parte das vezes, fujo dela - o que são pingos desgovernados, frios e incoerentes...?

Hoje é um desses dias... no entanto, prefiro ouvir a chuva lá fora... e o som de cada uma das gotas de água que cai do céu segreda-me palavras sábias, cada uma faz parte de um puzzle que só estará completo quando deixar de chover. Cada uma tem um significado, um destino, emergindo do delirante caos que é o rio onde se misturam.

Hoje é um desses dias em que me sinto um laço. Um laço de cetim. Diferente de ser um nó. Os nós são mais seguros, mas apertam e, quando demasiado, apertados, podem sufocar. Às vezes precisamos de nós. outras vezes precisamos de laços.

E eu hoje sou um laço de cetim. O laço é suave. O laço abraça. É doce e contém. Mas o laço também é frágil. E às vezes, tenho medo de ser laço, de me poder desmanchar a qualquer momento, a qualquer suave deslizar das suas pontas de cetim brilhante.

A minha história é uma história de laços. Também de nós. Dos laços que se dão em nós. Dos laços que nós damos. Que vamos dando aqui e ali. Ali e aqui. Mas não daqueles vulgares, pelo contrário, todos diferentes. E, assim, quase somos uma rede.

As palavras às vezes fazem sentido. Hoje escrevo-as desordenadamente e, porque me sinto laço, sei que em alguém vão fazer sentido. Porque quando sou laço posso abraçar, sem prender, alargando esse abraço a outros nós que damos laços.



"Enlace Modular - II", Jose Arjonilla

terça-feira, fevereiro 24, 2004

Traços Soltos

A claridade indecisa da manhã confunde-se com os objectos. Todos fazendo parte de uma mesma unidade, dou comigo como parte de um todo.

Completo-me no cavalete velho de madeira que assenta sobre as minhas pernas, enquanto a observo.

Nua, sobre o lençol branco, onde deixa a vergonha, o pudor, deixando-se ser tocada pelo pincel.

Misturo-me com as tintas, com a paleta, com o pequeno frasco negro da tinta chinesa que se deixa equilibrar no banco da madeira de que todos somos feitos.

Ela mistura-se apenas com a alvura do lençol que não a cobre, com os raios de sol que invadem as formas e as torna contraste de luz e sombra.

A obscuridade, o semi-tom, a face da luz...

Está longe, mas fazemos parte uma da outra quando a projecto na folha de papel, mais branca que o lençol.
Primeiro, esbatida com o algodão embebido em carvão, quase a observo através de vidro fosco, ou através da película formada pelo calor do Verão.

Não satisfeita com a teimosa indefinição, torno-a nítida, passando com o pincel chinês em cada um dos contornos do seu corpo.

Sinto-a na tinta que espalho e torno, assim, o momento eternidade.

(E hoje expresso-me também de outro modo. Tomo coragem para deixar mais um pouco de mim, e o resultado de um exercício numa das minhas manhãs de pintura, do ano que passou. Ah, e desta vez foi o desenho que inspirou as palavras. Qualquer dia, há mais!)



Exercício-NúI - 2003, Miss Kafka

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

Perguntas Sem Resposta (V)

Divagava, absorta, perdida nos pensamentos:

... se me fosse possibilitada uma nova vida, com todas as oportunidades desta que vivo e ainda mais, isto é, que pudesse ser em potência, a melhor das minhas vidas possível, será que a viveria de diferente modo..., ou acabaria por ver repetidas as minhas escolhas, sortes e azares...?

sábado, fevereiro 21, 2004

Insano

"Louco! Completamente louco!" - exclamavam as más línguas, mas também as "boas almas" da terra, em surdina, quando o viam passar. Ou melhor, deambular, vaguear. Não só o corpo, mas ele inteiro.
Através do olhar vazio, era possível perceber uma alma que, errante, escolhia como aprendera, qual a melhor maneira de existir. Aquela que provocasse menos sofrimento.
E agora vestia a pele da Loucura. Com ela saltitava pelas ruas, com o cabelo em desalinho, o brilho eufórico nos olhos, a ebriedade contínua dos dias cheio de sol. Chamava a atenção sobre si, é claro. A decência ensina que a vida tem de ser sóbria. Um riso um pouco mais alto, uma expressão um pouco mais tola e infantil, uma maior claridade a exprimir os sentimentos... Cuidado! A Loucura espreita!

