quarta-feira, março 31, 2004

As Vossas Palavras...

... depois de "Lapso Insignificante":

"Na tinta derramada vi tantas palavras perdidas, assim, sem as conseguir recuperar do chão agora azul celeste.
Sem outra solução pensei-as, tentado fazê-las ter um sentido que o tempo me tem tirado.

Acontece-me isto sempre que muda a hora."

Sr. Ministro

terça-feira, março 30, 2004

Memórias

Recordar-me-ei sempre. De todos os traços, de todas as linhas, de toda a profundidade que te transforma em ondas côncavas de luxúria. Vou lembrar-me sempre de todos os beijos, de todos os olhares. De como não posso sair do instante e fazer parte de ti nos teus momentos. De como não posso ser dois. De como não quero.
Recordar-me-ei sempre do toque da pele, do cheiro a tangerina... do gosto de não poder voltar a provar.
Vou lembrar-me de como me lembrarei sempre de tudo. De como não te quero esquecer, de como não te quero recordar.
Lembrar-me-ei sempre. Contudo, não quero. Mas sou feita de memórias e quando nasci fui condenada a recordar.


"Memories" (autor desconhecido)

domingo, março 28, 2004

Lapso insignificante

Tropecei no ponteiro do relógio que se adiantou subitamente uma hora. No impulso da queda, a caneta soltou-se subitamente da mão e deixou resvalar a tinta azul escura pelo ar, desenhando letras e deixando sair as palavras que tão bem tinha escondido e enterrado onde não as poderia encontrar. Maldita tinta que naquele momento me fazia lembrar sangue. Azul. Não mais fino por isso.
Maldita tinta que revelava os meus segredos. Sobretudo a mim mesma.
Corri atrás dela, escorregando no molhado em que deslizava e quase patinava e, aos tombos, me inundava de azul.
Amaldiçoei a tinta, amaldiçoei o ponteiro que me fizera tropeçar. Amaldiçoei aquela estranha vida que, por momentos, se apoderara da caneta fazendo-a abrir a minha gaveta secreta. Amaldiçoei o espelho que a tinta, em lago, formava defronte de mim. Só me esqueci - lapso insignificante - de me amaldiçoar a mim própria.



"Pandora's Box", Pattima Singhalaka

quinta-feira, março 25, 2004

Sigo em S

Selada em surdo silêncio
Sorvendo os sentidos,
Sinto a solidão
Sedada, sentida.
Sedenta de ser,
Sede sempre por saciar.
Sussurro,
Serpenteio sibilante
Segura no meu seio.
Sinto-me seda
Sem saber que a sou.
Solto a sensação
Sofrida de sempre
Seguir sinuosa.
Sigo em S de sonho.


(autor desconhecido)

quarta-feira, março 24, 2004

Efemeridades Eternas (ou Eternidades Efémeras?)

Disse-te que trouxesses coisas novas. Novidades. Que fizésses coisas novas. A rotina é a morte do artista, diziam.
E tu trazias, fazias, como que alimentando um ego sem fundo. Com medo de perder.
E eu queria sempre mais. Mais coisas novas... para que ficasse contente.
No entanto, chegou o dia em que só trouxeste coisas novas. O meu sorriso desapareceu no pequeno instante em que a confusão se instalou.
Percebi nesse dia que era aquilo que de permanente me trazias que me fazia feliz.

terça-feira, março 23, 2004

Pensar Comigo

Devia ir dormir, devia descansar. Devia talvez ir sonhar. No entanto, decido escrever quando reparo como que pela primeira vez que os pensamentos que me assaltam a mente serão apenas sabidos por mim. Como um diálogo mudo que ninguém saberá que existiu. Questiono-me qual seria a importância de saber que outros sabem... Não obtenho resposta a esta questão nesta conversa de mim para mim.
No entanto, sou tomada de uma espécie de sentimento claustrofóbico, como se eu fosse as palavras e elas não pudessem neste momento ficar presas no meu interior. Escrevo-as. Liberto-as. Lembro-me da questão da imortalidade, do projecto de cada ser humano - "plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro" - não necessariamente nesta ordem. Penso se estas "missões" são altruístas como parecem, ou tentativas de prolongamento do Eu, num sentido totalmente egoísta. Mais perguntas sem resposta.
Antes de adormecer, demoro-me nestas divagações.
Terei deveras libertado as palavras?...
O vento fustiga fortemente as janelas do quarto. Penso que poderei levar uma vida inteira a habituar-me a ela.

domingo, março 21, 2004

Lucidez

Lucidez que falta
Lucidez que vai
Labirinto fechado
Lentidão inquieta
Da dança transformada
Perturbada, alterada
Em movimento de luta
Louca, descontrolada.

