quinta-feira, julho 29, 2004

A Tecla N

Noémia considerava-se uma rapariga moderna e despachada. O cabelo, que mantinha sempre curto, conferia uma maior ênfase ao seu pequeno nariz proeminente a  que muitos teimavam em chamar de "arrebitado". Era dinâmica e eficiente em tudo o que fazia. Contudo, ao olharmos para o seu longo dia de quem se levanta ainda a madrugada mal despertou e se deita já muito depois da noite, era fácil perceber que nele não seria possível encontrar mais do que uma vida de contínuo trabalho...
 
Certo dia, quando presa ao seu portátil, escrevia à velocidade da luz, um qualquer objecto oriundo da prateleira superior do móvel ao qual estava sentada, resvalou como seta certeira provocando um forte embate no teclado do seu computador. Pela primeira vez desde há muito tempo, Noémia parou, ficando como que paralisada por um raio que se quis fulminante. Verificou com cuidado os estragos, procurando com curiosidade perceber o que se tinha passado... que estranha ocorrência esta que a vinha incomodar e fazer despertar do seu tão (in)cómodo sono?...
Nõa havia grandes estragos, pareceu-lhe à primeira vista. Mas normalmente a primeira vista é sempre grosseira, e ao tocar o seu teclado, sentiu que uma das teclas estava solta. Nesse momento uma estranha dor atacou o seu peito, uma dor que não soube ou não quis compreender no momento.
 
A tecla N não estava presa. Passando os dedos pela sua superfície, percebeu que estava partida e saíra do seu mundo. Um vazio enorme a consumia... Por ter parado, pôde pensar.
Pensou que não podia mais escrever algumas palavras. Pensou, pensou, pensou. E chorou. Não podia mais escrever "não"... "nunca"... "ninguém"... Mais do que isso, percebeu que, mais do que não as poder escrever, sempre tentara fugir delas, nunca as havia suportado. O N era também uma letra que expulsara dela própria.
 
Noémia parou e olhou de soslaio para o espelho na parede à sua esquerda. Noémia não poderia mais escrever o seu nome.
 

 
"Girl in Mirror", B. Ballard

 

terça-feira, julho 27, 2004

Veludo

A tua voz sabe  a veludo,
derretida na doçura cor de vinho
Toco o teu ar e respiro as tuas mãos
torno-me criação à tua imagem
Giro como o mundo
sabedora do destino
tornado eterno presente.
Visto-me do manto melodioso
solto, quente, indiscreto
denuncias a nudez macia do deserto
no ritmo ofegante do vento quente
que te mantém, que te anima.
Sei que não sou mais que criação,
Pó mágico, vida que se esfuma.
Mas por isso mesmo imaginação
Da tua mão escorre uma duna
Tentas agarrar-me mas em vão
Pensas-me fugida para sempre
Mas eis que retorno, sangue e vida
do veludo sempre presa...


quinta-feira, julho 22, 2004

(Des)Viver

Entrei de soslaio na ruela escura, na rua que estreitava e chorava sombras.
Ao canto, vislumbrei uma delas, uma das sombras vertida timidamente dos olhos do mundo.
A velhota, sentada no degrau, mantinha a cabeça tombada, resguardada pelo lenço escuro, mais escuro ainda do que as suas vestes.

Quando levantou o rosto e o fez sair da penumbra, verifiquei que não tinha rugas. Não tinha sulcos ou vincos na sua pele. Como se o tempo não tivesse passado por ela. Tentei esboçar um sorriso que logo se amareleceu ao olhar neste rosto quase liso, uma ausência de emoção. O seu olhar trespassou-me como se não existisse. Senti medo. Contudo, cedo percebi que me via, quando a sua voz, num tom que jamais ouvira, se me dirigiu. Uma voz que não era grito nem sussurro. Não era doce, nem tão pouco amarga. As palavras não choravam, também não riam. Talvez por isso não tenha percebido qualquer das palavras proferidas.

Apenas no final a consegui compreender. Apenas nesse final. Em que o seu rosto se metamorfoseou num esgar de sofrimento e me disse em voz melancólica: “Vivi demasiada vida, e não a vida demasiado”. 
 


"Old Woman", Sue Crawford

sábado, julho 17, 2004

Repito-me (II)
 
Rebolo-me na manta rasgada dos lugares comuns,
Como o pó dos retalhos que restam,
Transpiro palavras demasiado gastas,
Sustenho sentidos demasiado usados.
Desvaneço-me em salpicos de água
várias vezes chovidos,
várias vezes evaporados
morangos várias vezes colhidos,
aromas demasiadas vezes cheirados.
Lanço sementes de plantas que não nasceram,
ilumino a escuridão vista até mais não,
inundo de vento o espaço indecifrável,
arranco os relógios ao mundo,
forço a inevitabilidade dos ponteiros imparáveis.
Só não te tento parar,
Só não te tento suster
Só não te tento parar,
Só não te tento suster...
  
  
 

quinta-feira, julho 15, 2004

Na Varanda

Daniel crescera e vivera sempre naquela casa de tectos altos numa das zonas antigas da cidade. As paredes daquele a que chamava lar viram-no tornar-se homem. Hoje já algumas rugas lhe carregavam o semblante.

Junto com ele, envelhecera aquela mesma varanda, aquela que fazia já algum tempo ameaçava ruir. Contudo, e apesar das advertências dos vizinhos e da família que com ele compartilhava o mesmo tecto, Daniel persistia na ideia de passar longas tardes na sua varanda, ora lendo, ora observando o casario em frente e em redor. A quietude da rua era de quando em quando, cortada pelo ruído dos motores dos automóveis que passavam.