"Louco! Completamente louco!" - exclamava a família que, confrontada com as suas próprias fragilidades cíclicas e geracionais, havia encontrado nele a melhor forma de expiar os seus pecados. Que melhor forma senão poder culpar e responsabilizar alguém pelos seus erros, senão alegar a loucura de outrém...? Ele era claro, era honesto de sentimentos, dizia sempre o que sentia, era verdadeiro - que loucura! -, chegava mesmo a chamar a atenção para aquilo que pensava estar errado. E, para isso, usava uma linguagem simples, sem ramificados ocultantes.

"Louco, completamente louco" - ouvia cada vez mais vezes. A início, tem de confessar que gostou. Tinha para ele a atenção que, de outra maneira, falhara a conseguir. Mas as diabruras, a inconsequência, a pouco e pouco, foram deixando de ser apenas as dele. Gradualmente, começou a ter de carregar os erros dos outros, já que as "boas almas" da terra facilmente conseguiam esconder-se atrás daquele que chamavam louco, mas que, afinal de contas, servia demasiado bem para ocultar as suas intrujices. Servia para justificar acções menos próprias e actos indecorosos dos outros, justificava humor e traços de personalidade do irmão, do pai, da mãe - "Não podemos fazer nada..." - diziam, abanando a cabeça, em tom resignado. A resignação à Loucura que dava tanto jeito.

Começou a ser demasiado peso para levar sozinho, mas também ninguém o quis ajudar a levá-lo. Pelo contrário, estranhamente enquanto se sentia cada vez mais pesado, os habitantes da terra sentiam-se cada vez mais leves. Sem sentirem a vergonha de fazer outra pessoa - o louco! - carregar com o seu fardo. O louco carregava muitos fardos. Contudo, apesar do sofrimento, nunca desistiu de si próprio e tomou uma decisão - a de ser verdadeiro até ao fim, apesar de toda o peso que lhe era jogado em cima. Assim, podia dormir em paz. E sabia que até ao fim dos seus dias, iria sempre rir como um louco...

"É insano..." - dizemos nós, perplexos. Shhhhh... falemos baixo. Não nos traiamos a nós próprios. Pois no fundo admiramos este homem. Este homem que é Homem. E ter a coragem de nos livrarmos dessa sim, verdadeira loucura, que é a vida sem brilho nos olhos.



"Madness of Reality", Sabin-Corneliu Buraga

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Voo em V

O uivo do vento
Varre e devasta
O violento vazio,
Vagaroso e volúvel.
Vislumbro a vida
Invertida,
Voluptuosa e
Voraz.
A Volúpia vistosa
Que vagueia
Na vaidade violeta
E volátil.
Vencida pela verdade
Sem volta
Verto o vil veneno
Do ventre.
Volto a inventar-me
Invencível.
Vazia de vez
Voo em V de vitória.



"The V-Flight", in "The Hindu"

Partilhar... (IX)

... esta escuta sugerida por Phileas (e que bem poderia ilustrar o post anterior):



"L'écoute sculpture by Henri de Miller near St.-Eustache", in Paris Pictures

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Fragmentos REM (VIII)

É noite. Está escuro. Uma estranha tempestade me atordoa. Nunca vi nada assim.
Observo do canto negro da minha janela os rasgões de luz que caem sobre as casas
e as electrificam em cadeia. Uma árvore é atingida. Arde pelo fogo do céu.
Acordo electrificada. Continua escuro. A obscuridade do quarto continua a atordoar-me.
Oiço um som longínquo... poderia jurar que oiço o bater do coração ao longe...
debaixo da terra. O vento assobia lá fora acompanhando o ritmo escabroso. É aterrorizador.
Faço das mantas o meu canto protector, penso que estou a dormir. Embalo-me e tento pensar
que é o mundo a respirar...
Correntes