Lucidez que falta
Lucidez que vai
Súbita busca de pertença
De quem já não possui
Riso insano
Adulterado
Não menos sentido
Abandonado, anestesiado.

Lucidez que falta
Lucidez que vai.



"Lucid Dream", Jeanne Jesse
As Vossas Palavras...

... depois das minhas:


"E ao tornar-se em sonho deixou o vento passar por ele sem o apagar. Deixou o vento conduzi-lo entre as paredes da sua casa, através das portas, pelas ruas do seu bairro e da sua cidade. Levado pelo vento e tornado em sonho, percorreu finalmente um mundo que se abria para si e que parecia, mais do que um sonho, uma chama que não se deixava apagar..."

Comentário do Rui, a "O Menino Que Não Podia Sonhar"
(Também não resisti!)

sábado, março 20, 2004

O Menino Que Não Podia Sonhar

Era mais um menino, como todos os outros, que vivia num dos muitos cantos do mundo. Um menino doce e introvertido que pouco dizia do que se passava dentro de si.

Contudo, o lugar onde vivia tinha uma particularidade - uma rua que seria como outra qualquer se não fosse sempre fustigada pelo vento, permanente e cortante. Umas vezes mais, outras menos, consoante a época do ano.
As casas desta rua, por melhor isoladas que estivessem, eram sempre um corredor frio por onde a Terra respirava avidamente.
Pelo menos era assim que gostava de pensar este menino. Era assim que se defendia. Sempre introvertido, demasiado tímido para dizer que o vento lhe tirava o que de mais precioso tinha.

Na verdade, o seu problema era não conseguir apagar as velas do bolo de anos. Tudo porque quando cerrava os olhos à procura do seu desejo, já o vento apagara as velas. E tudo isto passava-se numa questão de segundos. Quando voltava a abrir os olhos, a desolação dava lugar às lágrimas choradas para dentro e que não conseguia sequer imaginar. Ano após ano a situação se repetia e o implacável vento não deixava nem deixaria alguma vez a chama arder.
Impedido de sonhar, os seus desejos ficavam sempre a meio caminho de serem formulados.
Vivia este menino, assim cada vez ele acreditava, impossibilitado de esperar, de sonhar, de desejar.

Um dia, após mais um dia de aniversário, depois da desilusão confirmada mais uma vez, o menino imaginou-se chama de vela acesa. E assim também se deixou apagar pelo vento, tornando-se ele próprio um pouco de sonho.



"Wind", Robyn Bellospirito

quinta-feira, março 18, 2004

Navegar

Navegava, flutuava, respirava
no sempre azulado prazer
de quem pode
mas não mais quer fazer.

Rápida, lenta, turbulenta.
Vestida, despida, sentida
fada alada, desalmada.

Sentindo, fingindo, fugindo,
me deixava enlouquecer
contigo, no alaranjado,
sempre fugidio entardecer.

Espantada, resignada, encontrada
fingia, queria e esquecia
que é nos teus olhos
que navego, que flutuo, que me espero.



"Iris", Anaglyph

quarta-feira, março 17, 2004

O Que Cresce em Nós

Deviam-na levar para a cama quando adormecia no sofá - pensou com os seus botões - como fazem com os bebés...
Assim tinha de voltar a levar a bofetada da realidade donde tão sofregamente fugia. Ansiava o estado sedativo do sono, aquele em que imaginava poder fugir do frenesim das solicitações infinitas. Cansativas. Extenuantes. Transbordadoras.

Contudo, o sono não permitia a fuga. Sempre que se propunha a viajar para fora de si, logo o sonho vinha recordar que sangrava. Que sangraria sempre. Labirinto claustrofóbico, espelhado, incomunicativo.
Noite após noite, o espaço era mais apertado, o sangue era mais vivo, subindo contra as paredes, teimando em afogá-la em si mesma.

