domingo, setembro 26, 2004

O Rapaz Origami

Ainda dentro do ventre aveludado de sua mãe, o menino ouve a marcha fúnebre. Foi ao som da morte que nasceu. Nesse momento morreu o bebé em fusão com a mãe. Sempre se disse que um fim é sempre um princípio. E ao contrário também. Morreu um para nascer o outro.
E assim foi, sempre, desde esse primeiro momento. A marcha fúnebre era nos seus olhos de menino, sempre associada à criação. Ao renascer. Ainda que entrando pé ante pé na sua estranha vida, ninguém poderia dizer se esta mais facilmente se associaria à criação ou à destruição. Durante a infância ouviu sempre músicas melancólicas e baladas. Ainda assim sorria. Ao mesmo tempo que as lágrimas dos outros escorriam. O sorriso era parado, o menino mal se movia de onde o deixavam, e ainda assim a sua mãe o prendeu desde cedo numa pequena jaula, onde o pudesse controlar, onde o pudesse observar sempre que quisesse.
Perdia-se em pensamentos acerca da beleza da mãe, observando-a com cuidado nos muitos dias em que ela se quedava prolongadamente em frente à sua gaiola. Quem observava quem, era a questão. Quem consumia quem, a derradeira e aquela que ficava por assumir.
A expressão rasgada era o que mais o fascinava, fruto dos seus traços orientais. Apesar de tudo, não conseguia deixar de ficar fascinado com a sua beleza. O sofrimento que era suposto sentir transformava-se em contemplação e no prazer da estética. A mãe, o seu único e infinito objecto de amor.
Ironicamente, esta mulher de traços marcadamente orientais passava este longo tempo em que se deixava semi-ajoelhada junto à gaiola do filho dedicando-se à sua segunda actividade preferida – fazer pássaros de papel. A arte Origami era algo que levava muito a sério, aperfeiçoada quase até ao limite. E assim passava a sua vida este rapaz, sonhando com as asas de papel em que a mãe o fazia acreditar em vão…
Ele próprio, sem perceber, era um pedaço de papel dobrado, que a mãe começara a dobrar no ventre e agora vincava com mais força do que nunca. Pena que estas asas de papel ainda mais o prendessem ao chão em vez de o fazerem levantar voo. Nunca tivera nome. Origami poderia ser mesmo o que melhor se lhe adequava. Um pássaro sem asas, uma contradição viva, em que nada batia certo. Nem a música.
Quando se sentia triste, em pano de fundo era possível ouvir uma sonoridade extremamente alegre. Nos momentos de alegria, músicas entristecidas pelo tempo. Assim era a vida ambivalente do rapaz Origami que crescia a olhos vistos. O rapaz que já homem, apanhava bofetadas quando sorria e era beijado e presenteado quando chorava. Mas o mais confuso de tudo era mesmo a música. Aquela música que mais ninguém parecia ouvir, a música que não o deixava sorrir. A música que não o deixava chorar, Como se o som fosse para ele a tentativa máxima de impedir as emoções. Vivendo nesta insistência de fazer da sua vida uma imensa banda sonora.
Quando estava para morrer, já velha, a mãe olhou-o através do olho rasgado, aquele que não ficara encoberto pela madeixa lisa e já branca, outrora negra, que tombava sobre o seu rosto triangular. Nesse momento mostrou-lhe o pai, de feições latinas. O pai, emergente do fogo. Antes de exalar o último suspiro, abriu a gaiola onde o filho se encontrava sentado fazia anos. Ao tentar sair da gaiola, à simples tentativa de mudança de posição, partiu as pernas, e caiu numa queda fatal, ao som de uma música infantil…
Já dentro do caixão, longinquamente, ouviu a marcha nupcial. O rapaz casava-se agora com a terra. Contudo, ainda mais ao longe ouvia quase simultaneamente a marcha fúnebre de novo. O rapaz Origami viveu uma vida imperceptível. Ele próprio sem perceber que a sua vida foi um filme sem banda sonora apropriada.
"Origami", Schumacher

sexta-feira, setembro 24, 2004

Sabes...

... tal como eu, neste momento, sei que não ficarás aqui para sempre.

Não ficarás envolta nas minhas palavras, tal como não escreverei para ti... para sempre.

Sei que o modo como me lês não será eterno,

e os suspiros que deixas entrelaçados na letras são efémeros...

Como eu... como tu...

como o brilho das estrelas que fingimos acreditar que ainda existem.

Não ficarei para sempre...

mas enquanto me perco na tua fugacidade,

deixa-me acreditar que sim, que é esta imagem que quero guardar e conservar.

Sei que assim é... mas tu... sabes?...

A imagem no espelho permanece muda e cúmplice face à minha dúvida.