" As multidões que, de seringa em punho, esmagam o tempo
mental e são, por isso, retratos vivos do desespero. Neles, não
há tempo, porque não há esperança. Há só desejo em acto. "


Amaral Dias


"Chained", Gideon

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

A Mulher Que Não Chorava

A mulher dizia que era forte. E por isso não chorava.

Não chorou nunca:
nos filmes emocionantes, dramáticos e violentos
de alegria ou felicidade
pela intensidade do momento
por amor
por tristeza
por saudade
de raiva
pela perda
pela vida
pela morte.

Sentia, contudo, e como seria natural, uma enorme vontade de o fazer.
Mas era forte. E, por isso, não chorava. Colocava uma expressão fria. Tão fria, que gelou as lágrimas dentro de si.
Transformadas em pedra, acumulavam-se dentro dela, de dia para dia, mês após mês, ano após ano.
Ganhara um peso enorme, deixara de se poder mexer na sua monstruosidade.

Dizia que era forte. E, por isso, não chorava. Não chorou... até ao dia em que o corpo não aguentou, a pele rasgou-se e dela saíram bruscamente as cinzentas pedras geladas, cobrindo toda a extensão de terra que o olhar poderia alcançar. A mulher aliviava-se e sofria, querendo manter a sua "força".
Uma vez cá fora, as pedras derretiam, formando um riacho. Depois um lago. E depois um mar.
A mulher forte, aquela que não chorava, sucumbia à força da inundação provocada pelas suas lágrimas, outrora de pedra. A mulher que não chorava deixou de ser vista, até desaparecer debaixo do mar, bebendo as próprias lágrimas que não podia já fazer voltar para dentro de si.


"Teardrop", Pavel Anokhin

terça-feira, fevereiro 17, 2004

Som Submerso

Chorada a tristeza,
desfeita e derramada
Provo-me:
Saibo a sal
Inundo-me do mar
que por dentro ruge
Que em si guarda o piano
e todos os sons
que cantei e sonhei.

Recuo na escala
procurando o Princípio...
a Nota Primeira
a mais grave
que chega a ser aguda
e lancinante como lâmina.

Que a melodia inquieta
me arranque a alma
e me devaste por dentro.

Transbordo
o desespero
a serenidade
e a infinitude
de ser um círculo.

Se morrer
quero abraçar
o som surdo
do meu piano
no fundo do mar.

Assim, poderei ouvi-lo,
dançá-lo eternamente...


"The Piano" (Jane Campion)
Música: Michael Nyman



segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Anestesia Azul

Frio e lágrimas
Anestesiantes
Transpondo o limite
A dor deixa de doer
Inerte por fora
Persiste por dentro
Até deixar de existir.

Anulo-me.
Repito-me.

Espero-me...
Aguardo-me.


"Sadness", Kathy FerDon

domingo, fevereiro 15, 2004

Traição

Cansada de viver na sombra dos que a rodeavam, do acenar de cabeça sempre concordante, da massa amorfa que se sentia ao não permitir-se o direito de discordar, longas eram as noites em que o afastamento que mantinha do Si verdadeiro e a raiva de si própria cada vez mais se consumiam em dores e pranto. Para além de toda a tortura mental, chegava mesmo a castigar-se fisicamente após serões com os amigos... "amigos!"... a palavra nem lhe dizia grande coisa... após serões com os amigos em que desaparecia no meio de vozes e se mantinha invisível só para não doer ao existir. Sim. Doía existir. O receio do julgamento, o medo de não ser gostada custava mais que a invisibilidade. A curto prazo. Porque à noite esperava-a sempre o penoso castigo de não ter sido, de se olhar no espelho para não se reflectir nem reconhecer. Então cortava-se, inflingia sofrimento físico a si própria. Só para não sentir a dor maior. A que lhe fustigava a alma.