Contudo, no dia em que acreditou que o seu desamparo era inultrapassável, no dia em que pensou que a sua mente seria irreversivelmente má, a sua noite foi brindada com um sonho. O sonho de que se transformara num malmequer amarelo que fazia lembrar a Primavera.



"Daisy", Dean Bagley

segunda-feira, março 15, 2004

Hoje...

... apesar de não precisar de mais provas de que a divisão do ser humano em corpo e alma não passa de teoria cartesiana, apercebo-me como a simples extracção de um dente pode "castrar" a criatividade...

E os dentes ficam tão perto da mente (será que a mente fica na cabeça, e será que é aí que mora a criatividade?)

(esperando por momentos mais homeostáticos!)
Partilhar... (XI)

... reflexões...

" (...) Para que a arte possa ser arte, não se lhe exige uma sinceridade absoluta, mas algum tipo de sinceridade. Um homem pode escrever um bom soneto de amor sob duas condições - porque está consumido pelo amor, ou porque está consumido pela arte. Tem de ser sincero no amor ou na arte; não pode ser ilustre em nenhum deles, ou seja no que for, de outro modo. Pode arder por dentro, sem pensar no soneto que está a escrever; pode arder por fora, sem pensar no amor que está a imaginar. Mas tem de estar a arder algures. De contrário, não conseguirá transcender a sua inferioridade humana. (...)"

"Heróstrato e a Busca da Imortalidade", Fernando Pessoa

sábado, março 13, 2004

Nada

Quis esvaziar a mente, torná-la oca por momentos.
Mas como se observa o nada? - questionou-se, aflito.
Deixou-se ficar, mudo e quieto no banco de madeira, despojando-se das vestes que o não preenchiam.
Que maior vazio senão o da sua vida pintada no branco em redor...?



"ExercícioNuII" (aguarela), Miss Kafka

(Aqui fica mais uma interpretação minha, especialmente a pedido da Fata Morgana)

sexta-feira, março 12, 2004

Pingos doces

A música cai como pingos doces
O ambiente entra dentro
Como que invasão
Tento escrever o som
Ou escrever a emoção
Mas há uma barreira a transpor
Que percorro
Até encontrar uma folga e passar
Sussurro morno e dengoso
Que fala ao íntimo
Fala ao inconsciente
Fala onde não percebo
Mas sinto
Canto a nota
Até entrar dentro dela
Até não distinguir
Onde sou eu
Onde é a música
E me obrigo a afastar
A ideia de tentar
Sequer racionalizar...

A música cai como pingos doces
E depois flutua
Em camara lenta.



"QE2", S.C.Buraga

quarta-feira, março 10, 2004

A Rapariga Que Gostava De Semear

Radis era uma apaixonada pela vida. Dificilmente as contrariedades quotidianas a faziam desistir ou voltar atrás. Compunha com um pouco de alegria tudo o que fazia, tudo o que tocava. Semeava, como gostava de lhe chamar.

Para ela nada tinha um fim, tudo se transformava eternamente, e era isso que procurava transmitir a todos os que a rodeavam. Um pouco de doçura, um tanto outro de ternura, e uma esperança no futuro que nunca a abandonavam.
Havia quem a chamasse de optimista, alguns admiravam a sua postura na vida. Contudo, outros havia que não podiam deixar de sentir alguma inveja dessa sempre boa disposição.

"Basta semear!" - dizia Radis, entre risos. Parecia simples. E assim talvez o fosse para ela. Semear, era o segredo.
De facto, não tinha medo de partilhar os seus sentimentos, não enclausurava em si o que tinha para dar com medo de perder o amor-próprio. Sabia que o amor que dava aos outros vinha de um outro qualquer canto do coração, que não aquele onde estava o amor por si própria. Aliás, sabia que se semeasse o amor nos outros, o amor-próprio floresceria bem mais depressa, anda que em lugares diferentes...

E passava o dia a semear, a semear. Havia sempre alguma coisa para semear - a tolerância, a beleza, a sinceridade, a amizade, o amor. O sorriso sempre presente era o adubo. Até objectos semeava: tudo o que parecia ter um fim - um objecto quebrado ou gasto pelos anos - Radis colocava num vaso cheio de terra, e acreditava que um dia se transformaria em algo de útil. E falava muito nestas teorias e práticas aos outros, absolutamente convicta, ou assim parecia, de que era verdade. Pelo menos, ela assim o sentia.

