quinta-feira, junho 30, 2005

Alma sem Asas
O dia amanheceu à tarde, abraçado palo céu cinzento, da cor das violetas debaixo da luz de Inverno. O corpo de menina avançou no espaço sem esforço e sem movimento. Deixou que fosse o vento que empurrasse o peso que não era senão inexistente. A Alma estava leve naquela manhã-tarde. Tão leve que poderia levantar voo e se deixar abraçar pelos tons indefinidos do céu. Era quase um chamamento que fazia com que deixasse de olhar miopicamente para a parede em frente e poisasse os olhos e os sonhos cor de rosa, além, no horizonte, onde os anjos cantam e o dia adormece embalado.
Quando saí naquele dia, os meus olhos não se estendiam para além da distância que o braço podia alcançar. Pelo contrário, batiam ruidosamente na primeira superfície que encontravam. A Alma estava pesada, carregada de objectos inúteis que não soubera escolher ou fazer existir. Foi com o mesmo ruído ensurdecedor dos olhos a baterem em superfícies que empurrei sem dó o corpo de menina que ansiava soltar a Alma da gaiola. A Alma sem asas. Foi assim que atropelei a Vida na manhã violeta acinzentada.
"Soulseal", Paula Fisher

sábado, junho 25, 2005

"Orquídea Selvagem"

A orquídea florescia dentro de um copo. Não sabia como podia acontecer uma planta como a orquídea florescer quase sem ar, quase sem luz, tal como era o ambiente do seu quarto. Mas ela ali estava. Respirava juventude na sua cor rosada pastel, exibindo as suas formas, como se não dependesse de nada nem de ninguém para existir e gostar de existir. Ah, quem lhe dera ser como a bela orquídea. Nascida do nada, alimentada de nada, crescida no ambiente escuro e húmido do seu quarto, e ainda assim, luminosa e firme. Sim, firme. As condições adversas parecem tê-la tornado mais resistente. Era fácil perceber que a força também tinha beleza. Talvez porque o escuro e o asfixiante não viviam dentro dela, viviam fora dela. Talvez por não se confundir com o exterior, se mantivesse assim, viva e fresca como um dia de Verão...
Num desses dias escuros e húmidos do seu quarto, num desses dias em que, mais uma vez, a orquídea, se abria, voluptuosa, como que criando luz à sua volta, ela deitou-se nua sobre a sua cama. E esperou pacientemente que todas as larvas e lesmas escuras percorressem o espaço por debaixo da sua pele e saíssem, enfim, lentas e viscosas, através do seu umbigo. Quando o último verme escorregou pela sua barriga, já com grande custo, deixou o seu corpo de mulher, ainda que violado, descansar, como se não fosse seu... Mais tarde, quando a ele voltasse, teria tempo para se sentir mais leve. Mas também mais vazia.
"Orquídea", Oscar López Guerra

segunda-feira, junho 20, 2005

Só uma Faixa Cor de Rosa...
O meu sonho era ter uma faixa cor de rosa para colocar sobre o meu vestido. Que o vestido fosse tão lindo que resplandecesse sob a faixa. Contornado, sinuoso, justo, mas um pouco evasé no corte final. Podia não ser simétrico, contrastando uma ponta mais curta com um pedaço de tecido que formasse uma semi-cauda.
Eu só queria mesmo uma faixa cor de rosa. Um rosa bem vivo, que me fizesse mais bonita. Que conferisse um toque de elegância discreta, quase inocentemente infantil, à volúpia que não conseguiria esconder... Queria uma faixa cor de rosa... e junto com ela, uma cascata de caracóis anelados e dourados que ficassem suspensos ao longo das costas, roçando o final do decote do vestido. Queria uma beleza rara, condizente com a faixa cor de rosa. Da cor das rosas, do perfume floral do jardim, da cor das princesas. Queria parecer uma princesa. Uma coroa na cabeça. E claro, o meu trono e o meu ceptro. Que ficassem bem com a faixa cor de rosa. No fundo, era tudo o que eu queria - uma faixa cor de rosa...
"The Pink Princess", Ebsqart.com