Exausta, angustiada e traída por si própria, decidiu num dia de mágoa, que tinha de ser diferente. Não podia mais ser parte de tamanha amálgama indiferenciada. De tal modo se sentia pisada, como que imersa em água a ferver, que precisava com urgência de emergir e respirar.
Tinha de ser diferente. Só não sabia como ser diferente. Começou, então, por se opor a tudo e a todos. Mas a tentativa resultara pior. Pois empenhava-se em defender posições que nada tinham a ver com as suas (e que aliás não sabia quais eram), apenas pelo simples facto de se serem opostas às dos demais. Permanecia, assim, afastada de si própria.

No entanto, a dado momento, a sua decisão já não chegava, a dependência da aclamada "diferença" fazia-se sentir cada vez mais e rapidamente deu por si a ter comportamentos bizarros na rua, ao ponto de ter sido internada várias vezes compulsivamente...

Certa vez, num das suas fugas do hospital, fez o derradeiro esforço final, a última investida - cortou pernas e braços. Queria ser diferente. Contudo, agora, já nada fazia diferença... Um tronco inerte, rebolante sobre si próprio não fazia qualquer diferença. A morte já acontecera há muito tempo atrás. Mas agora era possível observar que do seu próprio corpo, mesmo antes da mutilação derradeira, há muito que nasciam correntes que não mais a poderiam deixar respirar
Tão apegado está à regra aquele que a persegue, como o que a contraria a todo o custo... E o custo foi alto. Sem qualquer benefício. Pois a sua opção não residira numa escolha, mas sim numa "não-escolha". As correntes cresceram. Cresceram. Fortaleceram. Cercaram e comprimiram o que restava do seu corpo até mais não poder ser vista. Até desaparecer, poeira da poeira...


"Chained!", A.Design

sábado, fevereiro 14, 2004

Pressa

Hoje deixei de ter pressa.
Foi na rua enquanto galgava os quarteirões, um em cada passo. Quando tentava fugir daquela figura franzina de mulher que me assustava e, simultaneamente, intrigava. E me perseguia fazia já algum tempo.
A rua era estreita, não tive por onde fugir.
Parou à minha frente e impediu-me a passagem. Passaram-se escassos segundos, mas neles toda a minha vida me passou pela frente. Perguntou-me: "Para onde vais...?" Pensei não responder, mas quando ía para balbuciar qualquer coisa, ela prosseguiu: "Não... não é isso. Para onde vais?" Fiquei em silêncio, intrigada.
Continuou: "Porque corres?... Porquê a pressa?...". Pausa. "O que esperas alcançar?". Inundada de perguntas, fiquei inquieta. Fiquei em silêncio, não pelo insólito da situação, mas porque por momentos percebi que não tinha resposta. Não sabia. Ou esquecera. Esquecera onde me levava o caminho.
Então deixei de ter pressa. Sorri e ela afastou-se. Rapidamente e com muita pressa procurei um lugar onde ir, um momento onde ficar depressa sem pressa.


"Velocidade da Luz", Luis Silva

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Fácil

Estendo o corpo, dengoso, que se oferece a mim mesma, numa preguiça felina. Deixo-me dominar pela música... uma voz rouca sussurrada em acordes e ritmos quase que embaladores. Diria que a música me embala, como uma mão que faz o meu berço balançar docemente... devagar... ritmadamente, num compasso organizador.

A cama quente deixa-me ser sua companhia íntima... deixo mesmo que me toque. Acho que a toco também. E o som entra nesta dança comigo, onde entram agora também as palavras. As do livro que sublinho em pensamento. Donde sorvo ideias com a ansiedade da dependência.
Deixo-me ficar nesta sensação de líquido amniótico onde flutuo com o descaramento de um feto, como que afirmando que agora é a minha vez. O calor faz tender para a harmonia, para o justo, para um nível subliminar de consciência de que gosto. Sou o som de paz, que se arrasta.