Jarras, copos, pratos, afias, lápis, folhas de papel, bonecos da sua infância que agora também deixava para trás - tudo era devidamente semeado. E tudo parecia tão fácil...

Contudo, chegou o dia em que semear não foi fácil. Em que ficou na dúvida.
Chegou o dia em que o aparentemente tão simples acto de semear se tornou mais difícil.
Chegou o dia em que não teve a certeza se o que semeava iria renascer. Em que o acreditar custou e quase morreu.
Chegou o dia em que o adubo teve de ser o seu sorriso de lágrimas.
Chegou o dia em que teve de semear os seus pais. E acreditar com mais força que tudo se transforma.



"Sowing Stars", Leda Pingas

terça-feira, março 09, 2004

(Ouve...)

O meu coração é como um comboio a vapor. Sinto-lhe o ímpeto, sinto-lhe a força. É viril, afirmado, transborda muito para além de mim... É mais do que eu, é força viva, energia, geração espontânea.
Quero acalmá-lo, comprar-lhe um açaime, tento algemá-lo. Trato-o como um cão. Mas não é cão, nem gato, nem gente. É mais forte e é ditador. Manda, porque sim.



"Valentine for Dali", Debra B. Lennox

domingo, março 07, 2004

Genealogia

A Loucura fecha-me os olhos, como se fosse minha mãe. Faz-me sentir, sem ver. Venda-me e embala-me nos braços, ao som de risos loucos, transformados, alterados, em melodia delirante e instável.
Como filha da Loucura, tenho no sangue o descontrolo, a paixão, a nudez dos sentimentos.
Mas meu pai é o Pensamento, contido, controlado, ponderado e sisudo. Veste-me de regras e oferece-me a subtileza e o conhecimento racional.
Assim, a minha vida é a ambivalência, o sim quando é não, o pensar quando é sentir, o ódio quando é amor... e também tudo ao contrário. Moro num eterno cruzamento de caminhos, todos eles errados, todos eles surdos. Aí faço a minha vida - um passo à frente, outro passo atrás, em movimentos desconexos que pedem sempre o seu oposto.
Que fazer, senão esperar?... Por quem ou por quê, ainda não sei. Porque quero esperar, mas não quero ficar à espera. Como uma boa Ambivalência deve fazer.



"The Mirrorred Ambiguity", Kunstmaler

sexta-feira, março 05, 2004

Fragmentos REM (IX)

Estranhas noites vou vivendo do lado de lá da vida...

É noite e está num festival de cinema (Seria o Fantasporto?...). O recinto é bastante grande: há uma loja rodeada por escadas ao centro, e duas salas de cinema em direcções opostas. Está com uma amiga. Tenta subir umas escadas íngremes, em caracol, que vão dar a uma loja, loja essa que consiste numa plataforma (mal) equilibrada sobre um poste. Todo o recinto balança à medida que sobe, fugindo da amiga que por, qualquer razão desconhecida, não quer que suba. Consegue chegar ao topo, mas sabe que poderá cair a qualquer instante.

Subitamente, ouvem-se as badaladas que anunciam o início da sessão. Tem que ser rápida, os amigos com quem está e o irmão esperam-na já na sala. Mas... qual delas? Por momentos não sabe para onde se dirigir, e escolhe, junto com a amiga, a sala errada. Quando se apercebem do erro, visto a sessão aí estar a terminar, e voltam a sair, verifica o pormenor curioso da existência de três sanitários em pleno hall exterior de acesso à sala. Sem qualquer constrangimento, as pessoas usam-nos, sem se importarem com o facto de se tratar de um lugar público. A situação parece até bastante natural, visto não suscitar a mais ínfima das reacções. Só nela provocava a já referida estranheza.
Por sinal, os sanitários e a zona em que se encontram estão bastante sujos. Consegue ainda ouvir os comentários das empregadas de limpeza que ali se encontravam, dizendo que não limpariam tal porcaria. Indignadas, argumentavam que não se rebaixariam a tal.