domingo, junho 12, 2005

Esqueço-Me de Mim
Miguel conduzia rua abaixo, carregando sobre si o peso de uma apatia que não sabia explicar. Os pensamentos eram todos, transportando-o a um tempo e espaço muito para além do presente imediato. Só restava lugar para os costumeiros automatismos da condução, aqueles que ficam mesmo quando o pensamento está bem longe do corpo.
Enquanto descia a rua, sentiu uma súbita vontade de olhar para o parque infantil à esquerda, semi-escondido pelas árvores, e ver o que lá se passava. Como se esse espaço tivesse algo de muito íntimo a ver com a sua vida. A sua atenção ficou suspensa por escassos segundos. No primeiro momento não pôde ter a certeza, mas avançados alguns metros à frente, pôde confirmar as suas iniciais suspeitas. Eram as suas Expectativas. As Expectativas de Miguel brincavam no parque infantil.
Meio desorientado com esta estranha visão, Miguel estacionou o carro junto à berma e ofereceu-se a si próprio algum tempo para observar tal cenário. As crianças eram muitas e brincavam mais ou menos caoticamente, sem uma ordem ou sequer uma regra mais fixa por onde se orientarem. Por isso pareciam ora divertidas, ora zangadas, não conseguindo perceber qual vinha primeiro, qual deveria passar à frente e em que ordem. Acabavam por se ultrapassar e se atropelar caindo no chão em desespero. Com a sua curiosidade, Miguel acabou por denunciar a sua presença e as expectativas puderam aperceber-se que alguém as observava. Face a esta situação, algumas tentavam comportar-se da melhor maneira possível, endireitando os vestidinhos brancos e colocando lacinhos nos cabelos para se enfeitarem. Ainda assim, sempre brincalhonas, algumas pareciam até zombar de qualquer situação que Miguel não sabia qual era. Mais à frente algumas meninas rebolavam a rir no chão, apontando para as suas imagens reflectidas no espelho.
Com este cenário, Miguel partiu para o seu dia... quem sabe mais tarde não chegaria a tempo de brincar com as Expectativas.
O dia pareceu-lhe uma eternidade, e tal como esse dia se passou, outros tantos se lhe seguiram. E todos os dias, passava pelo parque infantil onde as suas Expectativas brincavam ora sozinhas, ora com outros meninos que passaram também eles a frequentar aquele espaço. Os Sonhos de Miguel também brincavam no parque infantil.
Depois de muitos dias passados nesta rotina quotidiana, sem nunca ter tido coragem de ir ter com os meninos, sem nunca ter tido tempo de os fazer crescer, Miguel aproximou-se novamente do parque. No dia em que viu um castelo de nuvens desfazer-se no azul do céu. Quando avistou o parque viu, enfim, que todas as crianças estavam mortas. Esventradas, os olhos fixos e sem vida, os pequenos vestidinhos brancos manchados de sangue vermelho escuro. Miguel nunca mais ousou passar pelo parque infantil.
"Children Playing...", Arthur Rothstein
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... depois de "Só Uma Letra":

"Escrever não tinha sido boa ideia. O risco duma revolução das letras por discordância com as ideias de quem as manobrava era iminente mas a ocorrência legitima. Pobres coitadas sem personalidade – pensava eu tal como todos os outros que lhes mexem a seu bel-prazer sem contemplações – sem ter em consideração a vontade dum alfabeto, a nobreza de carácter de um A, a elegância explicita de um X, as formas de respeitável matrona de um B.Mesmo assim tentei impor as minhas convicções, alinhá-las segundo os meus pensamentos num constante movimento de pulso que a cada momento que passava se revelava mais difícil.Olhei para a folha de papel antes branca, agora repleta de caracteres por mim escolhidos, conspurcada por uma atitude sobranceira que se pretendia desculpada pela urgência de desabafos íntimos, mas nada do que escrevera fazia sentido.Tinha ocorrido a Revolução. As letras discordavam de mim e eram mais fortes do que eu."
Sr.Ministro


"Scrambled Letters...", Fotosearch

sábado, junho 04, 2005

Só Uma Letra

Quando abri a janela o texto estava já completo ( se é que algum texto o pode realmente estar). E à medida que lia e absorvia os caracteres com alma, a tinta sumia-se até à última linha. Ou a primeira. Pois o texto sucumbia à passagem dos meu olhos, à volúpia da minha língua que vagarosamente lambeu sílaba por sílaba. As palavras contorceram-se de prazer. De prazer e de raiva. O mesmo amor que amava era o amor que matava. O aparo afiado e molhado de sangue negro esventrando o meu súbito lirismo. Soube-o pelo olhar cínico que o desenho formado pelo próprio texto me deitava. Olhares largados como se fossem nada. Como se eu fosse transparente e um simples e sujo tinteiro afogado no meu próprio corpo. A tinta que era negra, mas era sangue.
As letras duvidavam de mim a cada passo, as frases desiludiam-se, deixavam-me pontos e vírgulas espalhados sem coerência para que simplesmente tropeçasse neles e me deixasse enrolar parágrafos abaixo.
Só para contrariar leio ao contrário. Da direita para a esquerda. De baixo para cima. E assim revelo ainda mais a minha devoção, a minha entrega.
Olho pela outra janela, a parede transparente que me oferece ao mundo. Somem-se nuvens como palavras. Hoje quero ser só uma letra.
(Como letra, como palavra, frase, ou tão somente ideia, não deixei de cá estar...)
"Blood and Ink", Silkeara