Devagar... as palavras sussurradas estão escritas no livro sublinhado a sonhos e segredos. E canto-as devagarinho. Para dentro.
Ouço, sublinho e canto. Fazendo tudo simultaneamente num só gesto que não esboço no exterior que vejo. Sinto. No interior dos sentidos. No interior sentido.

As letras libertam-se das palavras e vagueiam pelas folhas do livro aberto. Abraçam-se. Formam novas palavras. Diferentes perspectivas. Devagar, tornam-se mais livres. Encaixam como querem... e dançam umas com as outras numa composição imperceptível.

Estou a deixar-me vencer pelo sono. A música é já longínqua, é já o som das ondas do mar que vêm e vão... vêm e vão. Vêm e vão. É tudo cada vez mais lento, deste meu ponto de vista... cada minuto escorre como água em plano inclinado. Deixo correr, deixo de pensar no tempo que me envelhece e guardo o momento. Tudo muito vago. Sei que não vou fazer nada do que devo. Sei que mais tarde, onde o tempo não chega, me vou angustiar.

Mas não vou lutar contra isso. Vou deixar o meu corpo passar para o outro lado como corrente de rio fluente e fácil.
Fácil. Hoje quero ser fácil.


"Words", Duje Antonini

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Apetecer Branco

Inunda-me o branco
Do leite
Deleite
Visto-me apenas nos lençóis
Em contraste de brancos.


"Nude1", Yuriko Kitamura
Partilhar... (VIII)

... o poeta de sempre, numa das suas facetas, e suas (polémicas?) palavras...

"Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia,
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino.
(...) Tinha fugido do céu.
(...) No céu tinha que estar sempre sério
(...) Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça(...)"


"O Guardador de Rebanhos", Alberto Caeiro

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Chuva

Caio,
Veloz.
Passo entre nuvens
Que procuro manter.
Procuro não me mover
Para não estragar o equilíbrio precário.
Mas elas ficam cinzentas...
E por mais que as pinte de branco
Carregam-se de azia e de amargura
Tento segurá-las e fazê-las parecer
Os castelos de algodão
E de ilusão
Construídos no ar.
Mas o algodão pesa
E chora...

Enfim, desfaço-me em água,
Na lágrima derramada em queda livre.


(autor desconhecido, imagem retirada daqui)

terça-feira, fevereiro 10, 2004

Sou Uma Peça de Puzzle

Sou uma peça de puzzle
Repetida.

Em mim a figura incompleta
pede completude
integridade
que não tenho
que não sou.

Sou uma peça de puzzle
Deformada.

Rasgada
Cortada
Mutilada
Desencaixada

Sou uma peça de puzzle
Imperfeita

Na minha imperfeição
me quedo
me calo
Muda.

Sobre mim, o sentido
Desbragado
Encantado
da incoerência.

Sou uma peça de puzzle
Perdida.

Não sei que me completa
Desconhecida de mim
Estranha de mim,
Inteira.

Sou uma peça de puzzle
Isolada

Sobre mim, o sentido
coerente
da imperfeição perfeita
e da completude inacabada.


"Nature's Work", Marjan Kluepfel


segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Partilhar... (VII)

Ontem, quando procurava uma imagem que ilustrasse o post anterior, deparei-me com um autor com pinturas, a meu ver, fantásticas pelo modo como são perturbadoras e cheias de força. À semelhança da Sibylla, também fiquei bastante surprendida com as telas de Steven Hudson, que não conhecia.


"This new body of work, inspired by Goya's darkest paintings, shows Hudson's facility for depicting the human form in all its messy magnificence. His figures carry deformities suggestive of both the multiple roles we all assume and the emotional burdens we carry. There is no deductive logic in this work, but instead a process of organic divergence leading the viewer on an unsettling and disturbing path."
in "Peter Miller Gallery"

Ficam mais algumas telas do pintor:

"Kiss"

"Mother and Child I"

"Affection"

"Glance"

domingo, fevereiro 08, 2004

Ciclos Fechados

Esta é uma história pequena. Uma das pequenas histórias dos grandes ciclos fechados da vida.
É simples. À primeira vista poderia parecer...