"Mirror", Magritte
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... depois de "Renasço em R":



"Rainha, sou... no meu desespero dentro da tua força. A minha face ensaguentada no rio de lágrimas que caminham na minha vida... grito à força do vento, à mão da tempestade, ecos nos múrmurios das conversas longínquas vagueiam nas crateras do meu pensamento, cavalos alados, fadas, minotauros que não existem, fantasias evaporadas na minha loucura... rainha, eu sou, na minha última lágrima... rainha, sou ... no meu desespero dentro da tua força, nas tuas palavras..."

Sorscha


... depois de "Espera. Só.":


"Espero...
Não espero...
Espero...
Não espero...
Espero...
Não espero...E
spero...Não espero......
e assim se passaram os dias e já vão anos de
espera, perdidos, ou talvez não.
A espera tornou-se um hábito maldito e o medo a
sombra. É preciso saber esperar.
- Não sei. É preciso coragem para levantar os olhos, olhar, olhar
bem e partir."

Salsolakali


... depois de "Sonho Meu":

"é um sonho ,
teu,
que te abraça em desejo.
é um sonho que te toca,
que te afaga,
que te beija.
voas, branca, no branco de um lençol, na nuvem de
um sonho, que te pinta o afecto, que te esboça a
fantasia numa mistura de cores que se confunde com
amores..."


Almaro

segunda-feira, setembro 20, 2004

Sonho Meu

Conto para dentro o meu dia em segundos.
Num pestanejar tímido o sonho aproxima-se...
Ao longe, de mansinho, toma forma, ganha contornos.
Vislumbro as cores, sinto os aromas,
Florescem os frutos, desabrocham os sonhos.

O braço estica-se para além da janela,
A perna alonga-se ultrapassando o horizonte.
O corpo estende-se em preguiça incontida,
Na maciez da pele quente, no movimento dengoso
Que se queda no turco alvo algodão.

A textura morna e embriagante do leito
Traz o movimento prazeiroso, quase auto-desejante,
Brinca na indiferenciação do que é corpo e do que é cama
Faz o rosto mergulhar na almofada
E cede, enfim, ao abraço lânguido do sonho.



"GFXArtist"

quarta-feira, setembro 15, 2004

Espera. Só.
Sofia espera o tempo passar sentada no vão da escada. Que melhor lugar senão um vão para esperar por um tempo vão...? Ignora o relógio inexistente na parede que já não vê. O mundo de fora torna-se mundo de dentro. Demasiado dentro para perceber sequer que são diferentes. O tempo só passa lá fora. Contudo, o olhar escuro e longínquo atinge horizontes jamais explicáveis. Jamais alcançáveis. Contudo, sente a angústia da areia que escorre na ampulheta. A inevitabilidade, em contraste com as lágrimas que evita.
O vão das escadas é agora sombrio. Um degrau após o outro, deixaram de ter qualquer utilidade relacionada com o acto de subir ou descer. O vão das escadas serve para dar lugar a um tempo morto. A um tempo decomposto. Pó do pó.
Sofia espera. Só. Sabendo que um dia não haverá mais tempo para esperar. Não quer sequer saber o que espera, perde-se e desvanece-se no simples acto de esperar. Como a folha de árvore caduca que não resiste ao culminar do tempo estival e não luta contra a força da gravidade. E pensa como a sua vida é como esta folha, de algum modo, bela, de algum modo gasta, de algum modo, uma espera.
Muitos são os que a tentam fazer sair daquele estado um tanto apático, de rapariga que dorme e sonha com os olhos despertos. Como se a quisessem roubar à loucura. Mas a persistência é a rainha de todos os feitos... e de todas as esperas.
Um dia, soltará as mãos das grades do corrimão, levantar-se-á da escadaria sombria e triste. Deixará o local de dentro para também ser ela própria um pouco de fora. Um dia. Quando quiser, quando pensar que o deve fazer. Por enquanto Sofia espera. Só. Mesmo que um dia não haja mais dias por que esperar.
"Girl On Stairs", Elder Groebe

domingo, setembro 12, 2004

Renasço em R

Ruindade que me rasga
De rompante rebento
Resvalo na ravina
Rude e rugosa
Rendo-me e sou ruína.

Restolhar ruidoso
Ribombar, relâmpago rasgante
Rapto o meu reflexo ao rio
Rabisco um risco ridículo
Reconstruo o meu reino roubado.

Recolho os restos do meu riso rancoroso
Roubo-me ao real
Recupero, resoluta,
Meu resplandecente rosto de rainha.
Renasço em R de Raiva.