Verificando o atraso e o engano, correm para a sala oposta, onde já o filme decorre, apesar do burburinho e de algum tumulto que se vai sentindo na sala. Não conseguem encontrar mais ninguém. Nem o irmão.
Há barulho lá fora, algo de muito estranho se passa. É um motim, uma qualquer revolução. Saem a correr. Há polícias em confrontos por todo o lado. Lentamente, aproxima-se das escadas rolantes centrais e vai-se começando a aperceber dos pormenores da visão sórdida que não distinguia à distância: há um lago de sangue que cresce, onde boiam cabeças decapitadas, presas nas escadas rolantes pelas suas cabeleiras. É horrendo, é assustador. Rapidamente se vê rodeada de sangue e corpos mutilados. Apercebe-se que um deles pode ser o do seu irmão... Há um pânico crescendo que lhe arranca do peito gritos descontrolados.

Sou chutada para fora do sonho, para lugar bem mais seguro.



"Hercules and the Lernaean Hidra", G. Moreau

quinta-feira, março 04, 2004

Partilhar... (X)

... e ainda esta outra pintura, bastante diferente da anterior, mas debruçando-se ainda sobre o tema dos livros, desta vez sugerida por Gabriel do Além (Obrigada!):



"Marie Adelaide de France", Jean Etienne Liotard
(neste site)

A mão pousa com um descanso vagaroso,
deixa as pernas entreabertas, sem tensão.
Funde-se com o sofá que a veste
e se cose ao vestido amarrotado.
Abre a caixa de papel, o papel dos segredos.
Abre-se como ao livro, fecha-se de seguida.
Deleita-se no mundo que vai sussurrando para dentro.
Serena, segreda o que ainda não sabe.
Semi-sorri pois sabe que algures, em algum tempo,
já soube, e que é apenas um doce relembrar.

quarta-feira, março 03, 2004

Partilhar... (IX)

... esta imagem, mais uma vez sugerida por Phileas, a propósito de «Sobre o "livro"»:
(Obrigada e espero que não te importes!)
... e, também mais uma vez, o Poeta.



"Atlas of Wander", Vladimir Kush
(neste site)


"Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."


"Não Basta", Alberto Caeiro


terça-feira, março 02, 2004

Sobre o "Livro"

Ontem era noite, ontem era tarde.
Talvez por isso tenha transformado devagar um PC num livro. Ao voltar as infinitas páginas que nunca conseguirei ler, deixei-me debruçar lentamente sobre a máquina que quase tinha o cheiro dos livros.
Pensei o quão curioso era até agora só me ter acontecido na leitura de livros. Foi quase uma metamorfose operada por mim própria, tão sem querer. Transformar a máquina na encadernação, nas folhas voltadas, nas páginas marcadas.
Mesmo antes de escrever, o torpor tomou conta de mim, do meu corpo, dos meus olhos, que ficaram fechados sobre o quase livro aberto.

segunda-feira, março 01, 2004

Ímpeto Solto

Solta, solta, solta.
Solta agora.
Dança em ritmo que ondula
Sempre, sempre, sempre
Pele, unhas e cabelo.

Gosto de te ver rodopiar.
No ar, em volta,
Emerso e submerso
No azulado mar de sempre.
Sempre e sempre.

Agora. Solta agora.
Larga o sorriso, espalha, semeia.
Queres chegar agora, abraçar
e dizer que partir já não é
Palavra para sentir.

Solta, balança o penteado.
Rodopia ao ritmo do coração ritmado.
Sonho azul como o mar de sempre
Chorar cantando
Ou cantar chorando o som visceral
Bramindo rápido e lento,
Turbulento

Solta os braços, ramos que crescem.
Solta as pernas que te revelam
As raízes que te reflectem,
que te deixam sonhar sem partir,
no equilíbrio perfeito da força da terra
em dança com o céu que te suga.
Doce equilíbrio que te faz ser tudo.

Solta o dentro, solta o profundo.
Solta, desliza.
Agora, agora, agora.
Volta, volta e fica.

Solta, solta, solta suave.
Cerra a janela e no escuro
Deixa a alma transbordar
Hoje, mais uma vez.
Azul de fora,
vermelho de dentro.

Solta, solta. Solta agora.
Agora solto.
Agora sinto.
Agora sei.



"Dancing Fairy", Stefan Duncan

Música: Caribbean Blue, Enya