A pequena Preguiça nascera em berço de ouro e em lençóis de seda. Cheirava a leite e a mimos. Ria e chorava como todos os bebés. E, como todos os bebés, esperava que a servissem como rainha no seu trono. A roca era o seu ceptro, e a casa, o seu reino.

A hora da alimentação era a sua preferida, sugando o peito de quem a alimentava como quem queria devorá-lo.
Era, sua mãe, mulher por fora, criança por dentro. Senhora Dona Dependência era mulher para pequena estatura, quase anã, mas de grande força, por detrás da aparente fragilidade. Simulação inconsciente, mas quase manipulatória.

Contudo, chegado o momento do desmame, a pequena não sentia necessidade de largar o peito e a mãe não via necessidade de o provocar.
Preguiça pedia colo e tudo o que queria e exigia (que lhe era concedido sempre). Dependência dava tudo o que tinha, apenas pedindo total devoção em troca e a garantia de que nunca perderia o seu lugar, o seu papel, a sua função.
E assim foi: com o decorrer dos anos a filha continuava a ser amamentada e a mãe continuava a amamentar. A filha crescera ao ponto de não caber no berço.

Momentos houve em que Preguiça não sentia vontade de retribuir o carinho que sempre lhe era exigido em troca. No entanto, as dores que sentia no corpo e na alma ao tentar sequer mexer-se do seu berço donde, entalada, transbordava, faziam-na recuar face a qualquer tentativa de mudança.

Dependência, por sua vez, antes pequena, crescera e engordara desmesuradamente, tornando-se quase irreconhecível, tentando de tudo para manter a sua "bebé" pequena e, acima de tudo, saber que era útil, saber que tinha um papel e um lugar e que se tornaria eternamente indispensável.

De facto, assim foi. Já velhas, muito velhas, crescidas e gordas, maiores que montanhas, ambas cumpriram o acordo. Preguiça nunca teve de enfrentar decisões, mudanças e reacções. Dependência nunca perdeu o seu lugar e a sua função. Pois quando uma morreu, morreu a outra. Talvez tenham mesmo eternizado o seu acordo para além da morte. Não se sabe quem morreu primeiro, ou se morreram ao mesmo tempo. Tal como nunca se percebeu quem alimentava quem...


"Mother and Child", Steven Hudson

sábado, fevereiro 07, 2004

Mudanças!

Acabei mesmo por mudar o sistema de comentários, que já se estava a tornar impraticável, dados os erros consecutivos que ocorriam e o mau funcionamento, tendo vindo a piorar nos últimos tempos (pelo menos, que me tenha apercebido).

Agradeço todos os comentários anteriores que, como se pode ver, agora desapareceram, mas que resolvi guardar em lugar seguro, antes desta mudança. Mas foi por uma boa causa, esperando que seja mais fácil agora trocar palavras por aqui!

Até breve!
Partilhar... (VI)

... palavras que fazem eco...

"Como somos afortunados, tu e eu, que habitamos a eternidade;
Nós que, errantes, descemos de fragrantes montanhas de eterno presente
A gozar mistérios como o nascimento e a morte um dia (ou talvez nem isso até)".


E.E. Cummings


"Paradise"

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

Escritas Tintas

Dias há
em que rabisco negro...

Outros, azul.

Noutros, pinto tudo de branco.

Vulnerável, violeta...

Volupiosa, vermelho.


Oscilo entre umas e outras tintas

Ainda não encontrei a cor da minha escrita.

Finges Que És Feia

Consigo ver-te,
mesmo quando tentas
não ser tu.
Tens o cabelo sujo,
coberto de sebo.
Escandalosamente desalinhado...