Todos o avisavam, de dia para dia a varanda parecia cada vez mais prestes a desmoronar-se, mas Daniel zombava da preocupação alheia, ria alto e chegava mesmo a esboçar alguns saltos em cima da dita. Absolutamente crente no destino, afirmava que não tinha medo, apenas o suficiente que lhe servisse de auto-protecção. Para ele a sua hora chegaria quando tivesse de chegar, morreria quando a velha varanda também fenecesse. Quando tivesse de ser.

Muitos diziam que Daniel sofrera um grande desgosto de amor, e que a sua permanência na varanda simbolizava a sua promessa de eterna espera pela sua amada de quem um dia fora separado... Outros verdadeiramente admiravam a coragem daquele homem que depositava toda a sua fé e toda a sua crença nos braços do destino. Era o destino. Assim a ele se referia tantas e tantas vezes...

Foi num dia de sol que tudo aconteceu. Na rua velha da cidade, o cenário compunha-se como que na preparação para o desfecho da tragédia final. Daniel, como todos os dias, sentava-se na varanda que descaía mais um pouco. Neste dia, como em todos os outros.
Os que o viram nesse momentp, descrevem um brilho diferente no olhar de Daniel, descrevem uma lágrima longínqua que rolou e caíu junto com mais uma pedra resvalante da varanda. A varanda, a caixa dos sonhos, a redoma da amargura. Os contadores de história afirmam que Daniel largara nesse dia a varanda, tomado por impulso repentino, descendo com a velocidade que o seu corpo já marcado pelos anos lhe permitia, do segundo andar até à rua. Desprendera-se do destino e utilizava a sua vontade para ir ao encontro da sua amada. Chegou mesmo a correr, com as parcas forças que lhe restavam. E foi no instante em que largou a varanda a atravessou a porta, no momento em que se lançou para a rua, que foi varrido por um camião que passava com um pouco mais de velocidade. A suficiente para não se aperceber que o veículo se aproximava demasiado... Na rua velha da cidade.

Nos escassos segundos que decorreram entre o embate e a queda final, Daniel teve tempo de sorrir pela própria ironia... E antes que a cortina vermelha de sangue descesse e apagasse a luz dos seus olhos, lançou um olhar de soslaio para a sua varanda que se desmoronava também no mesmo instante.



"On the Balcony", Irina Kupyrova

segunda-feira, julho 12, 2004

Memorando

Não esquecer que:

...ter um corpo significa que também nele mora um espírito que com ele se confunde...
... ter um corpo, ao contrário do que se diz, não é limitador. A pele, fronteira entre o eu e o mundo, confere uma brancura alada, faz crescer asas e revela a unidade subjacente.



"Freedom", Kent

sexta-feira, julho 09, 2004

Mais Um Pedaço Do Mundo Que Respira

Queria ter esquecido de chorar, queria ter podido ficar, abrandar o tempo, gritar o silêncio nunca dito. Mas o ciclo inverte-se sem cessar, o corpo torna-se cinza, a memória, essa, pinta-se a tons pastel e assume formas indecifráveis que só os olhos da alma conseguem ver.
Os coloridos que nunca foram vistos, a ausência que não sei o que é, pois nunca experimentada. Estranhos os conceitos que se desconhecem porque não sabidos pelos sentidos.
Agora o mundo tem menos um pedaço... a matéria transforma-se sem cessar e torna-se mais um fragmento dos raios de sol, visitantes persistentes, seguros e constantes, mais um pedaço do mundo que respira. Nunca vi o infinito, mas esse sei o que é, só por te ter visto partir e, mesmo assim, afinal a tua expressão perdurar ao longo do infindável caminho da memória.



"The Soul of Desert", Yang Hua's

terça-feira, julho 06, 2004

Pormenores Fugidios

No horizonte espreita a ingratidão,
sempre verde violácea
tornada ponto de fuga
labirinto previsto fechado.
Adiante adivinham-se os ossos
descarnados e lavados,
o branco que fere e ofusca
presentes irretornados,
Só o pó do pó,
a marmórea verdade,
a pureza impura, sem dó,
o lugar de sangue semeado
onde as lágrimas crescem
e os sorrisos fenecem.
Caminho desfeito,
fragmentos espelhados
loucura premente
pedaços de gente.



"Fragmented", Cheryl Handy

segunda-feira, julho 05, 2004

Parabéns Portugal

(ao meu País, pelas grandes e pelas pequenas coisas)



sábado, julho 03, 2004

"AUSÊNCIA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua."

Sophia de Mello Breyner Andresen



"Sophia de Mello Breyner", Arpad Szenes

quinta-feira, julho 01, 2004

Efeitos do Vento (II)

Naquela manhã, início de tarde, a rapariga acordara com uma já longínqua sensação de leveza arrastada. Na janela, o vento continuava a soprar. Mas desta vez, em vez de levar, trazia. Trazia de volta tudo o que já fora. As folhas das árvores, o pó... a canção de embalar, ritmada e ondulante, o tempo perdido, quem já tinha partido. O tempo deixou de se adivinhar sem tempo. O tempo ficou mais cheio, a luz descobriu mais cores.
A rapariga interrogou-se onde estariam todas estas coisas, toda esta luz que antes não vira... Saíu de si e olhou para dentro. Procurou bem... e percebeu que sempre lá tinham estado. Tão somente agora podiam sair e entregar-se ao mundo exterior, deixar-se levar pela força do vento, sem medo nem ilusão de controlo.
O vento trazia, recuperava, reunia e fazia dançar.



"Wind of Freedom", Ahtello