Esqueço-Me de Mim
Miguel conduzia rua abaixo, carregando sobre si o peso de uma apatia que não sabia explicar. Os pensamentos eram todos, transportando-o a um tempo e espaço muito para além do presente imediato. Só restava lugar para os costumeiros automatismos da condução, aqueles que ficam mesmo quando o pensamento está bem longe do corpo.
Enquanto descia a rua, sentiu uma súbita vontade de olhar para o parque infantil à esquerda, semi-escondido pelas árvores, e ver o que lá se passava. Como se esse espaço tivesse algo de muito íntimo a ver com a sua vida. A sua atenção ficou suspensa por escassos segundos. No primeiro momento não pôde ter a certeza, mas avançados alguns metros à frente, pôde confirmar as suas iniciais suspeitas. Eram as suas Expectativas. As Expectativas de Miguel brincavam no parque infantil.
Meio desorientado com esta estranha visão, Miguel estacionou o carro junto à berma e ofereceu-se a si próprio algum tempo para observar tal cenário. As crianças eram muitas e brincavam mais ou menos caoticamente, sem uma ordem ou sequer uma regra mais fixa por onde se orientarem. Por isso pareciam ora divertidas, ora zangadas, não conseguindo perceber qual vinha primeiro, qual deveria passar à frente e em que ordem. Acabavam por se ultrapassar e se atropelar caindo no chão em desespero. Com a sua curiosidade, Miguel acabou por denunciar a sua presença e as expectativas puderam aperceber-se que alguém as observava. Face a esta situação, algumas tentavam comportar-se da melhor maneira possível, endireitando os vestidinhos brancos e colocando lacinhos nos cabelos para se enfeitarem. Ainda assim, sempre brincalhonas, algumas pareciam até zombar de qualquer situação que Miguel não sabia qual era. Mais à frente algumas meninas rebolavam a rir no chão, apontando para as suas imagens reflectidas no espelho.
Com este cenário, Miguel partiu para o seu dia... quem sabe mais tarde não chegaria a tempo de brincar com as Expectativas.
O dia pareceu-lhe uma eternidade, e tal como esse dia se passou, outros tantos se lhe seguiram. E todos os dias, passava pelo parque infantil onde as suas Expectativas brincavam ora sozinhas, ora com outros meninos que passaram também eles a frequentar aquele espaço. Os Sonhos de Miguel também brincavam no parque infantil.
Depois de muitos dias passados nesta rotina quotidiana, sem nunca ter tido coragem de ir ter com os meninos, sem nunca ter tido tempo de os fazer crescer, Miguel aproximou-se novamente do parque. No dia em que viu um castelo de nuvens desfazer-se no azul do céu. Quando avistou o parque viu, enfim, que todas as crianças estavam mortas. Esventradas, os olhos fixos e sem vida, os pequenos vestidinhos brancos manchados de sangue vermelho escuro. Miguel nunca mais ousou passar pelo parque infantil.
"Children Playing...", Arthur Rothstein