Vestes uma camisa suada,
colada, de molhada.

No rosto magro,
branco, coçado,
mazelado,
a alergia alastra
descontrolada
cavalgante.

Arrastas as unhas
sobre a pele
até rasgar,
devagar.
Queres que doa
Finges que és feia
E que repugnas...

Imerges no mundo
do Ego quebrado.

Só para não seres tocada.
Só para que não te toque.


"Woman", Linda Causey

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Castelos Nas Nuvens

Em desassossego fiquei quando me transformei em nuvem e tornei verdade a ilusão.

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

A Rapariga Que Não Sabia Onde Por As Coisas

Alícia era uma rapariga interessante. Não se podia dizer que fosse muito bonita. Era possível ver nela uma beleza diferente. Uma beleza simples de olhos brilhantes. Sim, era interessante.

Contudo, apesar de possuidora de atractividade aos olhos dos outros, a que se juntava a sua sempre presente juventude, certo dia, olhando-se ao espelho, achou que estava gorda.
Todos os dias se olhava ao espelho, era certo, mas... desde então não cessou de achar que cada vez estava mais gorda. E a partir de certa altura, passou a ser sensação pois já não era apenas quando se encontrava frente a frente consigo mesma que se via obesa. Agora... sentia. Sentia-se gorda, cheia, chegava mesmo a faltar-lhe o ar. Dias havia em que tinha vontade de deitar tudo cá para fora, de se esvaziar.
Não seria preciso dizer que Alícia era um pouco forte, sim, mas nada a que se pudesse chamar obesidade e muito menos se verificavam alterações na sua linha, nos últimos tempos.

Era verdade que estava cheia... mas não era de comida ou de gordura. A não ser que se pudesse chamar gordura às partes más de si mesma que os outros nela projectavam e que insistia em guardar dentro de si. Guardando o que na verdade rejeitava. O lixo em si própria. Como se em cada dia não conseguisse deixar à porta o seu saco de lixo, como todos faziam. Acumulava-o dentro de si. Mais e sempre mais. Talvez um dia fosse preciso... talvez não pudesse rejeitar o lixo sem perder o amor dos que a rodeavam... Talvez.
Ah, o amor... Esse não sabia o que era, pois com medo de perder o amor próprio, o que guardava para si, não o dava a ninguém. Como se assim pudesse evitar a sempre presente tragédia de admitir que não gostava de si própria. Ignorando que amor próprio e amor pelo outro pertencem a caixinhas diferentes. E assim tudo retia. E assim tudo deitava a perder.

Alícia tinha um problema. Alícia não sabia onde por as coisas... Não sabia onde por o lixo. Não sabia onde por o amor.

A verdade é que se sentia cada vez pior e um dia, no auge do seu desespero, vomitou violentamente depois de muito ter comido, quase como se já estivesse a preparar aquele efeito purgante. Pensava e sentia que talvez assim pudesse deitar fora a gordura que percepcionava a alojar-se, de dia para dia, em cada canto de si...
No entanto, terminado tamanho esforço, numa última violenta contracção gástrica provocada, expulsou na branca bacia o sangue vermelho escuro.
Parou. Parou, como que hipnotizada pelo vermelho do seu "dentro". E chorou, enfim. Chorou porque percebeu que misturara lixo e amor. E agora não sabia como separá-los...


imagem: "Junk Girl", in "The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories", Tim Burton

Encontrei...

... na secção de classificados do jornal...


Público, Domingo, 2003-02-01

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

Lembrar-me...

Tenho gostado de por cá estar. De viajar por entre as palavras que me fazem saltar de lugar em lugar. Palavras que me têm feito gostar, sentir e também escrever. Desta troca, nem sempre com sentido, se tem feito este lugar. Onde cabem sonhos, onde moram ideias, fantasias e o "caótico sentido" de sempre.
Nas horas do dia passou a haver espaço para essas palavras, para esses lugares, para essa partilha. Para esses companheiros de viagem que me acompanham e a quem acompanho desde início.