"The Storm Caller", Stephen Nispel

sexta-feira, setembro 10, 2004

A Rapariga das Ondas
Chamavam-lhe a "Rapariga das Ondas". Alguns pensariam que tal nome se ficava a dever aos contornos ondulados das suas madeixas cor de mogno, moldura do rosto pálido, quase marmóreo. Mas os que viviam perto dela sabiam que assim era chamada pelas temporadas que passava sentada na grande extensão de areia fina e branca da praia. Imóvel ficava perante o sempre intenso restolhar das ondas em eternas investidas contra o areal que nunca se rendia. Não era raro vê-la soltar uma ou outra pequena lágrima, como se chorasse a perda conformada e longínqua de alguém que jamais voltaria.
Os mitos na terra cresceram com ela – dizia-se que esperava pela onda perfeita. A mais azul, a mais imponente, mas simultaneamente a mais subtil. A mais transparente, mas também a mais irada de espuma branca fervilhante e metamorfoseante...
Mas a onda não chegava, ela sabia-o. Talvez por isso chorasse. Chorasse pela perda da onda que nunca viria. Havia uma sempre mais azul, mais transparente, mais sinuosa, mais perto do sonho.
Certo dia, levantou-se da duna que fora o seu posto de vigília ao longo de anos e avançou para o mar numa última tentativa. Deixou de observar o mar e entrou nele. Entrou na onda. A “Rapariga das Ondas” dançou por alguns minutos, conjugando-se com o mar em ondulações perfeitas. A vida deixou de lhe passar ao lado, passando realmente a vivê-la. À imperfeição do mar, faltava a imperfeição da rapariga para poderem tornar-se perfeitos, o mar e ela, ela e mar, afinal um só.
Foi assim que a "Rapariga das Ondas" foi vista pela última vez naquele lugar. Dançando com a praia e ela própria tornando-se água salgada. Aprendendo, enfim, a viver e a amar a imperfeição de cada onda.
"A girl and waves", V. Ovchinnikov
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... depois de "Reflectes-me, Logo Existo"...

... Obrigada, Sorscha

"Sento-me na cadeira do pensamento, falando sem palavras para uma plateia de contorno invisível. Sentada e parada, mas parada não significa no nada. É uma plateia atenta que vagueia. Vagueia ao sabor do pensar que receia acordar, pois flutuar provoca um maior bem-estar.Olho para dentro para descansar, onde tudo acontece bem mais devagar. Deixo-me cair por dentro para repousar, pois é um cair suave, lento e muito sentido. Uma leve brisa acaricia as faces que se desintegram no todo que irá existir, integrando-se numa superfície maior, que abrange tudo, que é o nada.Gosto de escutar o silêncio, que tem tanto para ensinar. É como uma tela, que serve de base para pintar. A minha pequenez não me deixa escutar as cores das borboletas e a minha grandeza não permite que a formiga me veja por inteiro. Assim que me sinto perante os teus textos..."


sábado, setembro 04, 2004

Reflectes-me, Logo Existo

A menina ficava longo tempo sentada num pequeno banco em frente ao espelho. Quem a visse assim, demoradas horas, pensaria que a vaidade seria um dos seus defeitos quando crescesse. Contudo, o que não sabiam é que a menina não podia ser vaidosa. Pois se nem sequer existia aos seus próprios olhos...
Deixava-se ficar, esforçava sempre um pouco mais a vista, mas o seu entediante reflexo apenas lhe oferecia uma imagem desfocada e sem cor, uma figura sem forma em que os contornos se confundiam e entrecruzavam numa amálgama indiferenciada que ficava sempre um pouco mais turva quando os seus olhos se lhe embaciavam de lágrimas.
Esfregava impetuosamente os olhos, na esperança de se poder ver, de poder perceber enfim a cor dos seus cabelos, o brilho dos seus olhos. O corpo, dono de si mesmo.
Alturas havia em que o próprio espelho parecia fugir dela, misturar-se com o reflexo. O que a afligia ainda mais - sem espelho não poderia saber que existia.
Um dia, a mãe da menina saíu de por detrás do espelho. Foi com curiosidade que a criança viu a sua mãe dar-lhe a mão e, juntamente com ela, desenhar com um pedaço de carvão, as suas linhas na superfície vítrea. A imagem ía progressivamente tornando-se mais nítida. As lágrimas secaram. A imagem estava focada, mais do que nunca. O seu reflexo era agora bem mais evidente.
E uma linda menina apareceu desenhada pelas duas. Foi quando soube finalmente quem era. Quando abraçou a mãe, reflexo de si própria.
"Maternidade", Almada Negreiros

quarta-feira, setembro 01, 2004

Regresso

Regresso é voltar, regresso é chegar.
Regresso é o cheiro das folhas amarelecidas pelo tempo, que enrugam sempre mais.
Regresso é saltar e voltar ao mesmo sítio.
Regresso é saber que se pertence.
Regresso é nunca ser o mesmo.
Regresso é o cheiro das amoras ou talvez do oceano. É o sabor do vento que teima em soprar.
Regresso é esperar, sonhar... chorar.
Regresso é um olhar, uma lágrima a dançar.
Regresso é voltar onde nunca se partiu. É o tempo que, sem esperar, de repente me fugiu.
Regresso é o teu sorriso agora e sempre premente.
Regresso é ser esperado mesmo sem avisado voltar. É o sono que sabe que haverá sempre um acordar.
Regresso é chorar quando não há mais lágrimas por vir.
É cantar, soltar, dançar, secar o pranto e sorrir.
Regresso é hoje, agora. Ontem foi, amanhã será.
Regresso sempre de onde nunca sei partir.



"Returning", F. Hart