Passou a fazer parte dos dias lembrar-me de todos vós...

... Lembrar-me do Wong e das suas palavras cheias de reticências, nos seus lugares fantásticos, nas coisas que não sei... o imediato e a reflexão, a psicologia na vida quotidiana, falar a sério, mas também o lado mais lúdico da vida, a nostalgia e o futuro. O que tem sentido, mas também tudo o que não tem... Enfim, "nonsense, puro nonsense...".

... Lembrar-me do Mário nos seus pensamentos e ideias "sobre tudo e sobre nada", na visão realista do mundo, umas vezes tão grande e tão cheio de tudo, outras vezes tão pequeno para conter os sentimentos. O meu obrigada a todos os elogios ao meu lugar, que tenho lido (apesar de não saber se os mereço).

... Lembrar-me d'"O Cão do Guedes", onde todas as semanas encontro as reflexões, as histórias e as metáforas da vida que fazem pensar.

... Lembrar-me do Nuno, a crítica e o humor, a versatilidade de reunião no mesmo lugar do riso e das lágrimas. Lembro-me do seu "humor peculiar" (e, porque "esquisito", gosto!)

... Lembrar-me da Deméter, partilhando dos seus "segredos", viajando nas suas palavras sábias, nos sentimentos e (in)decisões de Maria, sempre acompanhada da música do piano...

... Lembrar-me da Thelma e também da Louise, passear pelas suas palavras boas, o implícito e o directo. Sentir a aventura com letras. Mergulhar e viajar. Sempre.

... Lembrar-me do Gabriel (e, já agora do seu Clone e restantes personagens!), onde as ideias conduzem ao impossível. Sobretudo a impensável criatividade e a infindável capacidade imaginativa.

... Lembrar-me da Sara e do seu "cacaoccino" com sabor a chocolate, imperdível. Sempre reivindicativa, sempre justa, onde encontro o verdadeiro significado da confiança e da força.

... Lembrar-me da Serena... mas nem sempre. A serenidade, mas também, de vez em quando, o tumulto e o desassossego. Para deixar cada noite com o fresco sabor a menta.

... Lembrar-me da Nina, onde pairam as questões e as reflexões. A inquietude da Alma, o desassossego sentido, o tumulto. A curiosidade sem fim. As palavras belas. Poderá alguém viver sem se inquietar?

Mais recentemente, mas sempre presente...

... Lembrar-me da Marta. Com a beleza das palavras e dos sentimentos numa capacidade de sentir inocência e o tudo dos pequenos nadas, com a sua maneira bonita de transmitir emoções e sensações. A alma despida, mas também pintada a sol e a mar.

... Lembrar-me do Pedro, "dias que correm", tempo que corre, palavras que correm, sem se querer deixar apanhar. Velozes e implacáveis. A beleza triste dos dias, mas também a esperança, no esplendor da sua efemeridade.


Pela vossa presença e pelas palavras que vão deixando por aqui e por ali neste meu cantinho,
Obrigada ao Wilson, ao Fernando e ao Carlos (Maxou).

E também aos mais recentes companheiros de viagem, cujos "lugares" comecei recentemente a conhecer e se têm tornado também pontos de paragem :
Obrigada, Krip, v-e-l-u-t-h-a, Sr.Ministro, Frederick Hartley, Duende, João Martinho, Morgatha, Luísa, Vendaval, Graça Carpes, Luís, Guarda d’Anjos, Sofia, Chris, Aqualily, e O Parasita.

Palavras e lugares de que gosto.
Tenho gostado de ficar.

domingo, fevereiro 01, 2004

Estado Líquido

Segurando, firme, a esponja molhada.
Aperto-a, morna contra mim...
O suave prazer escorre pelo corpo.
Dissolvo-me na água quente da banheira
E, deleitada, derreto docemente
em metamorfose lenta...
Deixo-me transformar em molhado e doce
estado líquido.


"Liquid Spheres", Keith Livio